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MacIntyre (DV:21-30) – discordâncias na linguagem moral

domingo 23 de agosto de 2020, por Cardoso de Castro

  

A característica mais marcante da linguagem moral contemporânea é ser muito utilizada para expressar discordâncias; e a característica mais marcante dos debates que expressam essas discordâncias é seu caráter interminável. Não quero com isso dizer apenas que esses debates se arrastam - embora seja o que ocorre - mas também que obviamente não conseguem chegar a um fim. Parece que não existe meio racional de garantir acordo moral em nossa cultura. Analisemos três exemplos de tal debate moral contemporâneo, estruturados segundo as características e as argumentações morais adversárias conhecidas:

1 [...]

2 (a) Todos têm certos direitos sobre sua própria pessoa, entre eles sobre o próprio corpo. Segue-se que, da natureza desses direitos, no estágio em que o embrião faz parte do corpo da mãe, ela tem o direito de tomar sua própria decisão espontânea acerca de querer ou não interromper a gravidez. Por conseguinte, o aborto é permissível e deve ser permitido por lei.

(b) Não posso desejar que minha mãe tivesse abortado quando estava grávida de mim, a não ser, talvez, se houvesse certeza de que o embrião estivesse morto ou gravemente mutilado. Mas, se não posso desejá-lo em meu próprio caso, como posso negar a outros o direito à vida que reivindico para mim mesmo? Eu transgrediría a dita Regra de Ouro, a menos que negasse que a mãe tem, em geral, o direito ao abortamento. Não defendo, portanto, a opinião de que o aborto devia ser proibido por lei.

(c) Assassinar é errado. Assassinar é tirar uma vida inocente. O embrião é um indivíduo identificável, cuja [22] única diferença do recém-nascido é estar num estágio anterior na longa estrada rumo às capacidades adultas e, se é que há vida inocente, a desse embrião o é. Se infanticídio é assassinato, como realmente é, o abortamento é assassinato. Por conseguinte, abortar não é apenas moralmente errado, mas devia ser proibido por lei.

3 [...]

[...] Quais características proeminentes têm em comum esses debates e essas discordâncias?

São de três tipos. A primeira é o que vou chamar, adaptando uma expressão da filosofia da ciência, de incomensurabilidade conceitual dos argumentos adversários em cada um dos três debates. Cada uma das argumentações é logicamente válida ou pode ser facilmente expandida de modo a tornar-se válida; as conclusões realmente provêm das premissas. Mas as premissas adversárias são tais que não temos meios racionais de sopesar as afirmações uma com a outra, pois cada premissa emprega um conceito normativo ou avaliativo bem diferente das outras, de modo que as afirmações são de tipos bem distintos. [...] na segunda, as premissas que invocam os direitos se opõem às que invocam a possibilidade de universalização; [...] É precisamente porque não existe maneira estabelecida em nossa sociedade de decidir entre essas afirmações que a discussão moral parece necessariamente interminável. De nossas conclusões rivais [24] podemos argumentar de volta até nossas premissas opostas; mas quando chegamos a nossas premissas a discussão para e a invocação de uma premissa contra outra se torna questão de pura afirmação e contra-afirmação. Donde, talvez, o tom um tanto estridente de tantos debates morais.

Mas essa estridência pode ter um fonte adicional, pois não é só nas discussões com outrem que nos reduzimos tão rapidamente a afirmações e contra-afirmações; também é nas discussões que travamos dentro de nós mesmos. Sempre que alguém entra no foro do debate público, é provável que já tenha resolvido a questão, explícita ou implicitamente, na própria cabeça. Contudo, se não temos critérios incontestáveis, nenhum conjunto de razões irresistíveis por meio das quais possamos convencer nossos adversários, segue-se que, ao tomar nossas próprias decisões, talvez não tenhamos recorrido a tais critérios ou motivos. Se me faltam quaisquer boas razões para invocar contra alguém, deve parecer que me faltam boas razões. Portanto, parece que em apoio à minha opinião deve haver alguma decisão não-racional de adotar tal postura. Correspondente à interminabilidade da discussão pública há, no mínimo, a aparência de uma inquietante arbitrariedade privada. Não será de admirar se nos tornarmos defensivos e, portanto, estridentes.

Uma segunda característica dessas discussões, igualmente importante, porém contrastante, é que elas, não obstante, se fazem passar por argumentações racionais impessoais e, assim, costumam ser apresentadas de maneira apropriada a essa impessoalidade. Que maneira é essa? Analisemos dois modos pelos quais eu poderia justificar uma ordem para que alguém execute algum ato específico. No primeiro caso, eu digo: “Faça tal coisa”. A pessoa a quem me dirigi responde: “Por que devo fazer isso?” Eu [25] respondo: “Porque eu quero”. Nesse caso, não dei à pessoa razão nenhuma para fazer o que mandei ou pedi, a não ser que ela tenha, por conta própria, algum motivo especial para realizar meus desejos. Se eu for seu oficial superior – na polícia, digamos, ou no exército — ou tiver algum poder ou autoridade sobre essa pessoa, ou se ela me ama, ou me teme, ou quer algo de mim, ao dizer “porque eu quero” dei-lhe realmente uma razão, embora talvez não suficiente, para fazer o que mandei. Vale notar que, nesse caso, se a minha elocução lhe dá razão ou não, depende de certas características que possua na época em que a pessoa a ouviu ou, caso contrário, soube da minha declaração. O poder de dar razões que a ordem tem depende, dessa maneira, do contexto pessoal da declaração.

Vamos comparar com isso o caso em que a resposta à pergunta “Por que devo fazer isso?” (depois de alguém ter dito “faça tal coisa”) não é “Porque eu quero”, mas algo como “Porque agradaria a tantas pessoas” ou “Porque é sua obrigação”. Nesse caso, a razão dada para a ação é ou não uma boa razão para a execução do ato em questão independentemente de quem o enuncia, ou mesmo de ser enunciado. Ademais, apela-se a um tipo de análise independente da relação entre o falante e o ouvinte. Seu uso pressupõe a existência de critérios impessoais — a existência, sejam quais forem as preferências ou opiniões do falante e do ouvinte, de padrões de justiça, ou de generosidade, ou de dever. O elo especial entre o contexto da elocução e a força da justificativa, que sempre se mantém no caso de expressões de preferências ou desejos pessoais, se rompe no caso de elocuções morais ou de outro tipo de valor.

Essa segunda característica do discurso e da argumentação morais contemporâneas, quando combinada à [26] primeira, confere um tom paradoxal ao desacordo moral contemporâneo, pois se déssemos atenção somente à primeira característica, ao modo como o que a princípio parece ser discussão recai tão rapidamente em desacordo sem argumentação, poderíamos concluir que esses desacordos contemporâneos nada são além de um choque de vontades antagônicas, cada vontade determinada por um conjunto de opções arbitrárias próprias. Mas esta segunda característica – o uso de expressões cuja função característica em nossa linguagem é representar o que se propõe ser um apelo a padrões objetivos – sugere outra coisa, pois mesmo que essa aparência superficial de uma argumentação seja apenas um disfarce, permanece a pergunta: “Por que esse disfarce?” O que há de tão importante na argumentação racional que ela seja a aparência quase universal presumida pelos que se engajam no conflito moral? Isso não sugere que a argumentação moral praticada em nossa cultura expressa, pelo menos, uma aspiração a ser ou a tornar-se racional nessa área de nossa vida?

Uma terceira característica nítida no debate moral contemporâneo está intimamente ligada às duas primeiras. É fácil perceber que as premissas conceitualmente distintas e incomensuráveis das argumentações adversárias expostas nesses debates têm uma grande diversidade de origens históricas. [...] No segundo debate, compara-se um conceito de direitos com antecedentes lockeanos a uma visão de universabilidade nitidamente kantiana, e um [27] apelo à lei moral que é tomista. [...] Esse catálogo de grandes nomes é sugestivo; mas pode ser enganoso de duas formas. Citar nomes pode nos levar a subestimar a complexidade da história e a linhagem de tais argumentações; e pode levar-nos a procurar somente essa história e essa linhagem nos escritos de filósofos e teóricos, em vez de procurá-las naqueles intrincados corpos de teorias e práticas que constituem as culturas humanas, cujas crenças são expressas pelos filósofos e teóricos apenas de maneira parcial e seletiva. Mas o catálogo de nomes demonstra como são amplas e heterogêneas as fontes morais das quais somos herdeiros. A retórica superficial da nossa cultura tende a falar complacentemente de pluralismo moral nesse contexto, mas a noção de pluralismo é muito imprecisa, pois pode muito bem aplicar-se tanto a um diálogo ordenado de opiniões em intercessão, como a uma mistura desarmônica de fragmentos mal-organizados. A desconfiança – e por ora só pode ser desconfiança – de que é com a última que devemos lidar, aumenta quando reconhecemos que todos esses conceitos diversos que dão forma ao nosso discurso moral tiveram origem em totalidades maiores de teoria e prática, nas quais ocupavam um papel e função fornecidos por contextos dos quais foram agora privados. Ademais, os conceitos que empregamos mudaram de caráter, pelo menos em alguns casos, nos últimos trezentos anos; as expressões normativas que usamos mudaram de significado. Na transição da diversidade de contextos dos quais só originaram até nossa cultura Contemporânea, "virtude", “justiça”, “piedade”, “obrigação” e até “dever” tornaram-se diferentes do que eram. Como devemos escrever a história de tais transformações? [28]

É na tentativa de responder a essa pergunta que se torna clara a ligação entre essas características do debate moral contemporâneo e minha hipótese inicial. Se estou correto, pois, ao presumir que a linguagem da moralidade passou de um estado de ordem para um estado de desordem, essa passagem certamente se refletirá justamente nessa mudança de significado — na verdade, consistirá nelas, em parte. Além disso, se as características das nossas próprias argumentações morais que eu identifiquei – mais notavelmente o fato de tratarmos a argumentação moral, simultânea e incoerentemente, como exercício de nossos poderes racionais e mera afirmação expressiva – são sintomas de desordem moral, devemos ser capazes de construir uma narrativa histórica verdadeira na qual, em um estágio anterior, a argumentação moral é de tipo bem diferente. Podemos?

Um obstáculo a isso tem sido o tratamento anti-histórico persistente que os filósofos contemporâneos vêm aplicando à filosofia moral, tanto ao escrever sobre o assunto quanto ao ensiná-lo. Com muita frequência ainda tratamos os filósofos morais do passado como contribuindo para um único debate com conteúdo relativamente invariável, tratando Platão, Hume   e Mill como contemporâneos nossos e uns dos outros. Isso leva a abstrair esses filósofos do meio social e cultural no qual viveram e pensaram e, assim, a história de seu pensamento adquire uma falsa independência do resto da cultura. Kant   deixa de fazer parte da história da Prússia, Hume já não é mais escocês, pois, do ponto de vista da filosofia moral como nós a concebemos, essas características tornaram-se insignificantes. História empírica é uma coisa, filosofia é bem outra. Mas estamos corretos ao compreender a divisão entre disciplinas [29] acadêmicas da maneira como o fazemos convencionalmente? Novamente parece haver relação possível entre a história do discurso moral e a história do currículo acadêmico.


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