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Rouanet: característica cognitivista da filosofia moral da Ilustração

sábado 15 de agosto de 2020, por Cardoso de Castro

  

Chamo cognitivista aquela atitude intelectual que postula a possibilidade de uma ética capaz de prescindir da religião revelada e que, em princípio, não vê diferença categorial entre o conhecimento do mundo empírico e o conhecimento [149] do mundo moral: a mesma razão capaz de desvendar as estruturas do mundo natural é capaz de descobrir os fundamentos do comportamento moral e da norma ética. Visto nestes termos, o pensamento moral da Ilustração foi absolutamente cognitivista.

A rejeição da religião revelada era a essência desse pensamento. Ele repudiava a fé institucionalizada e sustentava a possibilidade de construir uma sociedade ética, uma sociedade justa, sem que esta precisasse depender dos ensinamentos da religião. Foi o chamado paradoxo de Bayle, filósofo anterior à Ilustração, mas que a influenciou decisivamente. Ele dizia que uma sociedade de ateus pode ser mais ética que uma sociedade baseada na religião. Estou falando do final do século XVII; essa ideia chocou imensamente os pudibundos, os piedosos, e Bayle só não foi parar na fogueira porque teve a prudência de escrever na Holanda, país em que a Inquisição não era muito popular. Mas essa ideia de que a moral é dissociável da religião difundiu-se muito no século XVIII e praticamente todos os filósofos da época aderiram a esse “paradoxo”, radicalizando-o. Para eles, a religião não somente não era necessária para fundar o comportamento virtuoso como o impedia. Voltaire, por exemplo, dizia que os maiores massacres da história, as maiores abominações da humanidade tinham sido praticadas em nome da religião e citava a propósito a Noite de São Bartolomeu. Como vocês sabem, esse foi um dos episódios mais sinistros das guerras de religião que assolaram a Europa no século XVI. A ideia dos filósofos era que, uma vez afastado o fundamento religioso, seria possível basear a moral em fundamentos leigos, seculares.

Quanto à natureza desses fundamentos, a Ilustração propôs basicamente três respostas.

Primeiro, a jusnaturalista. A moral podia ser fundada a partir da conformidade do comportamento humano com a lei da natureza. Rousseau   dizia que a natureza gravou em nossos corações os critérios que permitem julgar soberanamente quanto ao bem e ao mal, o justo e o injusto. O fundamento último, portanto, era uma razão natural, uma natureza universal, igual em todas as latitudes, comum a todos os homens.

A segunda resposta foi empirista, a partir da filosofia sensualista de filósofos como D’Alembert, Holbach e Helvétius. Diziam eles que o homem é um animal organizado, sujeito a paixões e que se relaciona com o mundo exterior basicamente através das sensações. O fundamento da moral seriam as sensações do prazer e do desprazer, do agradável e do desagradável. O homem naturalmente é movido pelo desejo de buscar o seu prazer e de evitar o desprazer, e nisso consiste o seu interesse. É esse o fundamento da moral, um fundamento leigo, puramente imanentista.

E, finalmente, a terceira resposta diz que a norma se funda na conformidade com a própria razão. Foi a resposta de Kant  . Para ele, a moralidade não se funda nem na natureza nem nas sensações, mas na razão. Não pode se fundar na natureza porque a natureza é o mundo do determinismo e a moralidade supõe a existência da liberdade; e não se pode fundar no interesse porque o [150] interesse é a esfera da heteronomía, a esfera do que existe de externo à razão livre do homem. Ele dizia que a moralidade se funda num procedimento interno à própria razão. Aqueles que leram Kant sabem do que estou falando: é o famoso imperativo categórico, procedimento pelo qual o indivíduo testa a máxima de suas ações para saber em que medida ela é generalizável. Se essa máxima for generalizável, se for suscetível de ser querida por todos, sem contradição interna poderia aspirar ao estatuto de lei moral universal.

São essas as principais orientações da filosofia ética da Ilustração. Comum a todas é a ideia de que a moralidade pode prescindir da revelação, de que é possível fundá-la em algo mais que em sua conformidade com os dez mandamentos.

Os partidários da lei natural diriam que o preceito “não roubarás’’ deriva da própria natureza das coisas, deriva do critério gravado em todos os corações humanos, que recomenda o respeito à propriedade. Os empiristas diriam que o preceito pode ser justificado pelo desprazer que adviria da sanção sofrida pelo indivíduo que roubasse. Kant diria que a norma “não roubar” pode ser validada pelo imperativo categórico, porque se eu roubar e quiser transformar essa máxima em princípio de minhas ações, convertendo o enriquecimento ilícito em norma universal, todos roubariam, e portanto eu não poderia conservar a posse do bem furtado. Haveria, portanto, uma contradição interna, e com isso a norma seria validada pela própria razão. Em suma, a norma seria legitimada por um fundamento jusnaturalista, um fundamento empirista, sensualista, e um fundamento baseado na própria razão.


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