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Fernandes (FC:176-177) – pensar

quarta-feira 31 de julho de 2024, por Cardoso de Castro

  

O que se opõe ao meu “pensar em x” é a impossibilidade de pensar este Pensador de x, no momento mesmo em que ele pensa em x. Este é o ponto de articulação entre consciência e inconsciência. Mas este pensamento, impossível neste momento, torna-se possível no momento seguinte. Pois suponhamos que agora penso em y, ou seja, penso no pensador de x. Recuou o sujeito e recuou, com ele, sua identificação. No pensamento, portanto, a inconsciência permanece inconsciência, independentemente dos conteúdos que se vão objetivando. Essa inconsciência não pode tornar-se consciente pelo fato de ter sido possível “pensar”, isto é, pelo fato de eu ter “tirado” alguma coisa da inconsciência para pô-la diante da minha mente. Pois ela não é uma coleção de conteúdos. A reflexão do pensamento, então, não é o caminho para atender à exortação: Conhece-te a ti mesmo! O caminho do auto-conhecimento não é o de tornar, como se diz, “objetivo” o que era “subjetivo”.

Pensar é um processo de natureza essencialmente dual. A “substância pensante”, ou a “máquina pensante”, seja lá o que for, sempre opõe o que pensa “como unidade”, no conceito, ao que “pensa como diversidade”, no que cai sob o conceito. Ora, o que o pensamento pensa como unidade, no conceito — p. ex., no conceito de “triângulo”— é uma diversidade — p. ex., “figura plana, de três lados, etc.”. E o que o pensamento pensa como diversidade, no que cai sob o conceito — p. ex., “este triângulo”, “aquele triângulo” — é uma unidade, ou seja, a “triangularidade”. O que isto prova é que o pensamento é, necessariamente, desatento.

Se, ao invés de “pensar”, fôssemos atentos à paisagem do mundo, jamais nos ateríamos ao que a diversidade tem em comum, jamais seríamos vitimados pela repetição. Estaríamos sempre diante da novidade absoluta. O pensamento, com efeito, só pode produzir o “velho”, o “esperado”, o “antecipado” no conceito. E é por isso mesmo que o pensamento, como se fosse autônomo, independente de nós, como uma máquina sempre ligada a reproduzir sua própria estrutura — Quem ligou? Quando? Como desligar? —, é por isso que o pensamento produz as ilusões do tempo e do espaço, e, neles, a percorrê-los, a suprema ilusão: o Pensador. Pois sendo o pensamento uma espécie de máquina de antecipar e repetir, não pode jamais estar no presente. Não pode jamais ser o pensamento de agora. Sua tarefa própria é fazer com que tudo esteja, ou no passado, ou no futuro, o que só pode ser executado pela projeção do que “dura” no tempo e “percorre” o espaço. O “aqui” espacial é o mesmo “aqui”, em todos os instantes do tempo; o “agora” temporal é o mesmo “agora” em todos os pontos do espaço. A estrutura do pensamento consiste na dualidade aqui/agora, e opera de modo a tornar impossível estarmos onde verdadeiramente estamos, ou seja, no presente.

Se a mente — na verdade, seja o que for, substância ou máquina — é um instrumento, então é um instrumento cego para o presente. Trata-se de um instrumento particularmente sensível para conceber a pseudo-eternidade, ou seja, a duração temporal indefinida; mas incapaz de conceber a verdadeira eternidade, ou seja, o presente, onde está todo o passado e todo o futuro, o presente atemporal. Sendo a pseudo-eternidade o fluxo contínuo do passado ao futuro, o próprio fluxo só se sustenta correlativamente ao que permanecer o mesmo, seja o mesmo “aqui” espacial, ao longo do tempo, seja o mesmo “agora” temporal, em todo espaço. Dessa articulação do “mesmo”, do mesmo “aqui” com o mesmo “agora”, surgem o mundo, os objetos, as aparências tomadas como realidades empíricas, ou experienciadas, os fenômenos, os entes, todas as coisas que existem. E, dentre elas, coisa entre as coisas, a que julgamos a mais importante, que é o Pensador individual, o sujeito, os sujeitos, este e aquele sujeito. Na verdade, estas são duas ilusões transcendentais do pensamento, ou da mente: o sujeito e o objeto. O sujeito é um pensamento, assim como o objeto é um pensamento. O pensador não é, portanto, o dono da mente, a ocupar a psique como se esta fosse uma espécie de cabine de comando de máquina. O pensador é o fantasma da máquina, ou seja, mais um pensamento.


Ver online : Sergio L. C. Fernandes


FERNANDES, Sérgio L. de C.. Filosofia e Consciência. uma investigação ontológica da Consciência. Rio de Janeiro: Areté Editora, 1995