Filosofia – Pensadores e Obras

Maine de Biran

MAINE DE BIRAN (Marie François Pierre Gonthier de Biran, dito), filósofo francês (Bergerac 1766 — Paris 1824). Foi administrador do departamento da Dordogne, deputado e conselheiro de Estado. Seu espiritualismo baseia-se no método de análise psicológica do indivíduo, cujo meio é, exclusivamente, a percepção imediata interna: esta nos permite apreender nosso “eu” como uma tendência, uma livre espontaneidade, una e que não pode ser decomposta. Suas análises do esforço voluntário constituem uma contribuição inegável a toda a filosofia da vontade. Deve-se-lhe notadamente: A influência do hábito (1802), A decomposição do pensamento (1805), A percepção imediata (1807) e Relações entre o físico e o moral (1814). [Larousse]


Maine de Biran (1766-1824). Natural de Bergerac, exerceu na vida política diversos cargos importantes. Estudou com afinco as sensações e as impressões, e desses estudos surgiu sua doutrina filosófica.

A oposição entre o sentimento e a reflexão, entre a passividade e a atividade, são os temas principais de Maine de Biran. Parte da filosofia sensualista dos ideólogos, mas afasta-se logo depois. O hábito, afirma, embota a sensação e facilita o pensamento. Isso se dá, porque pensamento e sensação são de naturezas diferentes. O primeiro é atividade, e o segundo, passividade.

Parte do eu, como fato primitivo, “condição da humanidade”. Este se manifesta unicamente na ação, pelo esforço, dado simples da observação, liberto da existência da vontade. Há, no homem, uma vida animal, puramente passiva, e uma vida humana, que se manifesta pela atividade do eu, que se excede sobre o corpo que lhe resiste e que é o germe de toda vida, inclusive a intelectual e moral. O homem é formado de dois elementos distintos. Quatro são os sistemas (modos) que formam a existência: 1) sistema afetivo, que corresponde à vida animal, que comporta prazer e dor, conjunto de fantasmas e imagens; 2) sistema sensitivo, resultado do grau inferior do esforço (pensamento), que determina a localização das afeições nos órgãos, ideia de causa, reminiscência; 3) sistema perceptivo, que corresponde à atenção, ideias, criações artísticas, em que a atividade do eu é orientada para o exterior; 4) sistema reflexivo, em que o eu discerne a si mesmo e se eleva à concepção das noções que formam sua origem. Reconhecendo Maine de Biran que a primazia da vontade na vida interna, como origem e raiz do conhecer, era insuficiente na vida psíquica, chegou à afirmação da existência de uma vida espiritual superior, onde as resistências físicas e corporais se evaporassem ante a força do espírito, tal como se revela na experiência mística. A vida psíquica, libertada do orgânico, é livre, e representa um estágio superior, mais elevado, que é possível para intervenção de Deus. [MFS]


O filósofo francês Maine de Biran nasceu em 1766 e morreu em 1824; é, pois, aproximadamente contemporâneo de Fichte, e em certo sentido participa do que podemos chamar sua “altura filosófica”. Maine de Biran foi muito mal conhecido durante muitos anos: para seus contemporâneos — salvo exceções — passava pelo modelo perfeito do escritor incompreensível. Em um ambiente impregnado de sensualismo, de uma extrema simplicidade intelectual, a metafísica de Maine de Biran se apresentava como o puro galimatias; é certo que se debate com uma evidência que nem sempre consegue expressar claramente, nos termos que encontra a seu alcance. Mas descobre Maine de Biran o que denominou o sentido íntimo, e nesta penosa análise que procura fazer encontra o eu como vontade, como esforço, que se exerce frente a um mundo que mostra sua realidade na resistência. Esta filosofia da intimidade descobre o homem como um ente antitético, que se opõe essencialmente, de um modo dinâmico, ao outro que ele, e é um precedente indispensável para a compreensão da filosofia da existência ou da vida. [Marías]


Raramente se age movido apenas pela razão demonstrativa e é impossível conservar por muito tempo uma alma de gelo. Coleridge e Carlyle deviam reagir contra os cálculos por demais visíveis da escola escocesa e conhecemos de sobejo a onda de sentimento que Rousseau desencadeou sobre toda a Europa Ocidental. Outros dois escoceses de orientação diferente, Hutcheson e seu discípulo Adam Smith, já haviam recordado que o fundamento da moral só podia ser o sentimental moral, e este último fazia da simpatia a regra e a mola mestra da própria moralidade. Após Rousseau, o alemão Jacobi autorizou-se nele para sustentar que o raciocínio não pode bastar para atingir o real e que é à que cumpre recorrer, mesmo para legitimar o mundo sensível. Outro alemão, grande admirador de Jacobi, mas que o ultrapassou perigosamente, Schleiermacher, terminou numa espécie de panteísmo, querendo forçar demais a nota sentimental na religião. Avançamos ainda mais com um pensador francês cuja filosofia permaneceu longo tempo incompreendida ou muito pouco conhecida.

Maine de Biran, nascido em 1766, ocupou diversos cargos administrativos sob o Império e a Restauração; teve assim uma vida pública à qual não devemos ligar maior importância do que ele mesmo lhe emprestou. Mais interessante para nós é o fato de ter ele frequentado em sua mocidade a casa de Cabanis e de ter, portanto, privado familiarmente com os ideólogos. Estava muito longe das suas doutrinas, ou então deve ter-se afastado singularmente delas. É possível que lá tenha encontrado a ocasião de consolidar esse gosto da análise introspectiva que levaria, mais tarde, uma profundeza extraordinária. Foi, com efeito, um homem que passou a vida a olhar para dentro de si, não com o fito de se encontrar pessoalmente, mas de encontrar o homem. Meditando e escrevendo, era ainda para sisi mesmo que escrevia, pois ele mesmo não chegou a publicar senão a Memória sobre o hábito, em 1803, embora desde 1806 tivesse completado a redação da Memória sobre a decomposição do pensam.ento e prosseguisse na elaboração dos seus diários íntimos. Morreu em 1824. Pierre Tisserand pôs todas as suas obras ao nosso alcance numa edição admirável.

Vimos como o eu de Descartes se transformou no Eu de Fichte e como prosseguiu essa introspecção iniciada na famosa “estufa”. Descartes e Fichte tiraram dela uma metafísica; não queremos dizer que a de Maine de Biran não comportasse também uma metafísica, mas ao invés de procurá-la ele se limitava a acolhê-la, se assim se pode dizer, quando lhe vinha ao encontro.

Estudando-se, descobriu em primeiro lugar que esse eu não era uma coisa tão clara, que antes de se construir era uma massa indistinta e bastante confusa, que se fazia mister um esforço para trabalhá-lo e que. era justamente esse esforço que o trazia até a consciência, se é que ele já não era, de certo modo, a própria consciência. E assim se desvendava à luz do dia uma nova riqueza.

O “fato de consciência”, para Maine de Biran, é o fato primitivo do qual devemos partir para deduzir os demais. “A psicologia reflexiva de Maine de Biran”, escreve muito bem Tisserand, “é um esforço originalíssimo para captar o pensamento na sua mais profunda intimidade, isto é, para separá-lo não só dos produtos dos sentidos e da imaginação, mas do próprio pensamento conceptual e lógico…” Esse eu inicial, porém, embora seja primitivo, não é “primeiro na ordem da existência”. É formado por uma multidão de elementos, nem todos de origem psicológica. É um inconsciente, e este inconsciente, prossegue Tisserand, “é o sentimento da vida com todas as suas facetas, afetiva, representativa, motora, quando determinado por movimentos que têm sua origem não na ação do eu, mas na vida orgânica…” Há também no homem outros dados que não provêm dele mas que são propriamente de Deus, e assim passa Maine de Biran à psicologia religiosa, da qual pode ser considerado, no dizer do nosso autor, “um dos fundadores”.

Esta ideia de um eu “profundo” — o que nos faz pensar em Bergson — de um eu implícito que se torna explícito pelo exame, pela análise, pela meditação e pelo esforço, constitui a pedra fundamental desta filosofia. Supõe a alma, cuja noção se deduzirá dele como outrossim todas as potencialidades humanas nele inclusas, e é com justiça que Maine de Biran chama à sua psicologia uma “antropologia”. Parece mesmo que a sua originalidade reside nesse estudo da aquisição do “eu”, isto é, em última análise, do homem, por sisi mesmo. Originalidade tanto de fundo como de método. Fiel ao seu tempo, confia também na experiência e rejeita as ideias inatas, o que o conduz a urna crítica muito curiosa da prova de Deus pelo sentimento, apresentada pelo Vigário Saboiano de Rousseau: “Nem sempre a razão aprova o que seduziu o coração e a linguagem do sentimento, tão poderosa na persuasão, nem sempre resiste a um exame rigoroso e refletido.” E acrescenta: “todas as nossas ideias são aquisições”. Eis aqui precisamente o que ele quer dizer: nós não temos ideias “inatas”, mas sim ideias “adquiridas”; entretanto, nem todas essas ideias são de origem sensorial e estamos longe de ter aqui um materialismo. Elas se originam e são extraídas de um todo em que aos dados dos sentidos se acrescentaram os dados de forças ou de valores que ultrapassam os sentidos, e às revelações da natureza a revelação do sobrenatural. A experiência? Seja, mas Deus entra também nesta experiência.

Vemos assim com que espécie de conteúdo Maine de Biran enriquecia a alma empírica, se assim se pode dizer, ou experimental, e o que lucrava a consciência com sair do inconsciente. A pesquisa também participou desse enriquecimento do fundo. A análise psicológica, fundada na intuição psicológica e numa meditação cada vez mais profunda de si mesmo, desbravava caminhos que a conduziriam, em outros domínios além do filosófico, a descobrimentos ou invenções que nos foram de grande proveito. [Truc]