Página inicial > Henry, Michel > Arqui-geração [MHSV]
Arqui-geração [MHSV]
quarta-feira 11 de setembro de 2024
Até que ponto a Arqui-geração transcendental do Verbo exposto no Prólogo fulgurante de João se opõe a toda genealogia humana e notadamente à pretendida genealogia humana do Cristo para a fazer explodir, é isto que alguns traços retidos entre muitos outros bastarão aqui estabelecer. O primeiro traço da relação que se estabelece entre o pai humano e seu filho, é, portanto, que o segundo é exterior ao primeiro, de tal maneira que pode dele se dispensar, deixar a casa, a exterioridade desta relação não sendo, como se viu, senão aquela do mundo e assim a aparição mesma do filho enquanto filho humano-mundano — enquanto filho deste mundo. Na medida que a exterioridade do mundo, é também o tempo, seu ek-stase, então dizer que o filho é exterior ao pai, é dizer que vem depois dele. Nenhum filho humano, desde então, não vem ao princípio nem aí se mantém. Nenhum pai humano não menos vem ao princípio — e é a razão pela qual ele não é senão um pseudo-pai. Começando seu Evangelho por «No princípio» e pondo paradoxalmente neste um Filho, João faz explodir o conceito mesmo de nascimento, o qual supõe sempre um “antes”. Ele faz explodir ao mesmo tempo o conceito de filho, o qual, no dizer do mundo, supõe sempre um pai, vindo antes dele justamente.
E está aqui o segundo traço sobre o qual se lê a oposição radical da Arqui-geração do Verbo a toda geração humana. Apesar desta Arqui-geração que o põe no princípio, o Verbo não pressupõe antes dele o Pai? O Primeiro Vivente não implica, como todo vivente, que a vida tenha cumprido sua obra nele — esta Vida sem a qual nenhum vivente não viveria? O Cristo ele mesmo não diz: «O Pai é maior que eu» (Jo 14,28)? Somente a Vida não tem necessidade de ter cumprido sua obra no Cristo, como em todo outro vivente, para que o Primeiro Vivente seja vivente. Se a geração do Filho co-pertence à auto-geração da Vida como isto sem o que esta auto-geração não cumpriria. E isso na medida que ela não se cumpre senão se constringindo a si mesma na Ipseidade essencial cuja efetividade fenomenológica não é outra que o Verbo. O Verbo não é o primeiro vivente engendrado pela vida no curso de um processo que teria começado sem ele, ele é no auto-engendramento da vida isto por que e isto como que este auto-engendramento absoluto se torna efetivo. Assim o Verbo, o Primeiro Vivente não é contingente em relação à Vida como é o caso de todos os outros viventes, de tal maneira que ela poderia se cumprir em ele como ela pode se cumprir sem eles — sem nós os homens. Mas ao contrário o primeiro dentre todos os viventes que engendra a vida, sendo interior e consubstancial ao auto-engendramento desta vida, e isso como sua auto-revelação, esta vida não pode se cumprir sem ele, como ele não pode se cumprir sem ela. Assim são eles — segundo este que será o tema maior dos textos joanicos — um e outro, o Pai no Filho e o Filho no Pai. Ao passo que em toda geração humana esta interioridade recíproca não existe jamais, e que eles são um fora do outro, separados um do outro — na medida, é verdade, que nenhum deles não é pai, pai deste filho, e que nenhum deles não é filho, filho deste pai, senão na aparência ilusória do mundo.
É esta ilusão que destrói em termos de uma brutalidade inusitada o Cristo, não por motivos de ordem ética ou existencial, como apareceria a princípio a uma reflexão superficial, mas em razão da natureza mesma do fenômeno do nascimento. E isso porque, este não sendo jamais inteligível segundo as leis do mundo e não podendo não mais fundá-los ou justificá-los, ele remete inexoravelmente ao conceito radical de um Arque-nascimento transcendental na Vida e assim à condição do Cristo ele mesmo.
A irredutibilidade fenomenológica radical entre dois modos de revelação, aquele que consiste na Vida, seja sua auto-revelação no Verbo de Vida — no Logos joanico —, e por outro lado aquele que encontra sua essência na luz do mundo, no ek-stase do "no de fora" — Logos grego —, tal é com efeito a origem da problemática de João e do drama cristão em geral. Este homem aparecido no mundo e nomeado Jesus, ninguém pode com efeito conhecê-lo e reconhecê-lo na luz deste mundo por isto que ele é — pelo Verbo da Vida: «Embora me tenhais visto, não me credes» (Jo 6,36). A bem dizer, para que o Cristo apareça na luz do mundo como este homem Jesus e simplesmente sob a forma deste homem que os outros homens reconhecem por um homem e nada de mais, necessita precisamente que ele seja despojado de sua condição divina, a saber de sua revelação própria — aquela que ele tem da Vida enquanto a auto-revelação desta —, por não ser nada mais com efeito que a aparência objetiva e mundana de um homem. É isto que declara com um rigor estupendo Paulo Apóstolo em sua Epístola aos Filipenses: «De sorte que haja em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, Que, sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus, Mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens; E, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo, sendo obediente até à morte, e morte de cruz.» (2,5-8).
Somente se o Cristo é despojado de sua condição divina para tomar o aspecto de um homem e se mostrar sob este aspecto na verdade do mundo, então onde e como se revela ele na sua condição verdadeira enquanto o Verbo mesmo de Deus, enquanto sua revelação? Onde e como pode-se conhecê-lo e reconhecê-lo na condição que é verdadeiramente a sua, na sua condição de Cristo, de Verbo revelando o Pai?