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Fernandes (FC:20-21) – todo ponto de vista é um ponto cego

terça-feira 9 de novembro de 2021, por Cardoso de Castro

  

A atividade filosófica pode ser chamada de “investigação”, mas distingue-se da investigação científica. Esta, pelo interesse em manipular, ou dominar, é sempre dirigida, pela urgência do desejo, à parcialidade das explicações. Pois é impossível explicar alguma coisa em sua totalidade: só há explicações parciais. E parcialidade gera conflito. De fato, a ciência conhece pela destruição do seu objeto. Já filosofar seria compreender sem nada destruir. Seria por em cheque toda astúcia — até a do querer não querer, ou desejar não desejar — , em virtude da intensidade mesma da pergunta, só satisfeita pela totalidade da compreensão. Não se trata, portanto, nem de cosmovisão, nem de substituto das religiões, nem de conhecimento teórico absolutamente independente do conhecimento científico, nem de síntese dos resultados das diversas ciências, nem da investigação de seus fundamentos, nem de uma coleção de indicações para conduzir a vida.

O que dá à Filosofia a imprescindível intensidade é a liberdade — que nada tem a ver com o livre “arbítrio”—, ou seja, o que lhe dá intensidade é a “subversão” da autoridade, pela distinção radical entre esta e a verdade. Mas isto não faz da Filosofia uma atividade ponderada. O modo da intensidade filosófica é a atenção, e essa atenção traduz-se numa improvisação criativa — dir-se-ia, espontânea? ou sem esforço? — que não pode estar, pelo menos inteiramente, sob o signo da regra, ou do jogo.

A ciência tem um “corpo”: ainda que atividade humana, precipita seus resultados, de revolução em revolução, numa identificação com o seu objeto. Já filosofar é compreender o processo total das identificações, por em cheque o jogo das identificações objetais, não se reduzindo jamais a um “corpo de resultados”. Nem mesmo o “texto”, o “precipitado” místico da gnose, é pertinente à Filosofia, de modo essencial. A verdadeira Sabedoria, na Filosofia, não se “precipita”, de modo que sua leveza é que é, realmente, insustentável. [20]

Todo ponto de vista é um ponto cego. E “ser humano” é ter um ponto de vista. Ora, o humano é o que, na Filosofia, trata-se de compreender, não de “cultivar”. E sendo toda compreensão uma compreensão da totalidade (não havendo compreensão “parcial”), filosofar é ultrapassar o humano, não “conformar-se” a ele. O filósofo, no limite, ou seja, o Sábio, não tem um ponto de vista. Ipso facto, não tem “Inconsciente”. Não é “psicanalisável”. Face ao jogo de pontos cegos de onde o humano descortina o mundo (fenomenologias “regionais”?), a Sabedoria é o campo de todas as intensidades simultâneas, a singularidade “heróica”, que não tem “lugar”, nem “aqui”, nem “agora”, nem além, nem aquém. Longe de se prestar a uma geografia ideográfica, a Sabedoria ultrapassa o horizonte de previsibilidade. Previsível é o humano, não o Sábio. Previsível pode ser a “amizade competente” dos seus “personagens conceptuais”, não a verdadeira Sabedoria. Previsíveis são os amantes, não o Amado.

As ciências, não só estão condenadas à insaciabilidade, mas a conhecer pela destruição e a se inter-devorarem. Pode-se hoje fisicalizar a Biologia (p. ex. teoria dos atratores), biologizar a Física (Kuhn  ) e psicanalisar o resto. Já a Filosofia não “digere”, não extrai sua energia da termodinâmica dos “metabolismos”. Suas “reduções”, na verdade nada reduzem: ao contrário, produzem horizontes-totalidade, em que é o Ser que se desvela a si mesmo, em infinitas intensidades puramente qualitativas.


Ver online : Sergio L. C. Fernandes