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Fernandes (SH:286-293) – ser - bem - valor

quinta-feira 17 de março de 2022, por Cardoso de Castro

  

A antiga noção de axios (valioso) foi chamada, no início do século passado, a compor, com a antiga noção de logos, a palavra “axiologia”, para designar, a exemplo da composição de logos com episteme (epistemologia), o estudo filosófico dos valores em geral, em substituição à Werttheorie, até então usada para valores econômicos. A essa altura, seria excusado dizer que teria sido melhor havermos ficado só com a noção “econômica”, utilitária, de valor. Esses valores correspondem a algo que tem um nome, “bem”, e um uso corrente, no sentido de “utilidades” ou “bens”. Já em Filosofia, o Instrumento hipostasia os valores, sui generis, mas na verdade como se fossem “não-entes”, já que correspondem àquilo que, não sendo, deveria ser. E, por cúmulo, como aconteceu com Platão, ainda pretende relacioná-los ao Ser. Mas apesar da reificação, a noção d’“aquilo” que não é, mas que supostamente seria preferível ou estimável que fosse, permanece, fora do Ser, sendo reidentificada indefinidamente pela Mente, o Pensamento e a Linguagem [1]. Os “valores” — hélas! — crescem e se multiplicam. Mas, nessas extrapolações filosóficas da economia, os valores acabam sendo um gênero de “não-entes” muito difícil de definir, embora se deixem comumente ser classificados em espécies: o verdadeiro e o falso, os valores lógicos; o bom e o mau, os éticos: o belo e o feio, os estéticos; o sagrado e o profano, os religiosos, etc.

A curta história da “Axiologia” como área filosófica de estudos, sobretudo de valores morais ou éticos, é, a meu ver, lastimável. Passa por formas de fenomenologia, por exemplo, de Brentano   (e Chisholm) a Meinong (e Findlay), de Max Scheler   a Nozick. Passa por formas subjetivistas de pragmatismo (Dewey, Lewis  ). Mais recente e acintosamente, passa por formas de dúbia “ontologia”, segundo as quais compromissos com valores “reais” serão inevitáveis, se as ideias de “autonomia” e “liberdade” tiverem algum sentido. (O exemplo paradigmático é The Sources of Self, de Charles Taylor  , e não é à toa que o livro trata das fontes do... “Eu” !) Dispenso-me de imiscuir-me nesse imenso e intrincadíssimo labirinto filosófico e abordo, como é do meu estilo (“estilo” nada mais é do que repetição inconsciente), as questões que julgo estarem na raiz dessas controvérsias. Prefiro fazer da “axiologia” um mero adjetivo e incluir o adjetivo “axiológico(a)” na célebre lista filosófica das falácias oficiais. E uma lista considerável a dessas falácias, não sei se o leitor se dá conta: inclui a falácia da afirmação do consequente; a da negação do antecedente; a categorial (na língua do Império, category mistake); a genética, abusivamente cometida em epistemologia; a ad hominem, que faz tabula rasa da ideia de “testemunho” ; as “idealistas” em geral, a inferência de um “é” a partir de um “deve” (inferência de descrições a partir de prescrições), etc.; mas, sobretudo, inclui a naturalista, associada ao filósofo inglês G. E. Moore. Foi inspirado pelo termo consagrado, “falácia naturalista”, que resolvi intitular esta Seção “A Falácia Axiológica”, na esperança — provavelmente vã! — de cortar um mal pela raiz, numa pequena propedêutica, antes de defender, na próxima Seção, a tese de que a “Ética”, como área de investigações filosóficas, definitivamente não tem chances de ir para o Céu. A “Falácia naturalista”, personagem conceptual da Ética acadêmica, é análoga a algum tipo de “reducionismo” do tipo “x é nada mais que y” ou, num sentido mais sutil, análoga à falácia de inferir um “deve” de um “é” (inferência de prescrições a partir de descrições), no sentido clássico a ela dado por Hume  . (Estamos cavalgando o Instrumento, colados a ele, mas para dobrá-lo à luz do Espírito!) Prefiro conceber a “falácia naturalista” à maneira que se poderia chamar de “questão aberta” (“the open question” ), ciente de que a falácia já pressupõe, corretamente, a conexão biimplicativa da ideia genérica de “valor” com a ideia genérica de “dever-ser” : diante do que quer que seja que se pensar que o “bom” ou o “bem” “sejam”, pode-se sempre concordar e, ainda assim, perguntar: “Mas é isso que o Bem deveria ser?” ou, diante do que quer que seja que se pensar que deveria ser, a mesma ou outra coisa, não importa, pode-se sempre concordar e, ainda assim, perguntar: “Mas é isso que é o Bem?” O paralelismo entre as distinções “é-vale” e “fato-norma”, por um lado, e, por outro, as distinções “é-deve” e “fato-valor”, é evidente.

Entretanto, desmontando, por um momento, do cavalo que uso para passar em revista o Instrumento, digo de passagem que jamais vi (theorein) qualquer ligação ontológica, que são as que nos interessam aqui, entre o “Ser” e a “bondade” (ou “maldade” ), disso, que é o “Ser”. Na verdade, afirmo que não há, como Platão parece ter visto, qualquer relação ontológica entre o Ser e o Bem. Assim como, para Kant   (mas não para mim!), acrescentar “existentes” a cem Reais... reais... não lhes acrescentaria nada, nem um real sequer, e assim como, para os defensores (mas não para mim!) da “não-teoria” da Verdade, a da redundância, acrescentar “é verdadeiro” a p (uma proposição qualquer) não lhe acrescentaria conteúdo algum, assim também, agora para mim, acrescentar “é valioso” a um ente qualquer nada lhe acrescenta, do ponto de vista ontológico. Será que acrescentar, à descrição de um ente, que ele é “valioso”, lhe acrescentaria alguma coisa, de outros pontos de vista (cegos) que não o puramente ontológico? Do ponto de vista estritamente antropológico-filosófico, que é subordinado ao ontológico, ou não lhe acrescenta nada, pois o humano tem Ser, a fortiori pode ser compreendido, e o Ser nada tem a ver como o valer, ou então lhe acrescentaria algum conteúdo “antropomórfico” (termo que, a meu ver, significa o contrário de “antropológico-filosófico” ), entendendo-se por “antropomórfico”, aqui, o que é tomado pelo Instrumento como o simulacro “ser humano”, suas características, medos e desejos, etc. Do ponto de vista epistemológico, o acréscimo do valor apenas afirma redundantemente o fato de que a descrição do ente como “valioso” é... um fato. Dependendo das teorias que adotarmos sobre os papéis biológicos, psico-sociais, político-econômicos, etc., desempenhados por valorações no comportamento de inconscientes encarnações instrumentais (“racionais” ), normalmente chamadas de “entes mascarados” ou “pessoas”, a descrição do fato a que acabo de me referir tanto pode ser derivada quanto servir de premissa para derivação de outras descrições... mas de fatos. No entanto, apesar de toda essa irrelevância ontológica, antropológico-filosófica e epistemológica, a distinção entre “é” e “deve” é tratada comumente pelo Instrumento como uma distinção eminentemente... epistemológica. (Afinal, o “dever-ser” nada tem a ver com o Ser!) Tanto a Epistemologia quanto a Ética lá estão imiscuídas, entre a Ontologia e a Estética, para marcar o contraste entre as árvores — a Epistemologia e a Ética, marcando o “não-lugar” simbólico da Arvore do Conhecimento; a Ontologia e a Estética, marcando o “lugar” simbólico da Árvore da Vida. Preciso explicar por que o “simbólico” só poderia “ocupar” um “lugar” indefinidamente deslocável ou então um “não-lugar” ? É na área filosófica dedicada ao conhecimento, ou seja, a Epistemologia, que surge a dimensão irredutivelmente dual do Ser, como Presença/Ausência de Espírito, como Não-Ser e como a dualidade Objetivo/Subjetivo. E na área epistemológica, portanto, que se separa a Árvore da Vida da Árvore do Conhecimento. E toda a área da Ética corresponde à reatividade instrumental inconsciente não compreendida. Mas, embora possamos compreender todas essas coisas num instante eterno, num livro é preciso desdobrar explicações ao longo de várias páginas... nas quais cavalgaremos o Instrumento, unidos a ele como o cavaleiro ao cavalo, mas ao mesmo tempo dobrando-o à nossa visão ou às nossas “intuições fundamentais”. Note o leitor uma dessas intuições, que é a de que tudo converge para a área da Estética, onde está o nosso Ser e onde a dualidade, sempre irredutível, apresenta-se como Arcano, Interface, Coincidência Ontológica de Fronteiras, Moeda Inteira. É claro, suponho, que não estamos tratando a Estética como a teoria da Beleza, ou então da Obra de Arte, pelo menos precipuamente. Não que a Estética não seja a área em que devem ser investigados a Vida e o Mundo como Obras de Arte, mas porque ela é, antes de tudo, a metafísica da Interface (coincidência ontológica, não meramente perceptual, de fronteiras) — tecnicamente, a metafísica da sensação, como manifestação do sagrado. De todas as “Dimensões”, a da “Estética” é de fato a mais importante do ponto de vista antropológico-filosófico, porque, de todas as interfaces que compõem o Todo, é na coincidência de fronteiras entre duas “experiências” que não podem ser “experienciadas” simultaneamente, mas que, misteriosamente, não se alternam no tempo como numa gangorra, que reside “a” Experiência em si mesma ou “moeda inteira”. Seja como for, o “Ser” não me parece ter qualquer coisa a ver com valores “éticos” ou juízos “éticos” de valor. E muito menos teria a ver com essas coisas um simulacro ou “não-ser” determinado em seu “Existir” e não compreendido na Experiência. O Instrumento, entretanto, insiste em projetar tais simulacros, chamados por ele de “valores” e juízos “éticos”, com os dois principais propósitos que servem à exacerbação do contraste Ser/Não-Ser, que indiquei logo no início desta exposição, quais sejam: o da construção de um Mundo como Ideia de que a Compreensão é Impossível, e o de impedir a equanimidade, que é a suspensão absoluta de juízos de aceitação ou não-aceitação das coisas em sua “comotalidade”, tais como se integram às Experiências, em Presença de Espírito. Não estou “demonizando” a Mente, o Pensamento e a Linguagem. Eles constituem a máquina inconsciente (o Instrumento), que, sem ter qualquer ser em si mesma, colabora na Obra do Espírito gerando, muito eficazmente, as infinitas distâncias do Ser, necessárias à sua extensão como Experiência. Repito o que afirmei logo no início deste livro, e também na recordação que fiz no início deste Capítulo: o ser de alguma coisa não pode consistir em sua existência (que, por sua vez, consiste no poder ser tomado como objeto ou reidentificado pelo Instrumento). Além disso, o “ser” de um ente... só pode ser o seu... ser enquanto ser ou o seu ser em si pois, o Ser não pode “ser” outra coisa senão “O Que É”. O que é determinável ou identificável não é o Ser do ente, mas sua Existência (Cap. 1). O determinável e identificável é eventualmente integrado às Aparições, coincidindo tal integração com sua Desaparição como simulacro. Deveria ter tido o cuidado de ter escrito, desde o início: “O que é determinável ou identificável, do ponto de vista cego do Instrumento, é o que ele, Instrumento, chama de “ente”, mas nós, Seres Humanos, a cavaleiro sobre o Instrumento, chamamos de “não-ente”, simulacro, etc., como expediente para a construção desta teoria, ou seja, para destacá-los do Ser por abstração do Ser-Experiência.

O que nos resta é apenas investigar, do ponto de vista (cego) da Mente, do Pensamento e da Linguagem, ou seja, cavalgando o Instrumento, a própria noção de "valor", suas espécies, as relações entre elas, etc. O que teriam os valores, por exemplo, a ver com a razão e o intelecto? A venerável tradição chamada "tradição intelectualista", que foi inaugurada no Ocidente por Sócrates  , mas no Oriente o foi certamente com o Vedanta, e à qual voltaremos na próxima Seção, relaciona o Bem com a Verdade (além da Beleza) e a Ignorância com o Mal. Nesse caso, poderíamos procurar por uma relação entre o "desvelamento do Ser" (alethea) à "visão", "intuição", "contemplação imediata" (theorein, para evitar episteme, ou "conhecimento verdadeiro") e... a "racionalidade da vontade". Contudo, essa relação teria como consequência mais importante a distinção entre "liberdade", que nada tem a ver, seja com escolha, seja com "Ética", mas sim com espontaneidade criadora, e "livre-arbítrio", que tem a ver com a ignorância e o regime de carência, indispensáveis ao vicejar de "valores", seus juízos... e seus juízes. Além disso, para estabelecer essa relação (entre Verdade e Vontade) como mediada, ou "medida" pela "razão", teríamos que tomar o logos, não no sentido moderno e contemporâneo de "Razão" (Kant fracassou!), mas em suas associações mais antigas, originais, sublimes e... estéticas(!), com harmonia, proporcionalidade, perfeição, etc. Pois já nos demos conta, se o leitor concordou comigo, do caráter, ou do destino, sejam filosóficos ou extrafilosóficos, das ideias de "razão", "racionalidade", etc. Das sublimes origens antigas nada sobrou, ou pior, sobraram as acepções de pressupostos, premissas, ou "racionalizações", cada um correspondendo exatamente ao que editaria ex post factum um cérebro amedrontado e acuado pela necessidade de justificar-se, em juízo, perante juízes, sejam os juízos e juízes lógicos, epistemológicos, éticos ou estéticos, todos a exigir-lhe o impossível: "responsabilidade", "coerência", etc.; e de maximização ou minimização utilitária de parâmetros, processos adaptativos prudenciais, também usados para lidar com o medo, que é uma das principais consequências de todo e qualquer desejo. Tendo as "razões" tal caráter (ou destino), não há porque exaltar "o valioso", "o estimável", "o que é digno de ser honrado", para além do âmbito estritamente inconsciente da Mente, do Pensamento e da Linguagem, ou seja, de um Instrumento não compreendido, estranho às Experiências em si mesmas, que somos. Para completar o quadro, sendo o sofrimento, por definição, a alternância, percebida pelo Instrumento, entre prazer e dor, pode-se ver claramente, suponho, a verdadeira natureza do "valor": o "valor" é o que está em falta, ou aquilo de que alguma coisa carece. Faltariam, por exemplo, Verdade, Bondade e Beleza ao Mundo projetado pelo Instrumento e não compreendido pela Experiência. Fazendo a ponte entre Ocidente e Oriente, sendo a ideia de "falta" incompatível com a ideia do autêntico Vazio (Não confunda Vazio com Não-Ser!), que compõe, com a autêntica Forma, a verdadeira natureza do Ser enquanto Ser, não há tampouco porque exaltar o "valor" para além do Não-Ser. Prima facie, não afirmei nada de mais: o que "deve ser" não "é"; e nem poderia ser, porque, se "fosse" alguma coisa, não "seria" o que "deveria ser", já sendo o que "é". (O "dever-ser" é o que não é, e não é o que é. Filosofia da Consciência, 25) O "ser" daquilo que não é, mas só "deve ser", não pode consistir em coisa alguma, exceto na existência de wishful thinking. Ainda assim, à parte as maquinações dos "pensamentos de abandono", é extremamente difícil, senão impossível ver por que, não só o Ser, mas também algum ente, "deva" ser o que ele não é [sic] e, por cúmulo, por que "isso" que lhe faltaria ser (ao Ser não falta nada!) seria chamado de "valioso", "verdadeiro", "bom", "belo" ou "sagrado". Se admitirmos que, ontologicamente, valores não "são", mas (?!)... "valem" [sic], já admitimos que esse "valer", seja qual for seu estatuto, e se o tiver, não tem Ser algum. Pois não faria sentido pensar que o Ser de algum ser é o seu não-ser. Volta o leitmotiv: o ser de alguma coisa não pode consistir na sua existência. Se houvesse "essências reais", a "essência" do "valor" seria Não-Ser, duplo contra-senso! Mas nem mesmo esse "Não-Ser" poderia ser o "ser" do "valor", e menos ainda sua "propriedade intrínseca", pois não há propriedades "intrínsecas" - a ideia é outro contra-senso, ainda seria preciso argumentar, depois de todo o primeiro Capítulo? Além disso, "conseguir", ou "atingir" um fim, é uma ideia do Instrumento, e uma ideia feita por ele, expressamente para não poder ser por ele mesmo "realizada", pois sua realização estragaria a eficácia do efeito de contraste, o efeito da "armadilha axiológica" por ele mesmo montada.


Ver online : Sergio L. C. Fernandes


[1Nota: compondo o que Fernandes chama Instrumento.