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Fernandes (FC:177-179) – inconsciência

quarta-feira 31 de julho de 2024, por Cardoso de Castro

  

O que acabamos de ver é, então, que há pelo menos dois sentidos fundamentais de “desatenção”, ou de “inconsciência”. No primeiro sentido de “inconsciência”, aquilo de que somos inconscientes num determinado momento poderá tornar-se consciente no momento seguinte. O olho que vê tem uma determinada estrutura. Não podemos ver essa estrutura, no momento em que a estamos usando para ver alguma coisa. Mas podemos vê-la objetivada no momento seguinte, estudando, digamos, em Anatomia, a estrutura do olho. Não é preciso, para isso, fazer como Édipo, e arrancar os olhos da cara. Basta que tenhamos arrancado os olhos da cara de alguém, até mesmo de um cadáver. Essa estrutura que descobrimos, pela observação do olho, observação que, como nos ensina a teoria da ciência, é ela mesma produto da teorização antecipatória, essa estrutura é o que nos faz ver o mundo e a nós mesmos, objetivados como parte do mundo, de uma determinada maneira. É claro que descobrir essa estrutura não é livrar-se de ser determinado por ela. “Tornar consciente o que estava inconsciente”, neste sentido, não nos faz menos determinados pelo Inconsciente.

Contudo, esse recuo da inconsciência, esse recuo que permite a objetivação, põe-nos sempre diante do que já não somos. De modo que não é o conhecimento propriamente dito dos nossos conteúdos inconscientes que nos liberta, mas sim o que nós — Quem? Um novo “nós”, mais profundo? —, como reza o chavão, podemos fazer disso que acabamos de saber que nos determinava até aquele ponto. Em que sentido, então, houve libertação? “Somos conscientes do que éramos inconscientes”. Isto quer dizer: Somos agora algo novo. Como no exemplo da Anatomia, isto que me aparece objetivamente como a estrutura do meu olho continua a constituir o meu olho. Então eu continuo vendo as coisas de acordo com a mesma estrutura. O sentido da libertação, aqui, é que agora posso fazer alguma coisa disso que me determina, como, por exemplo, usar óculos. Longe de mim negar que eu passo, agora, a dispor de um maior espaço de manobra. Mas corresponderá isso, realmente, a uma libertação?

O que liberta é a verdade, e não o conhecimento. Quando dizemos que as ciências sociais podem ser libertadoras, queremos dizer que elas nos informam da verdade acerca de nós mesmos, ou apenas que seu conhecimento nos dá maior espaço de manobra? É claro que quanto mais conhecermos, objetivamente, as estruturas que nos determinam, mais poderemos fazer alguma coisa para alterar essa determinação. Suponhamos que seja possível ao cientista social não decidir, pelo sujeito, o que fazer com isso que o determina. Mas seja o que for que possa ser feito, mesmo pelo próprio sujeito — outra vez, Quem? O novo “eu”, recuado, do sujeito? —, seja o que for que possa ser feito, será sempre uma espécie de manipulação. O novo “eu”, recuado, ao manipular estruturas que agora conhece, será sempre determinado, senão por aspectos mais profundos daquelas estruturas, então por outras estruturas mais amplas e complexas, que não foram, ou não poderiam jamais ter sido, objetivadas pelo conhecimento. Este primeiro sentido de “inconsciência” corresponde, portanto, ao que chamei de Inconsciente Manifesto — aqui, como objeto de conhecimento.

Mas toda identificação é inconsciente também num segundo sentido. No sentido de que, no pensamento e, portanto, no conhecimento objetivo, a inconsciência permanece inconsciência independentemente dos conteúdos que se vão objetivando. Como disse antes, essa inconsciência que o pensamento é, ou que o conhecimento objetivo é, não tem, a rigor, conteúdo algum, e é por isso que ela não pode corresponder à exortação: Conhece-te a ti mesmo! Este segundo sentido de “inconsciência” corresponde ao “Inconsciente tornando-se Sujeito” por contraste com um suposto “sujeito do inconsciente”. Ora, se o “Sujeito transcendental” é a própria cegueira que se torna um ponto, o “objeto transcendental” é o “resto” da substituição da translucidez pelo ponto cego, ou seja, é a opacidade que a aparência manifesta. Ambos resultam da Identificação Primária, de modo que nenhum dos dois é a consciência. O erro do idealismo absoluto, seja “empírico”, seja “transcendental”, ou seja, mascarado de “realismo”, é identificar a consciência com o Ego. E este erro só pode resultar, como vimos no nosso “exercício” de reflexão transcendental, de uma confusão de onisciência com Sabedoria. Este “Ego” do idealismo absoluto é, na verdade, uma das inúmeras máscaras de “Deus”.


Ver online : Sergio L. C. Fernandes


FERNANDES, Sérgio L. de C.. Filosofia e Consciência. uma investigação ontológica da Consciência. Rio de Janeiro: Areté Editora, 1995