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Schopenhauer (MVR1:358-361) – a morte

quinta-feira 21 de setembro de 2023, por Cardoso de Castro

  

Como a Vontade é a coisa-em-si, o conteúdo íntimo, o essencial do mundo, e a vida, o mundo visível, o fenômeno, é seu espelho; segue-se daí que este mundo acompanhará a Vontade tão inseparavelmente quanto a sombra acompanha o corpo. Onde existe Vontade, existirá vida, mundo. Portanto, à Vontade de vida a vida é certa, e, pelo tempo em que estivermos preenchidos de Vontade de vida, não precisamos temer por nossa existência, nem pela visão da morte. Decerto vemos o indivíduo nascer e perecer. Entretanto, o indivíduo é apenas fenômeno, existe apenas para o conhecimento pertencente ao princípio de razão, para o principio individuationis. Da perspectiva desse conhecimento, o indivíduo ganha a sua vida como uma dádiva, surge do nada, e depois sofre a perda dessa dádiva através da morte, voltando ao nada. Todavia, como queremos considerar filosoficamente a vida, a saber, suas Ideias, notaremos que nem a Vontade, a coisa-em-si em todos os fenômenos, nem o sujeito do conhecimento, o espectador de todos fenômenos, são afetados de alguma maneira por nascimento e morte. Nascimento e morte pertencem exclusivamente ao fenômeno da Vontade, logo, à vida, à qual é essencial expor-se em indivíduos, os quais nascem e perecem. Indivíduos que são fenômenos fugidios Daquilo que, apesar de aparecer na forma do tempo, em si mesmo não conhece tempo algum, porém tem de expor-se exatamente da maneira mencionada para assim objetivar a sua essência propriamente dita. Portanto, nascimento e morte pertencem igualmente à vida e se equilibram como condições recíprocas, ou, caso se prefira a expressão, como pólos de todo o fenômeno da vida. A mais sábia de todas as mitologias, a indiana, exprime isso dando ao Deus que simboliza a destruição e a morte (como Brama, o Deus mais pecaminoso e menos elevado do Trimurti, simboliza a geração e o nascimento, e Vishnu a conservação), Shiva, o atributo do colar de caveiras e, ao mesmo tempo, o linga, símbolo da geração, que aparece como contrapartida da morte. Dessa forma indica-se que geração e morte são correlatas essenciais que reciprocamente se neutralizam e suprimem. – O mesmo sentimento levava os gregos e os romanos a [358] adornar seus preciosos sarcófagos, como ainda hoje em dia os vemos, com festas, danças, núpcias, caçadas, lutas de animais, bacanais, portanto com representações do ímpeto violento da vida, o qual tratam não apenas nesses divertimentos mas também em grupos voluptuosos, indo até mesmo ao ponto de exibir o intercurso sexual entre sátiros e cabras. O objetivo, manifestamente, era, por ocasião da morte do indivíduo chorado, apontar com grande ênfase para a vida imortal da natureza e, assim, embora sem conhecimento abstrato, aludir ao fato de toda a natureza ser o fenômeno e também o preenchimento da Vontade de vida. A forma desse fenômeno é tempo, espaço e causalidade, e por intermédio deles a individuação, que acarreta consigo o nascer e o perecer individuais, sem contudo atingir a Vontade de vida – de cujo fenômeno o indivíduo é, por assim dizer, só um exemplo particular ou espécime –, tampouco quanto o todo da natureza é injuriado pela morte do indivíduo. Pois não é este, mas exclusivamente a espécie, que merece os cuidados da natureza, a qual, com toda seriedade, obra por sua conservação e prodigamente se preocupa com ela mediante o excedente bizarro de sêmens e grande poder do impulso de fecundação. O indivíduo, ao contrário, não tem valor algum para ela, nem pode ter, pois o seu reino é o tempo infinito, o espaço infinito e, nestes, o número infinito de possíveis indivíduos. Eis por que ela sempre está disposta a deixar o ser individual desaparecer, o qual portanto se sujeita não apenas a sucumbir em milhares de maneiras diferentes, por meio dos acasos mais insignificantes, mas originariamente já é determinado a isso e levado a desaparecer pela própria natureza desde o instante em que tenha servido à conservação da espécie. A natureza diz aí, bem ingenuamente, a grande verdade: apenas as Ideias, não os indivíduos, têm realidade propriamente dita, isto é, são objetidade perfeita da Vontade. Ora, como o homem é a natureza mesma, e decerto no grau mais elevado de sua autoconsciência, e por seu turno a natureza é apenas a Vontade de vida objetivada; o homem que apreendeu e permaneceu neste ponto de vista pode certamente, e com justeza, consolar a si mesmo em face de sua morte e da de seus amigos, quando olha retrospectivamente a vida imortal da natureza, pois sabe que esta é ele mesmo. Conseguintemente, é dessa maneira que Shiva, com o linga, deve ser entendido, bem como aqueles antigos sarcófagos que com seus [359] quadros da vida mais ardente exclamam aos espectador choroso: Natura non contristatur [A natureza não se entristece]. [tr. Jair Barboza; SMVR1: Livro IV §54]

Que geração e morte devam ser consideradas como algo pertencente à vida e essencial ao fenômeno da Vontade, advêm do fato de ambas se apresentarem apenas como expressão altamente potenciada Daquilo a partir do que consiste todo o restante da vida, que nada mais é, em toda parte, senão uma alteração contínua da matéria sob a permanência invariável da forma. Justamente aí se tem a transitoriedade dos seres individuais em meio à imortalidade da espécie. A alimentação e a reprodução contínuas são diferentes da geração tão-somente segundo o grau, assim como a excreção contínua é também diferente da morte apenas segundo o grau. O primeiro caso se mostra do modo mais simples e distinto na planta; esta é por completo apenas a repetição do mesmo impulso em fibras elementares agrupadas em folhas e ramos; é um agregado sistemático de plantas homogêneas que se sustentam umas às outras, cujo único impulso é a constante reprodução. Em vista da satisfação completa dele, ela ascende gradativamente, por metamorfose, até a floração e o fruto, compêndio de sua existência e de seu esforço, em que alcança, pelo caminho mais curto, aquilo que é seu único alvo. Doravante, de um só golpe, consuma em muitos mil exemplares o que até então só realizava em particular: repetição de si mesma. Seu impulso até o fruto está para este, como o escrito está para a impressão do livro. O processo de alimentação é uma geração contínua, enquanto o processo de geração é um alimentar-se altamente potenciado. A volúpia no ato de procriar é o contentamento mais elevadamente potenciado do sentimento de vida. Por seu turno, a excreção, a constante exalação e a eliminação de matéria é o mesmo que, numa potência mais elevada, é a morte, oposta da geração. Ora, assim como estamos a todo momento contentes em conservar a forma, sem lamentar a matéria perdida, também temos de nos comportar do mesmo modo quando na morte ocorre o mesmo, porém numa potência mais elevada e no todo, que aquilo que ocorre a cada dia e a cada hora no particular com a excreção. Do mesmo [360] modo que somos indiferentes num caso, não devemos tremer no outro. Desse ponto de vista, portanto, aparece tão absurdo desejar a perduração de nossa individualidade, a qual é substituída por outros indivíduos, quanto desejar a conservação da matéria do nosso corpo, a qual é continuamente renovada. Do mesmo modo, aparece tão tolo embalsamar cadáveres como o seria conservar nossos excrementos. No que concerne à consciência individual ligada ao corpo individual, a primeira é diária e por completo interrompida pelo sono. O sono profundo, que muitas vezes faz lentamente sua transição para morte, como no caso do congelamento, difere dela não pelo presente de sua duração mas apenas pelo futuro, ou seja, em relação ao despertar. A morte é um sono no qual a individualidade é esquecida: tudo o mais desperta de novo, ou, antes, permaneceu desperto [Também a seguinte consideração pode servir (àquele para a qual ela não é demasiado sutil) na compreensão distinta de que o indivíduo é apenas o fenômeno, não a coisa-em-si. Cada indivíduo é, por um lado, sujeito do conhecer, isto é, a condição complementar da possibilidade de todo o mundo objetivo, e, por outro, fenômeno singular da Vontade, da mesma que se objetiva em cada coisa. Mas essa duplicidade de nosso ser não repousa numa unidade subsistente por si, do contrário poderíamos ser conscientes de nós em nós mesmos independentemente dos objetos do conhecer e do querer, o que absolutamente não podemos mas, assim que descemos em nós para conseguir isso e direcionamos o conhecimento para o nosso interior, querendo conhecer-nos plenamente de uma vez, perdemo-nos num vazio sem fundo, sentindo-nos semelhantes a uma esfera oca de cristal, da qual soa uma voz, cuja causa, entretanto, não encontramos ali; quando queremos assim apreender a nós, nada obtemos senão, assustados, um fantasma instável]. [tr. Jair Barboza; SMVR1: Livro IV §54]


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