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Barbuy: sophia e episteme

quinta-feira 7 de outubro de 2021, por Cardoso de Castro

  

Sophia, sabedoria, se distingue de episteme, ciência. E distingue-se de doxa, opinião. De onde, o sentido mais radical da Filosofia, é o da Sabedoria, que se distingue do saber. A filosofia não é o conjunto das cousas que se sabem, não é uma synthèse scientifique (como se diria no século XIX), mas uma sabedoria da realidade profunda. O saber se distingue da sabedoria, como a ciência se distingue da filosofia. Ou seja, a filosofia pode englobar todas as ciências, dando-lhes validade e sentido, sem todavia confundir-se com nenhuma delas. Não haveria nada mais positivista do que julgar, por exemplo, que os primeiros filósofos gregos, que puseram a realidade na Physis, foram porisso precursores da física   ou da química. O que os primeiros filósofos gregos procuraram foi a essência da realidade, posta na Água, na Terra, no Fogo ou no Ar, não como nalguma cousa material e sim como numa essência última dos fenômenos: procuravam a realidade trans-física do físico e não a composição química dos corpos a partir de algum suposto corpo simples. Ninguém melhor do que Heidegger   pôs em relevo o alto significado da filosofia pré-socrática, tão grosseiramente deformada pelo “naturalismo” dos séculos caducos.

Procurando a realidade de dentro para fora, como totalidade radical, e não de fora para dentro, como soma de aspectos, a filosofia é essencialmente intuitiva; é intuitiva, no sentido original de in-tuitus e do verbo in-tueri que significa olhar dentro. Esta intuição, ou a comunhão com a cousa, é o que se chama hodiernamente a vivência, termo traduzido do alemão Erlebnis, como significando a experiência interiorizada e sentida do objeto; por outro lado, a intuição como associada ao verbo ver, intueri, conserva ainda o seu sentido originário no termo alemão Anschauung que quer dizer intuição ou visão (profunda), do verbo schauen, ver. Filosofia é intuição e vivência. É intuição porque é Sophia e é vivência porque é Philia; de fato, o termo grego philia, vai além da simples significação atual de amizade e abrange uma amplitude tão profunda que frequentemente os filósofos gregos, como Pythagoras   e Epicuro  , punham na Philia, amor desinteressado, o máximo da felicidade; philia pode significar comunhão e êxtase. É enquanto comunhão e vivência que philia entra na composição da palavra Philosophia.

Mas a filosofia é intuição também no sentido pelo qual seu método consiste em captar diretamente um objeto, que transcende as experiências e as operações ao cabo das quais as ciências do particular elucidam, ou pretendem elucidar certas modalidades do ser. Essas operações, que levam indiretamente ao conhecimento, real ou suposto, de partes exteriores do ser, se chamam discurso. O método discursivo, que é o de todas as ciências assim chamadas “naturais” é indireto, ao passo que a intuição é a captação direta (sem o intermediário dos sentidos ou das experiências), da realidade, ou do valor, ou do sentido do ser. A intuição, como a Inteligência, no seu sentido originário, é um ler dentro, de intus legere. O discurso é uma operação que se dá em torno da cousa, examinando suas partes como separadas, ou seja abstraindo-as; mas a intuição vive a unidade íntima da cousa, vendo-a na sua radicalidade e como de dentro para fora. Então a cousa não se apresenta como soma de aspectos examináveis pelas várias ciências particulares e sim como totalidade e como raiz daqueles aspectos, que são apenas a sua expressão. Intueri significa pois olhar dentro e a intuição é visão, é vidência e é o que Aristóteles denominava theoria.

A filosofia se apresenta, originalmente, como intuição contemplativa. Este sentido lhe era atribuído por Pythagoras, a quem se atribui também, mas não de modo seguro, a origem da palavra Philosophia: Interrogado Pythagoras por um rei de Phlius sobre quem era, disse: Filósofo; e comparava a vida humana a uma dessas feiras a que concorrem todas as gentes, indo uns por amor à glória disputar nos jogos; outros por amor ao dinheiro comprar e vender; e outros, que são os melhores, apenas para ver; também na vida, nascem uns, escravos da glória, outros da riqueza e outros, que são os filósofos, amantes da virtude [1]. Os filósofos são portanto os que contemplam as cousas, isto é, que buscam a essência das cousas.

Desde suas origens a filosofia constitui contemplação e meditação sobre a essência da realidade e principalmente sobre a essência da Natureza (Physis) nos filósofos anteriores à época socrática. A inocente atitude que consiste em perguntar porque algo é, ou porque uma cousa é o que ela é, está na base de toda a filosofia. Ambas as perguntas se reduzem a uma só, porque, quando se pergunta porque algo é, pergunta-se também porque a cousa é o que ela é. Pergunta-se pela essência da realidade. A filosofia se põe, desde seu início, como ciência das essências.

Mas a filosofia tem, ao mesmo tempo, um sentido estrito, como ciência da essência e da existência de todos os seres; e um sentido lato, como sabedoria da vida e como visão do mundo. De todo modo, a filosofia se distingue do saber vulgar, inclusive do saber científico. A filosofia é sophia e não episteme. Os pitagóricos faziam claramente essa distinção entre sabedoria e saber e distinguiam entre a mente, a sabedoria e a “ira” [2]. — Mas é claro que se a filosofia procura saber como as cousas são, procura também como devemos ser; o conhecimento de como as cousas são, implica no como devemos ser. De toda filosofia como ciência da essência e da existência, ainda mesmo da mais abstrata, deriva um conjunto de noções de como devemos ser. Toda filosofia, em certo sentido, é sabedoria da vida. Como sabedoria da vida, a filosofia exerce uma ação catharctica, ou de purificação; tal era o sentido do orfismo, para o qual a filosofia não saiu do âmbito da contemplação religiosa. Tal é o motivo pelo qual os pitagóricos, quando estudavam matemática ou música, medicina ou ginástica, o que viam nesses estudos era, em graus diferentes, meios de purificar as almas e correlativamente os corpos [3]. O chamado “paradoxo socrático” consistia em identificar a sabedoria e a virtude, levando ao exagero o pressuposto segundo o qual o conhecimento do bem produz necessariamente a virtude. Este paradoxo sublinha o fato pelo qual não se pode traçar um limite entre a ciência das essências e a sabedoria da vida. A filosofia, mesmo enquanto abstração, está profundamente ligada ao destino da vida e ao sentido das cousas. Mesmo enquanto abstrata, a filosofia está profundamente ligada ao concreto. O saber vulgar, ao contrário, estabelece o domínio do abstrato sobre o concreto. O saber vulgar não vai além do que os gregos denominavam opinião (doxa) e, num grau mais alto do que denominavam ciência (episteme); só a filosofia procura a verdade profunda; Parmênides  , no seu poema sobre A Natureza estabelece a oposição que há entre Verdade e opinião, esta última não sendo mais que ilusão e erro; a verdade não é outra cousa senão o Ser Absoluto, objeto da filosofia de Parmênides. A mesma distinção entre Verdade e Opinião está fortemente marcada nos fragmentos de Demócrito e Leucipo, onde o conhecimento autêntico se opõe ao convencional. Tal é a distinção que se desenvolve em toda a obra platônica entre o mundo das Ideias e o mundo dos sentidos. É uma distinção vivamente assinalada por Plotino  , que separa radicalmente o saber e a sabedoria, sendo o saber a negação da Sabedoria. Diz Plotino, em sua Sexta Eneada, que a alma se afasta da unidade e deixa de ser una quando apreende um objeto pela ciência; porque ciência é discurso e discurso é multiplicidade; é preciso portanto superar a ciência, abandonar a ciência e seus objetos, se não se quer perder a unidade de si mesmo, caindo no múltiplo que é o caminho da matéria e portanto do nada. — Do mesmo modo, Santo Agostinho   separa a ciência e a sabedoria; a sabedoria e a verdade segundo Santo Agostinho estão acima da razão e portanto da ciência; são explícitas neste sentido várias passagens de Santo Agostinho, principalmente no De Trinitate e no De Magistro.


[1Diógenes Laércio, II.L.VIII

[2D. Laércio, L.VIII. O conhecimento vulgar e o instinto se distinguem do entendimento e da racionalidade (estes se distinguem da sabedoria e da contemplação).

[3Como também observa Léon Robin, La Pensée Grecque, 1948, pág. 65