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O mundo como vontade e como representação. Segundo Tomo.

Schopenhauer (MVR2:586-589) – imortalidade do indivíduo

Suplementos Livro IV Capítulo 41

terça-feira 14 de setembro de 2021, por Cardoso de Castro

      

[SCHOPENHAUER  , Arthur. O mundo como vontade e como representação. Segundo Tomo. Tr. Jair Barboza. São Paulo: Unesp, 2015, p. 586-589]

      

Se, portanto, considerações desse tipo são decerto apropriadas para despertar   a convicção de que em nós há algo que a morte não pode destruir, isto só acontece por meio de uma ascensão a um ponto de vista a partir do qual o nascimento não é o começo de nossa existência. Daí se segue, todavia, que aquilo que é evidenciado como indestrutível pela morte não é propriamente o indivíduo  , que, de resto, surgido pela procriação e trazendo em si as características do pai   e da mãe, manifesta-se enquanto uma mera diferença   da species e, como tal, só pode ser finito  . Do mesmo modo, assim como o indivíduo não tem nenhuma recordação de sua existência antes do nascimento, assim também não poderá ter nenhuma recordação da sua atual existência após a morte. Ora, é na CONSCIÊNCIA que cada um põe o seu eu: este lhe aparece como ligado à individualidade, com a qual sucumbe tudo o que é próprio do indivíduo e que o diferencia dos outros. A persistência sem a individualidade lhe é, por isso, indiscernível da persistência dos outros seres, e ele vê o seu eu naufragar. Quem, no entanto, vincula a própria [586] existência à identidade   da CONSCIÊNCIA e assim exige para ela uma persistência sem fim após a morte, deveria refletir   que uma tal persistência só pode em todo caso ser alcançada à custa de um passado   igualmente sem fim antes do nascimento. Mas como não tem nenhuma recordação de uma existência antes do nascimento, e assim sua consciência principia com o nascimento, tem de olhar o nascimento como o surgimento de sua existência [II 560] a partir do nada. Mas então ele compra o tempo infinito   de sua existência após a morte, ao preço de um tempo igualmente infinito antes do nascimento: pelo que a conta fecha sem vantagem   para ele. Se, ao contrário, a existência que a morte deixa intacta é diferente daquela da consciência individual; então aquela existência tem de ser independente tanto da morte quanto do nascimento e a esse respeito, por conseguinte, é igualmente verdadeiro dizer: “eu sempre existirei” e “eu sempre existi”; o que então dá duas infinitudes no lugar de uma. — Na palavra “eu”, entretanto, encontra-se propriamente o maior dos equívocos, como sem mais reconhecerá quem tiver presente o conteúdo do nosso segundo livro e a distinção ali feita entre as partes volitiva e cognoscente do nosso ser. Segundo a maneira que compreendo aquela palavra, posso dizer: “a morte é o meu inteiro fim”; ou também: “do mesmo modo que sou uma parte tão infinitamente pequena do mundo, assim também essa minha aparência pessoal é uma parte igualmente pequena do meu ser verdadeiro”. Mas o eu é o ponto obscuro   na consciência, como na retina o ponto de entrada do nervo ótico é cego  , como o próprio cérebro é totalmente insensível, o corpo solar é obscuro, e o olho tudo vê, menos a si mesmo. Nossa faculdade de conhecimento é completamente direcionada para o exterior, de acordo com o fato de que ela é o produto de uma função cerebral, surgida para o fim da mera autoconservação, logo, para a procura de alimento e captura de presa. Por isso cada um sabe de si apenas como esse indivíduo, como ele se apresenta à intuição   exterior. Se ele pudesse no entanto tomar consciência do que é fora isso e para além disso, então deixaria voluntariamente escapar   a sua individualidade, sorriria da tenacidade   da sua lealdade para com esta e diria: “Que me importa a perda dessa individualidade se trago em mim a possibilidade de inumeráveis individualidades?”. Reconheceria que, mesmo que não lhe fosse assegurada uma perduração de sua individualidade, é como se a tivesse; porque ele [587] porta   em si mesmo uma perfeita compensação para ela. — Além do mais, poder-se-ia ainda ter em mente   que a individualidade da maior parte das pessoas é tão miserável e indigna, que elas em verdade nada perdem com ela, e o que nelas ainda pode ter algum valor   é o [II 561] humano em geral: e a este pode-se assegurar a imortalidade  . Sim, já a imutabilidade rígida e a limitação   essencial de cada individualidade como tal teriam de produzir finalmente com sua persistência sem fim, pela sua monotonia  , um fastio tão grande que, para ficar livre dela, melhor seria não ser   nada. Desejar a imortalidade da individualidade significa propriamente querer perpetuar um erro   ao infinito. Pois, no fundo, cada individualidade é apenas um erro   especial, um passo em falso, algo que seria melhor não ser, sim, algo em relação a que a meta de toda vida é encontrar uma saída. Isso encontra a sua confirmação no fato de que quase todos, sim, propriamente falando todos os humanos, são feitos de tal modo que não poderíam ser felizes, não importando o mundo em que fossem colocados. Pois na medida em que nesse outro mundo a necessidade   e a fadiga   fossem evitados, cairiam presas do tédio, e na medida em que este fosse prevenido, seriam agarrados pela necessidade, pelo flagelo e sofrimento  . Para um estado   de felicidade   do ser humano   não seria de modo algum suficiente que se o transportasse para um “mundo melhor”, mas também ainda seria exigido que nele próprio se desse uma alteração fundamental, logo, que ele não mais fosse o que é, mas em vez disso se tornasse o que não é. Mas para isso ele primeiro tem de deixar de ser o que é: esta exigência é satisfeita provisoriamente pela morte, cuja necessidade moral já pode ser apreendida a partir desse ponto de vista. Ser transportado para um outro mundo e alterar   todo o seu ser — é no fundo uma única e mesma coisa. Sobre isso baseia-se, por fim, também aquela dependência   do objetivo em relação ao subjetivo, exposta pelo idealismo do nosso primeiro livro: por conseguinte, reside aqui o ponto de ligação da filosofia transcendental com a ética. Se se levar isso em consideração  , encontrar-se  -á que só é possível acordar do sonho da vida se com ele também se desfaz toda trama do seu tecido: este é no entanto o seu órgão mesmo, o intelecto com suas formas, com o qual o sonho seria tecido ao infinito; tão estreitamente ambos se relacionam. Quanto àquilo que propriamente sonhou o sonho, e que é diferente do sonho, eis o que unicamente permanece [588]. Ao contrário, quem se preocupa com o fato de tudo poder findar com a morte, deve ser comparado com quem num sonho [II 562] pensa que há apenas sonhos, sem um sonhador. — Ora, depois que uma consciência individual tivesse desaparecido através da morte, seria então desejável que ela fosse de novo ressuscitada para subsistir ao infinito? A maior parte do seu conteúdo nada é, quase sempre, senão uma torrente de pensamentos mesquinhos, terrenos, pobres, de preocupações sem fim: deixai-a enfim repousar! Com inteira razão, portanto, gravavam os antigos em sua pedra   tumular: securitati perpetuae — ou bonae quieti. [1] Entretanto, se se quisesse aqui, como com frequência acontece, exigir a persistência da consciência individual para a ela vincular uma recompensa ou castigo   no além; então com isso, no fundo, visar-se-ia apenas a compatibilidade da virtude com o egoísmo. Ambos, todavia, nunca se abraçarão: são fundamentalmente opostos  . É, ao contrário, bem fundada a convicção imediata provocada pela visão das ações nobres de que o espírito do amor, que faz com que alguém poupe os seus inimigos, ou que um outro se interesse  , com perigo para a própria vida, por alguém que nunca viu antes, jamais poderá dissipar-se e ser reduzido a nada. —


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[1"Segurança eterna”, "Bom repouso”. (N. T.)