Página inicial > Modernidade > Arthur Schopenhauer > Schopenhauer (MVR2:10-13) - vive-se na ordem subjetiva

Schopenhauer (MVR2:10-13) - vive-se na ordem subjetiva

terça-feira 25 de fevereiro de 2020, por Cardoso de Castro

  

O verdadeiro idealismo, ao contrário, não é propriamente o empírico, mas o transcendental. Este deixa intocada a realidade EMPÍRICA do mundo, todavia assegura que todo OBJETO, portanto o real empírico em geral, é duplamente condicionado pelo SUJEITO: primeiro MATERIALMENTE, ou como OBJETO em geral, visto que uma existência objetiva só é pensável em face de um sujeito e sua representação; segundo, FORMALMENTE, na medida em que o MODO de existência do objeto, isto é, de ser representado (espaço, tempo, causalidade), depende do sujeito, está predisposto nele. Ao idealismo simples ou de Berkeley  , que diz respeito ao OBJETO EM GERAL, une-se imediatamente o KANTIANO, concernente ao MODO especificamente dado do ser-objeto. Isso demonstra que a totalidade do mundo material com seus corpos extensos no espaço e possuidores de uma relação causal entre si por conta do tempo, e tudo o mais que daí depende, não constitui uma existência INDEPENDENTE de nossa cabeça, mas tem seus pressupostos básicos em nossas funções cerebrais, apenas POR MEIO das quais e NAS quais uma TAL ordem objetiva das coisas é possível; porque tempo, espaço e causalidade, sobre os quais repousam todos aqueles processos reais e objetivos, também nada mais são eles mesmos que funções do cérebro; com o que aquela ORDEM inalterável das coisas, que confere o critério e o fio condutor de sua realidade empírica, depende do cérebro e exclusivamente por meio deste obtém a sua garantia: Kant   expôs isso de modo pormenorizado e com profundidade; apenas não menciona o cérebro, mas diz: “a faculdade de conhecimento”. Ele até mesmo tentou demonstrar que aquela ordem objetiva no tempo, no espaço, na causalidade, na matéria etc. — sobre os quais baseiam-se em última instância todos os eventos do mundo real — considerada estritamente não se deixa uma vez sequer PENSAR como subsistindo por si, ou seja, como ordem das coisas em si mesmas, ou como algo absolutamente objetivo e incondicionalmente existente, na medida em que, caso se a tente pensar até o fim, cai-se em contradições. Expor isso foi a intenção das antinomias: todavia, no apêndice à minha obra, demonstrei o fracasso do intento. — Por outro lado, a doutrina kantiana, mesmo sem as antinomias, leva à intelecção de que as coisas e a maneira de sua existência estão vinculadas inseparavelmente com nossa consciência delas; em consequência, quem concebeu isto claramente logo atinge a convicção de que supor a existência das coisas enquanto tais também exteriormente à nossa consciência e independentes dela é realmente um absurdo. O fato de estarmos tão profundamente imersos no tempo, no espaço, na causalidade e em todo o processo legal da experiência que neles se baseia, e ainda que estejamos aqui (e até mesmo os animais) tão naturalmente em casa e saibamos desde o início aí nos orientarmos — não seria possível se o nosso intelecto e as coisas fossem completamente diferentes; antes, a única explanação de tudo isso é que ambos constituem um todo, o intelecto mesmo cria aquela ordem e existe somente para as coisas, e estas, por sua vez, existem apenas para ele.

Mesmo prescindindo das profundas intelecções que somente a filosofia kantiana proporciona, a inadmissibilidade da hipótese tenazmente admitida do REALISMO absoluto pode ser demonstrada imediatamente, ou ao menos fazer-se sensível, pelo simples esclarecimento de seu sentido mediante considerações como a que se segue. — Segundo o realismo, o mundo tal qual o conhecemos deve existir também independentemente desse conhecimento. Ora, façamos uma vez desaparecer do mundo todo ser cognoscente e deixemos apenas a natureza inorgânica e vegetal. Estão ali penhasco, árvore, riacho e céu azul: Sol, Lua e estrelas iluminam o mundo, como antes; porém, é óbvio que em vão, pois olho algum existe ali que os veja. Doravante façamos adicionalmente a inserção de um ser cognoscente. Então aquele mundo expõe-se em seu cérebro MAIS UMA VEZ e repete-se em seu interior exatamente como era antes fora dele. Assim, pois, ao PRIMEIRO mundo juntou-se agora um SEGUNDO, que, embora separado por completo do primeiro, assemelha-se a ele como um fio de cabelo a outro. Assim como está arranjado o mundo OBJETIVO no espaço OBJETIVO sem fim, exatamente assim está agora arranjado no espaço SUBJETIVO conhecido o mundo SUBJETIVO dessa intuição. O último, contudo, leva a vantagem em face do primeiro por ter o conhecimento de que aquele espaço ali fora é sem fim, até mesmo pode tornar preciso de antemão com minúcia a legalidade completa de todas as relações possíveis nele, embora ainda não efetivadas, sem precisar para isso de uma experiência prévia: ademais, também pode tornar preciso tanto o decorrer do tempo quanto a relação de causa e efeito que rege as mudanças exteriores. Penso que tudo isso, numa consideração mais apurada, revela o grande absurdo, e assim leva à convicção de que aquele mundo absolutamente OBJETIVO fora da cabeça, independente dela e ANTERIOR a todo conhecimento, que presumimos ter pensado no início, não era outro senão o segundo, conhecido SUBJETIVAMENTE, o mundo da representação, que é o único que realmente podemos pensar. Eis por que se impõe naturalmente a hipótese de que o mundo, tal como o conhecemos, existe apenas para o nosso conhecimento, portanto exclusivamente na REPRESENTAÇÃO, jamais exterior a ela. Em conformidade com isso, a coisa em si, isto é, aquilo que existe independentemente do nosso e de qualquer outro conhecimento, é algo completamente diferente da REPRESENTAÇÃO e de todos os seus atributos, ou seja, da objetividade em geral, O que seria a coisa em si constituirá, a seguir, o tema do nosso segundo livro. (p. 10-13)


Ver online : Arthur Schopenhauer