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Grassi (PI:56-58) – o animal e seu meio

quarta-feira 12 de agosto de 2020, por Cardoso de Castro

  

O animal vive no seu ambiente; desde o nascimento ele dispõe de “portadores de significados” que determinam seu comportamento; para o animal não existe “processo de formação”. O ser humano, ao contrário, é “aberto ao mundo” ou, em outras palavras, não tem mundo: ele tem que “formar” seu mundo. A tese de que o animal, ao contrário do homem, já está “formado” ao nascer, será aqui esclarecida mais a fundo.

Referimo-nos a Jakob von Uexkull, fundador da moderna ciência do comportamento e do ambiente. Baseado em investigações experimentais ele afirma que, para o animal, não existem objetos físicos ou mecânicos como tais, mas apenas como portadores de significados de vida. “Nenhum animal tem, jamais, qualquer relação com um ‘objeto’. Somente através da relação, o objeto se transforma em portador de um significado que é nele gravado por um sujeito.” [1]

Os sentidos de um ser vivo reagem somente a estímulos definidos de maneira específica, tais estímulos transformando-se em sinais. J. von Uexkull conclui que todo ser vivo, mesmo da escala mais baixa, tem um “ambiente” próprio. Entretanto, esse ambiente não corresponde ao mundo exterior existente. “Tudo quanto um indivíduo percebe torna-se seu mundo de sinais, e todas suas ações passam a ser o seu mundo de ação. Mundo de sinais e mundo de efeitos, juntos, formam o ambiente.” [2] “Cada indivíduo pode converter somente os sinais disponíveis em sinais de seu ambiente.” [3] O organismo vivo, portanto, sempre tem um ambiente próprio. A vida poderia ser definida como “a posse de seu próprio mundo”.

Um dos exemplos mais conhecidos, dados por J. von Uexkull é o do carrapato (idoxes rhicinus), cujos hospedeiros normais são mamíferos. O carrapato não ouve, não vê e não tem sentido de gosto; ele reage somente a um certo cheiro (do ácido láctico) e a uma certa temperatura (37 °C). Assim que esses dois indícios emergem como sinais, da escuridão que cerca o carrapato, ele cai e dá uma picada em qualquer objeto que apresente esses dois sinais, quer o objeto em que ele estiver sugando seja nutritivo ou não [4].

Essas observações experimentais mostraram o caminho para os métodos usados na moderna psicologia do comportamento, que levou à organização dos órgãos dos sentidos através do exame das estruturas aferentes do sistema nervoso central, por ela denominado “mecanismo de liberação” inato. O conceito de “ambiente” [5], introduzido por J. von Uexkull e que agora faz parte integrante do atual vocabulário biológico, representa uma porção mais ou menos ampliada do mundo externo: para um organismo vivo existem somente os objetos aos quais (devido ao seu padrão básico inato de comportamento) ele reage infalivelmente assim que esses objetos emitem seu estímulo. As [56] necessárias antenas já estão estabelecidas nas células dos germes dos animais e Jesenvclvem-se durante o processo do crescimento obedecendo a um planejamento exato. Quanto mais longe uma espécie de animais estiver do homem, sob o ponto de vista histórico da evolução, tanto menor será o número dos portadores de sinais e tanto mais pobre, e menos diferenciado, o ambiente.

A pesquisa sobre o comportamento, como uma investigação dos padrões básicos liberados através de formas de comportamento, demonstrou ser uma ciência rigorosa, até o ponto em que ela estabelece os padrões básicos através de métodos puramente experimentais — isto é, tenta encontrar os limites máximos aos quais os estímulos liberados podem ser reduzidos sem perder seu significado. Os padrões básicos não se relacionam apenas a fenômenos “visíveis”, mas também a outros “sinais” como som, cheiro e tato.

Se as explicações puramente mecânico-causais sobre o comportamento dos animais forem insustentáveis, então este também será o caso das teorias comuns sobre o misterioso “instinto” dos animais. Com base no trabalho de J. von Uexkull, K. Lorenz mostrou como animais de uma mesma espécie reagem a um sinal que nunca viram com sequências de movimentos inatos, desenvolvidos e absolutamente metódicos. Exemplos perfeitos são as reações de jovens gansos cinzas ou par dais à silhueta de uma ave de rapina: a ação instintiva do voo é o efeito de um “padrão inato” [6]. Os órgãos de sentidos dos gansos cinza ou dos pardais (que foram objeto da experiência) são ajustados a formas muito específicas de estímulos.

Lorenz, v. Holst e Tinnbergen libertaram o conceito do “instinto” animal da vaga pretensão a uma “psicologia animal”, e revelaram, por meio de experiências, os padrões inatos do comportamento animal. Daí a separação rigorosa entre pesquisa sobre comportamento e psicologia animal. “Se alguém quiser ser psicólogo e investigador do comportamento neste sentido, não deverá jamais cometer o erro de confundir ou misturar essas duas facetas do processo vital. .. O que pode ser alcançado pelo método de indução, são as formas objetivamente observáveis de comportamento e as leis que as regem.” [7]

É verdade que já em 1909 J. von Uexkull pronunciava esta advertência: “O mundo interior (dos animais) é o fruto autêntico da pesquisa objetiva e não deve ser empanado por especulações psicológicas. A fim de dar vida à impressão de um tal mundo interior, talvez se pudesse perguntar: o que faria nossa alma num mundo interior tão limitado? Mas a pintura e o adorno   desse mundo interior com qualidades psíquicas, que não podemos provar nem rejeitar, não é ocupação de pesquisadores sérios” [8]. Ao nascer, o animal vem a um ambiente já formado e, do ponto de vista dos significados, fixo; desde o princípio ele possui faculdades totalmente desenvolvidas e de reações infalíveis para reconhecer seu mundo pelos seus “sinais”. A interpretação do ambiente já é inerente à espécie, antes mesmo do nascimento [57] do animal individual; ela está encaixada numa seqiiência de funções parciais firmemente estabelecidas e nelas se realiza. Com o reconhecimento de que o animal está sempre relacionado a um ambiente, de que ele “possui um mundo”, de que suas ações representam estímulos proveniente do ambiente (e devem, portanto, ser considerados como uma interpretação do mundo exterior), J. von Uexkull não apenas fundou a ciência do comportamento, mas produziu, na biologia, uma revolução semelhante à surgida mais tarde na filosofia, com o existencialismo.


Ver online : Ernesto Grassi


[1J. v. Uexkull, Bedeutungslehre, Leipzig, 1940. Também em: J. v. U., Streifzuge durch die Umwelt von Tieren und Menschen/Bedeutungslehre. Prefácio de A. Portmann, r.d.e., Vol. 13, Hamburgo, 1956, p. 106.

[2Idem, p. 22.

[3Idem, p. 127.

[4Idem, p. 23 e ss.

[5Idem, p. 22.

[6“Em inúmeros casos um organismo responde a estímulos externos significativos, que lhe eram desconhecidos, sem cautela e sem engano, de uma maneira específica, imediata e claramente representativa ... Um pardal que tinha sido isolado desde o seu terceiro dia de vida ficou sumamente agitado ao ver uma coruja e perseguia-a mantendo prudente distância, com ruídos de prevenção e ataques próprios de sua espécie, do mesmo modo que os pardais livres perseguem as corujas de dia.” K. Lorenz, “Die Angeborenen Formen möglicher Erfahrung” em Zeitschriff fur Tierpsychologie, V, 1942, p. 249.

[7K. Lorenz, “Verhaltensforschung als induktive Naturwissenschaft”, Handbuck der Zoologie, Berlim, 1957, p. 2.

[8J. v. Uexkull, Umwelt und Innenwelt der Tiere, Berlim, 1909, p. 6.