Schopenhauer (FM:25-28) – dever

Do mesmo modo que Kant, por meio dessa petição de princípio, aceitou sem mais, no Prefácio, o conceito de lei moral como dado, indubitável e existente, ele o fez com um conceito proximamente aparentado, o de dever, ao qual foi dada entrada na ética como se este pertencesse a ela, sem prova posterior que o sustentasse. Mas sou obrigado aqui, de novo, a fazer um protesto. Este conceito une-se a seus afins, portanto aos de lei, mandamento, dever e outros que tais e, tomado neste sentido incondicionado, tem sua origem na moral teológica e permanecerá um estranho na filosofia até o momento em que apresente um reconhecimento válido a partir da essência da natureza ou do mundo objetivo. Até então, não reconheço outra origem para ele e para os seus afins a não ser o Decálogo Mosaico. Nos séculos cristãos, a ética filosófica tomou em geral sua forma, inconscientemente, da teológica; por isso esta é essencialmente uma moral que ordena. Assim também a moral filosófica apresentou-se na forma de uma doutrina da [25] prescrição e dos deveres, com total inocência e sem ter ideia de que, para tal, fosse necessário um outro tipo de autorização, supondo antes que esta fosse sua forma própria e natural. Tanto mais inegável seja o reconhecimento por todos os povos, épocas e doutrinas de e também por todos os filósofos (com exceção dos materialistas ingleses) da significação ética das ações humanas como sendo metafísica, quer dizer, estendendo-se além da existência fenomênica e repousando na eternidade, tanto menos lhe é essencial ser compreendida na forma do mandar e do obedecer, da lei e do dever. Separados dos pressupostos teológicos dos quais surgiram, estes conceitos perderam, além do mais, todo e qualquer significado e, se se tem a intenção de substituí-los, como Kant, ao falar de dever absoluto e obrigação incondicionada, então oferecem-se palavras como alimento, dando-lhe para digerir uma “contradictio in adjecto”. Cada deve tem todo seu sentido e significado simplesmente referido à ameaça de castigo ou promessa de recompensa. Por isso já diz também Locke, faz tempo, antes que se pensasse em Kant; “For since it would be utterly in vain, to suppose a rule set to the free actions of man, without annexing to it some enforcements of good and evil to determine his will; we must, wherever we suppose a law, suppose also some reward or punishment annexed to that law?” 1 (On Understanding, livro 2, capítulo 33, parágrafo 6). Cada dever é também necessariamente [26] condicionado pelo castigo ou pela recompensa e assim, para falar a linguagem de Kant, essencial e inevitavelmente hipotético e jamais, como ele afirmou, categórico. Se tais condições forem abstraídas, o conceito de dever fica vazio de sentido. Por isso o dever absoluto é simplesmente uma “contradictio in adjecto”. É simplesmente impossível pensar uma voz que comanda, venha ela de dentro ou de fora, a não ser ameaçando ou prometendo. Mas, assim, a obediência em relação a ela mesma, que, de acordo com as circunstâncias, pode ser esperta ou tola, será sempre, todavia, em proveito próprio e portanto sem valor moral. O caráter totalmente inconcebível e contraditório desse conceito de dever incondicionado que está na base da ética de Kant surge no seu sistema, mais tarde, a saber na Crítica da razão prática, do mesmo modo que um veneno que não pode permanecer mascarado no organismo, mas que tem de finalmente irromper, vindo à luz. Ou seja, aquele dever incondicionado postula a seguir ainda uma condição, e mesmo mais do que uma, a saber, uma recompensa e, para tanto, a imortalidade do que é recompensado e alguém que recompensa. Isto é certamente necessário quando se tomou antes obrigação e dever como conceitos fundamentais da ética, já que estes são essencialmente relativos e só adquirem significado por meio da ameaça de castigo ou da promessa de recompensa. Esta recompensa que é postulada em seguida para a virtude, que só trabalhou de graça aparentemente, mostra-se decentemente velada sob o nome de Soberano Bem, que é a unificação da virtude e da felicidade. Isto na realidade nada mais é do que uma moral que visa a felicidade, apoiada consequentemente no interesse próprio ou [27] eudemonismo, que Kant solenemente expulsou como heterônoma pela porta de entrada de seu sistema e que de novo se esgueirou sob o nome de Soberano Bem pela porta dos fundos. Assim é que se vinga a admissão do dever incondicionado e absoluto, que oculta uma contradição. Por outro lado, o dever condicionado não pode ser certamente um conceito ético fundamental, porque tudo o que acontece visando a recompensa ou o castigo é necessariamente uma ação egoísta e, sendo assim, sem puro valor moral. A partir disso tudo, fica evidente que é preciso uma compreensão grandiosa e imparcial da ética, quando se é honesto em querer realmente fundar a significação eterna do comportamento humano que se estende para fora, acima dos fenômenos.

  1. Pois já que seria completamente vão supor uma regia para dirigir as ações livres dos homens sem anexar-lhe algum reforço, através do bem e do mal, para determinar sua vontade, temos de, onde quer que suponhamos uma lei, supor também alguma recompensa ou punição anexada a essa lei.[]