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Schopenhauer (MVR2:5-7) - idealismo

terça-feira 25 de fevereiro de 2020, por Cardoso de Castro

  

No espaço infinito, inumeráveis esferas brilhantes. Em torno de cada uma delas giram aproximadamente uma dúzia de outras esferas menores iluminadas pelas primeiras e que, quentes em seu interior, estão cobertas de uma crosta rígida e fria sobre a qual uma cobertura lodosa deu origem a seres vivos que pensam; — eis aí a verdade empírica, o real, o mundo. Todavia, para um ser que pensa, é uma situação penosa encontrar-se sobre a superfície daquelas inumeráveis esferas que vagam livremente no espaço sem fim, sem saber de onde veio nem para onde vai, sendo apenas mais um entre incontáveis seres semelhantes, que seguem seus ímpetos e impulsos, que se atormentam, nascendo e perecendo rapidamente, sem trégua, no tempo sem princípio nem fim: nada existe ali de permanente senão a matéria e o retorno das mesmas e variadas formas orgânicas, por meio de certos canais, e de certas vias inalteráveis. Tudo o que a ciência empírica pode ensinar é apenas a característica precisa e a regra de tais processos. — Ora, a filosofia moderna, sobretudo mediante Berkeley   e Kant  , clarificou afinal para si que tudo o que acabou de ser dito não passa de um FENÔMENO CEREBRAL, que implica tão amplas, múltiplas e variadas condições SUBJETIVAS, que a sua pretensa realidade absoluta desaparece e deixa espaço para uma ordem de mundo inteiramente diferente, que estaria na base do fenômeno, isto é, referir-se-ia a este como a coisa em si mesma que se refere àquilo que meramente aparece.

“O mundo é minha representação” — é, semelhante aos axiomas de Euclides  , um princípio que cada um tem de conhecer como verdadeiro assim que o entende; embora o mesmo não seja um princípio que cada um entenda assim que o ouve. — Ter trazido esse princípio à consciência e a ele vinculado o problema da relação entre o ideal e o real, isto é, entre o mundo na cabeça e o mundo exterior à cabeça, constitui, ao lado do enfrentamento do problema da liberdade moral, o caráter distintivo da filosofia moderna. Pois somente após séculos a fio ter-se praticado um filosofar meramente OBJETIVO é que se descobriu que, dentre as muitas coisas que fazem o mundo tão enigmático e problemático, a primeira e mais próxima é que, por mais incomensurável e massivo que ele seja, sua existência depende, todavia, de um único fiozinho: e este é a consciência de cada um, na qual ele repousa. Essa condição, implicada irrevogavelmente na existência do mundo, imprime neste, apesar de toda a sua realidade EMPÍRICA, o selo da idealidade e, com este, o da simples APARÊNCIA; com o que o mundo, pelo menos de um lado, tem de ser reconhecido como aparentado ao sonho e colocado na mesma classe deste. Pois a mesma função cerebral que durante o sono produz como que magicamente um mundo perfeitamente objetivo, intuitivo e até mesmo palpável tem de ter participação igual na exposição do mundo objetivo da vigília. Esses dois mundos, embora diferentes por sua matéria, são evidentemente formados a partir de um mesmo molde. Esse molde é o intelecto, a função cerebral. — Aparentemente, Descartes   foi o primeiro a atingir o grau de introspecção exigido para aquela verdade fundamental e, em consequência, converteu-a, apesar de apenas provisoriamente e só na figura da desconfiança cética, no ponto de partida de sua filosofia. Quando ele considerou o cogito ergo sum, “penso, logo existo”, como unicamente certo, e a existência do mundo como provisoriamente problemática, encontrou de fato o ponto de partida essencial, o único correto de toda filosofia e o seu VERDADEIRO ponto de apoio. Esse ponto de apoio absolutamente necessário e essencial é O subjetivo, a própria CONSCIÊNCIA. Pois apenas esta é e permanece o imediato: qualquer outra coisa, não importa o que, é primeiro mediada e condicionada por ela, portanto depende dela. Por isso se considera, com razão, que Descartes é o pai e inaugurador da filosofia moderna. Continuando nesse caminho, Berkeley chegou, não muito depois, ao IDEALISMO propriamente dito, vale dizer, ao conhecimento de que o extenso no espaço, isto é, o mundo material e objetivo existe como tal apenas em nossa representação, e é falso, um verdadeiro absurdo, atribuir-lhe COMO TAL uma existência fora da representação, independente do sujeito que conhece, portanto, admitir uma matéria existente em si de maneira absoluta. Essa intelecção totalmente correta e profunda constitui, entretanto, toda a filosofia de Berkeley propriamente dita: ela esgotou-se nisso.

Por consequência, a verdadeira filosofia tem sempre de ser IDEALISTA; do contrário, não é honesta. Pois nada é mais certo que isto: pessoa alguma pode sair de si mesma para identificar-se imediatamente com as coisas diferentes de si; tudo aquilo de que alguém está seguro, isto é, de que tem percepção imediata, reside no interior de sua consciência. Por conseguinte, para além desta não pode haver certeza IMEDIATA alguma: esta, todavia, todos os primeiros princípios de uma ciência têm de possuir. Ora, é bastante adequado ao ponto de vista empírico das restantes ciências admitir que o mundo objetivo existe de maneira absoluta. O mesmo, todavia, não ocorre na filosofia, que tem de remontar ao que há de primeiro e mais originário. Apenas a CONSCIÊNCIA é dada imediatamente, por isso o fundamento DA FILOSOFIA está limitado aos fatos da consciência, isto é, a filosofia é essencialmente IDEALISTA. — O realismo, recomendável por suas aparências de autenticidade ao entendimento rude, parte justamente de uma hipótese arbitrária e é, portanto, um castelo no ar, na medida em que pula ou nega o fato primeiro, a saber, tudo o que conhecemos reside no interior da consciência. Que a EXISTÊNCIA OBJETIVA das coisas é condicionada por um ser que representa e, consequentemente, o mundo objetivo existe só COMO REPRESENTAÇÃO, não é uma hipótese, muito menos uma sentença apelável ou uma disputa em torno de um paradoxo, mas sim a verdade mais certa e simples, cujo conhecimento só é dificultado pelo fato de ser demasiado simples e nem todos possuírem a clarividência suficiente para remontar aos primeiros elementos de sua consciência das coisas. De modo algum pode haver uma existência absoluta e objetiva em si mesma; tal coisa é até mesmo impensável, pois o que é objetivo enquanto tal tem sempre e essencialmente sua existência na consciência de um sujeito, é, portanto, sua representação, consequentemente, é condicionado por ele e também por suas formas de representação, as quais dependem do sujeito e não do objeto. (p. 5-7)


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