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Schopenhauer (MVR2:69-73) – animal e humano

terça-feira 14 de setembro de 2021, por Cardoso de Castro

  

Os animais têm entendimento, sem terem faculdade de razão, portanto, têm conhecimento INTUITIVO, mas não abstrato: apreendem corretamente, também captam imediatamente o nexo causal, e os animais superiores o captam inclusive através dos vários elos da cadeia causal; contudo, propriamente dizendo, não PENSAM. Pois lhes faltam os CONCEITOS, isto é, as representações abstratas. A consequência mais direta disto é a falta de uma verdadeira memória, de que carecem até mesmo os mais inteligentes dentre eles, e justamente isto fundamenta a principal diferença entre a sua consciência e a humana. A perfeita clareza de consciência baseia-se, em realidade, na consciência distinta do passado e do eventual futuro COMO TAIS e em conexão com o presente. Por conseguinte, a verdadeira memória aqui exigida para isso é uma recordação ordenada, coerente, que pensa: semelhante memória, entretanto, é possível apenas por meio de CONCEITOS UNIVERSAIS, de cuja ajuda precisa até mesmo a coisa inteiramente individual, para ser invocada em sua ordem e encadeamento. Pois a multidão inabarcável das coisas e dos acontecimentos semelhantes e do mesmo tipo em nosso decurso de vida não admite imediatamente uma recordação intuitiva e específica de cada coisa individual, para o que nem as forças da nossa ampla capacidade de recordação, nem o nosso tempo seriam suficientes: por consequência, tudo isso só pode ser conservado por meio da subsunção a conceitos universais e da daí originada remissão a relativamente poucas proposições, por meio das quais nós temos, então, constantemente à disposição um panorama ordenado e suficiente do nosso passado. Tão somente cenas isoladas do passado é que podemos presentificar-nos intuitivamente; mas o tempo desde então transcorrido e o seu conteúdo nós só temos consciência deles in abstracto por meio dos conceitos de coisas e números, os quais, então, representam os dias e os anos, junto com o seu conteúdo. A faculdade de recordação dos animais, ao contrário, é, como todo o seu intelecto, limitada ao que é INTUITIVO e consiste primariamente apenas no fato de uma impressão que é recorrente anunciar-se como já tendo existido, na medida em que a intuição presente refresca os traços de uma anterior: sua recordação, por consequência, é sempre intermediada pelo agora efetivamente presente. Este estimula justamente a primeira sensação e disposição que a primeira aparência havia produzido. Eis por que o cachorro reconhece os conhecidos, diferencia amigos de inimigos, encontra o caminho uma vez percorrido, as casas já visitadas, de modo bem fácil, e, pela visão de um prato ou pedaço de pau é de imediato colocado na correspondente disposição de ânimo. Sobre o emprego dessa faculdade de recordação que intui e do acentuado poder do hábito entre os animais, baseiam-se todos os tipos de adestramento: este, portanto, é tão diferente da educação humana quanto é o intuir do pensar. Também nós, em casos isolados, quando a memória propriamente dita falha no seu serviço, ficamos limitados àquela reminiscência meramente intuitiva, com o que podemos, por experiência própria, avaliar a diferença entre as duas: por exemplo, ao avistar uma pessoa que nos é conhecida e vem ao nosso encontro sem que recordemos quando e onde a vimos; igualmente, quando adentramos num lugar em que estivemos na primeira infância, portanto, no período em que a razão ainda não se desenvolvera, e o havíamos esquecido completamente; agora, entretanto, sentimos a impressão daquilo que é presente como algo que já existiu. Desse tipo são todas as recordações dos animais. Acresce ao que foi dito que, entre os animais mais inteligentes, essa memória meramente intuitiva eleva-se até um certo grau de FANTASIA, que, por sua vez, os auxilia, e devido à qual, por exemplo, um cachorro tem a imagem do seu senhor ausente pairando diante de si, o que estimula a saudade por ele, e devido à qual, no caso da longa ausência dele, o procura por toda parte. A consciência dos animais, portanto, é uma simples sucessão de momentos presentes, em que cada um destes, contudo, não existe como futuro antes de sua entrada em cena, nem como passado após o seu desaparecimento; algo que, como tal, é a característica distintiva da consciência humana. Justamente por isso os animais têm A SOFRER infinitamente menos que nós, porque eles não conhecem outra dor senão aquela que é produzida imediatamente pelo PRESENTE. O tempo presente, entretanto, é sem extensão; o futuro e o passado, ao contrário, que contêm a maioria das causas dos nossos sofrimentos, têm uma vasta extensão, e, ao seu conteúdo real, acrescenta-se o meramente possível, com o que se abre um campo a perder de vista para o desejo e o medo: já os animais, imperturbáveis diante desse campo, fruem calmos e serenos cada momento presente ainda suportável. Seres humanos bastante limitados podem, nesse aspecto, aproximarem-se deles. Ademais, os sofrimentos que pertencem SOMENTE ao presente só podem ser meramente físicos. Os animais não sentem propriamente dizendo nem mesmo a morte: só quando ela entra em cena é que eles podem conhecê-la; mas então não existem mais. Assim, a vida do animal é um contínuo presente. Ele aí vive sem introspecção e inteiramente absorvido no tempo presente: até mesmo a grande maioria de humanos vive sem introspecção. Uma outra consequência da exposta índole do intelecto dos animais é a precisa concordância da sua consciência com o seu entorno. Entre o animal e o mundo exterior não há nada: mas entre nós e o mundo exterior encontram-se sempre os nossos pensamentos sobre o mesmo, o que nos torna frequentes vezes estrangeiros a ele, e ele frequentes vezes inacessível a nós. Apenas em algumas crianças e pessoas bem toscas é que esse muro às vezes torna-se tão fino que, para saber o que lhes ocorre intimamente, precisa-se apenas ver o que ocorre ao seu redor. Por conseguinte, os animais não são capazes de intento nem de dissimulação: não têm segundas intenções. Nesse aspecto, o cachorro está para o ser humano como um copo de vidro está para um de metal, o que contribui muito para que o cachorro ganhe tanto valor entre nós: pois ele nos proporciona um grande deleite ao vermos nele, de maneira simples e em clara luz do dia, todas as nossas inclinações e afetos que tão frequentemente dissimulamos. Em geral, os animais jogam, por assim dizer, sempre com as cartas a descoberto na mesa: por isso consideramos com tanto prazer seu comportamento e ações entre si, seja quando pertencem a uma mesma espécie ou a espécies diferentes. Um certo selo de inocência os caracteriza ali, em oposição ao comportamento humano, que, como tal, pela entrada em cena da razão, e junto com esta a da clareza de consciência, faz perder a inocência da natureza. Em vez desta, o comportamento humano tem sempre o selo da intenção calculada, cuja ausência, e o consequente tornar-se-determinado pelo impulso do momento, constitui o caráter fundamental de todo comportamento animal. Nenhum animal é capaz de uma intenção calculada propriamente dita: concebê-la e segui-la é prerrogativa do ser humano, e uma prerrogativa cheia de importantes consequências. Decerto um instinto, como o da ave migratória, ou das abelhas, ou também um desejo permanente e duradouro, um anelo, como o do cachorro após a ausência do seu senhor, pode produzir a ilusão do intento, a qual, todavia, não deve ser confundida com o intento propriamente dito. — Tudo isso tem sua última razão de ser na relação entre o intelecto humano e o do animal, a qual pode ser assim expressa: os animais têm meramente um conhecimento IMEDIATO, nós ao lado deste ainda temos um conhecimento MEDIATO; e também aqui encontra lugar a vantagem que o conhecimento mediato tem sobre o imediato em muitas coisas, por exemplo, na trigonometria e análise, no operar através de máquinas em vez de por trabalho manual e assim por diante. Em função disso, pode-se dizer: os animais têm meramente um intelecto SIMPLES, nós um DUPLO; a saber, ao lado do que intui, ainda um que pensa; e as operações de ambos ocorrem frequentes vezes independentes uma da outra: nós intuímos uma coisa e pensamos em outra; amiúde, elas são conectadas entre si. Essa relação de coisas torna especialmente compreensível a essencial franqueza e ingenuidade dos animais acima mencionadas, em oposição ao mascaramento humano.


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