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Fernandes (SH:45-47) – Absurdo do "conhecimento criador" ou do "só conheço o que crio"

quarta-feira 24 de abril de 2024, por Cardoso de Castro

  

Há um sentido vulgar de "experiência" (aqui, sempre com "e" minúsculo), que, apesar de confuso ao extremo, é moeda corrente e até mesmo tido em alta conta por epistemólogos, como se correspondesse a uma noção fundamental (para cientificistas, entenda-se "útil"). Trata-se de um sentido intimamente relacionado ao de "conhecer" (sobretudo no sentido de "apreensão cognitiva"), "explicar", etc. O próprio Kant   fez desse sentido de "experiência" a chave mestra de (quase) todos os seus argumentos. "Experiência de", assim como "consciência de", nas acepções que estou considerando vulgares, são expressões ambíguas. Envolvem o "de" em dois sentidos. Remetem, por um lado, ao objeto, como em "experiência (consciência, conhecimento) de x", "experiência (consciência, conhecimento) de y"; por outro lado, remetem ao sujeito, como em "minha experiência (consciência, meu conhecimento)", "sua experiência (consciência, seu conhecimento)". Vou chamar o primeiro sentido do "de" de sentido "objetivo"; o segundo, de sentido "subjetivo" ou "genitivo". Ora, tal "experiência de", "consciência de", "explicação de", ou... "conhecimento de", só poderiam ter, seja com seus objetos, seja com suas origens ("sujeitos"), relações metodológico-burocráticas e utilitaristas, em geral tratadas superficialmente, mesmo pela Filosofia, como as relações de "fonte", "origem" ou, inversamente, "comprovação" ou "teste". (Na verdade, nem mesmo aquilo que eu chamo de autêntica Experiencia Criadora tem tais relações com o conhecimento.)

Mas ainda é cedo, suponho, nessa longa noite do Espírito na qual de uma maneira ou de outra ainda sobrevivemos, e que se chamou de "Iluminismo". Por exemplo, ainda se confunde as distinções, tanto as do tipo knowledge by description e knowledge by acquaintance, knowing that e knowing how, quanto as do tipo conhecer e explicar, com a distinção capital entre tudo isso tomado junto e... criar ou, como veremos, compreender. Na verdade, nenhuma daquelas primeiras distinções tem o que quer que seja a ver com criação/compreensão. Todas elas apenas distinguem, dentro da esfera do conhecer/explicar, entre o foco diminuto da atenção intencionalmente consciente do Instrumento (piloto manual), seja lá o que isso for, e o processamento inconsciente de informações no "piloto automático", também do Instrumento (hábito, ou treinamento).

Na lousa da sala de aula de um dos maiores gênios da Ciência do século que passou, Richard Feyman, estavam escritas, pouco antes de sua morte, em 1988, as seguintes pérolas de "sabedoria" pedagógica, que, a meu ver, dizem muito mais respeito ao funcionamento da Mente do que, seja ao impossível "conhecimento criador", seja à Presença de Espírito: "What I cannot create. I do not understand... Know how to solve every problem that has been solved". Por ironia (não intencional, suponho), os termos se aproximam do que seria correto: só que... criar e conhecer são duas coisas radicalmente distintas e que compõem uma "dualidade irredutível" de arcanas fronteiras coincidentes, como dois lados de uma moeda inteira. Tanto os objetos "antecipados", "imaginados", "projetados", ou simplesmente postos dentro de cartolas, quanto aqueles que delas são retirados, são objetos produzidos não por alguma criação, mas pelos mecanismos — nada criativos, diga-se de passagem — da Mente, do Pensamento e da Linguagem. O que eu quero dizer é que, do ponto de vista epistemológico, os objetos postos ex ante são todos, por sua vez, também retirados de outras cartolas, numa regressão infinita.

A origem do conhecimento simplesmente não é tematizável pela Mente, pelo Pensamento ou pela Linguagem. Pudera! O conhecimento simplesmente não pode ter "origem", muito menos num... artesanato, que é o que vulgarmente se entende por "criação" ou "criatividade". Mas se estivéssemos realmente falando de "criar" (!!!), então estaríamos falando daquilo que já os gregos sabiam que é "impensável", ou seja, estaríamos falando da criação a partir do nada, fora do tempo e do espaço, sem antecedentes, sem cartolas e coelhos anteriores, sem pré-concepções, sem premeditação, enfim, estaríamos falando de uma contradição em termos, que seria um "começo absoluto" aquilo que, na Física, se chama de "singularidade" e que Santo Agostinho   viu tão bem, quando concluiu que o próprio tempo tinha que ter sido criado junto com o Universo. "Criação", ou é uma noção intemporal, portanto nada tendo a ver com "conhecimento", ou teria uma acepção vulgar, com alguma coisa vulgar a ver com a noção vulgar de "conhecimento", que corresponde a mero artesanato.

Essa distinção que faço entre explicações, que pertencem à ordem do conhecimento, e compreensões, que pertencem à ordem, absolutamente distinta, das criações ou das Experiências Criadoras, consiste em que as primeiras sempre têm pressupostos, sejam premissas, seja a intencionalidade, seja a reatividade inconsciente que processa informações, ao passo que as segundas são puramente espontâneas, não pressupondo coisa alguma... nem mesmo o "criador" ou o "compreendedor", por mais paradoxal que esta afirmação possa parecer, por enquanto. E basta, quanto ao absurdo "conhecimento criador".


Ver online : Sergio L. C. Fernandes


FERNANDES, Sérgio L. de C.. Ser Humano. Um ensaio em antropologia filosófica. Rio de Janeiro: Editora Mukharajj