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Barbuy: Romantismo

quinta-feira 7 de outubro de 2021, por Cardoso de Castro

  

Se o romantismo tivesse sido o que pretenderam os salões galantes do século XIX e o que diz Victor Hugo no prefácio de “Cromwell”, não teria passado de uma revolução de regras e adjetivos, sem substância e sem uma visão própria da realidade. Longe de um florescimento do divino e do feérico, o romantismo não seria mais do que uma fuga à “realidade” científica, mascarada pela admissão do grotesco na arte, como o preconizava Victor Hugo. O romantismo seria uma espécie de contrafacção do positivismo   e precursor até da lei dos três estados; no prefácio de “Cromwell” o gênero humano passa por três fases, nas quais a infância corresponde à poesia lírica, a maturidade à epopeia e a velhice ao drama; em Augusto Comte as comunidades sociais cumprem a lei do progresso percorrendo os três estados da teologia, da metafísica e da ciência positiva, a qual representa a plena expansão da inteligência (mas onde o conhecimento se confina à experiência sensível!) quando a filosofia assume por tarefa unificar e sintetizar as leis gerais das ciências da natureza, constituindo-se em especialidade da generalidade. A correspondência entre as três fases do romantismo artificial e a lei dos três estados não seria tão patente se também não coincidissem o “retour à la nature” e a noção positivista duma natureza inteiramente morta. Não se tratava de fato para o romantismo profundo de um suposto “retour à la nature”, concebido como viagem dominical pelos campos e sim de um reviver a intimidade da natureza, de um transfigurar-se numa natureza transfigurada, de um emergir-se no mais obscuro da natureza, surpreendendo a alquimia filosofal da sua potência criadora. A diferença está em que o “retour à la nature” corresponde a um romantismo psicológico-sentimental [97] e a revivescência da natureza corresponde a um romantismo mágico-metafísico. Trata-se em suma, no romantismo radical, de viver a natureza de dentro para fora, no sortilégio das suas manifestações, e não de estudá-la e descrevê-la racionalmente de fora para dentro. A natureza romântica não é um conjunto de relações científicas ou um objeto de descrições artísticas (que se possa imitar ou deformar produzindo o academismo ou o modernismo) e sim uma entidade vital que se deve intuir na continuidade das suas formas.

Os filósofos românticos do idealismo (Hegel  , Fichte  , Sendling, Goerres, Novalis  , Schlegel  ) refletiram a natureza, não como corpo inerte, retalhável entre as várias ciências, mas como ser vivo, como drama teogônico, como teurgia, como alma do mundo, como correspondência simpática entre as cousas. A natureza romântica não é um objeto para onde o sujeito retorna, mas uma identificação do terrestre e do divino e a configuração de um estilo fabuloso de vida. Os murmúrios da floresta wagneriana, o eco distante dos castelos perdidos e a jornada de Sigfried no Reno se movem, como os rios de Hölderlin  , numa natureza fantástica, e não num panorama que se possa descrever exteriormente, imitando-o ou deformando-o. Em verdade, a natureza que jorra dos filósofos românticos é um lugar em cujas entranhas remotas se pode imergir, cujo mistério se pode reviver, mas não é um lugar para onde se possa retornar como o viajante retorna a uma estação de sua viagem. A natureza romântica é o desenvolvimento de cenas sempre novas, processo mágico que se desvenda constantemente a si mesmo, um ser que, como em Heidegger  , se oculta e desoculta. Só se pode “retornar” a uma natureza positivada, morta e petrificada.

Mas não se pode retornar, nem mesmo à natureza hegeliana, que é um momento já ultrapassado da objetivação do Absoluto. Porque Schelling   mostra que é um erro tomar o espírito por sujeito e a natureza por objeto, pois ambos são faces da mesma identidade; e a natureza, como Schelling a exprime, é a natureza romântica, sobre a qual não se trata de fazer classificações botânicas ou mineralógicas, mas de intuir o fio íntimo das transformações do uno no múltiplo; os elementos científicos na filosofia romântica entram apenas como subsídios da visão mágica da natureza; só têm valor quando relacionadas com a alma profunda de onde o maravilhoso irrompe [98]. O Espírito é a face subjetiva de que a natureza é o lado objetivo; e a natureza se enriquece de todas as possibilidades do Espírito, do qual é a manifestação; a riqueza do infinito pode exprimir-se no finito da natureza. Nisto reside o contorno panteísta da natureza romântica.

A natureza porém é um fazer-se e algo que pode ser feito. O romantismo não seria radical se não acreditasse na possibilidade de criar um mundo novo. Criar e não fabricar. A proposição de Leibniz   segundo a qual o objeto da filosofia não é o ser, mas o possível, pode ser um ponto de partida da consciência romântica; a mesma proposição é tomada por Wolff. Se tal proposição se entende no sentido de que o ser é o atualizado e o possível o atualizável, haverá nela um empobrecimento da noção de ser, pois o ser não é só o atual, mas também o atualizável. Mas, se a expressão for tomada neste sentido: “o possível é mais rico do que o atual”, o idealismo romântico verá, no possível, a possibilidade de projetar mundos novos e realidades mais ricas. Uma realidade inteiramente poética e musical é possível, porque o possível é mais rico do que o atual. Schelling e Schlegel viam a possibilidade de uma nova mythica, plasmadora de uma nova realidade. A projeção romântica da natureza se dá inicialmente em função duma liberdade que reside no Absoluto, que se determina em natureza segundo uma dialética rigorosa. Mas tal determinação, em Fichte, se apresenta por vezes como podendo ou devendo tornar-se consciente e voluntária. Do mesmo modo em Schelling, a natureza se projeta em princípio dedutivamente; mas no Schelling posterior a criação se torna livre. Isto exprime a decidida posição voluntarista, em que o romantismo se sente capaz de fazer da Poesia realidade e da realidade Poesia (Novalis), abolindo e extirpando todos os mundos petrificados, nos quais não há realidade porque não há poesia.

A natureza é uma entidade viva, que assume todas as fisionomias que lhe forem impressas pelo Espírito. O Espírito pode acordar as fadas e animar os gnomos; pode abolir o quotidiano pondo vivos no seu lugar os contos de Grimm   e de Perrault. Tal a crença romântica na configuração possível de mundos inteiramente determinados pela identificação da alma com a paisagem, ou por momentos dialéticos do Espírito. A projeção do maravilhoso como realidade se tornou ainda mais crível quando as fontes irracionais do romantismo se ligaram [99] aos mistérios do inconsciente; descobrindo o inconsciente, o romantismo pareceu ter encontrado a chave das forças secretas, forj adoras da magia. O inconsciente nos une diretamente aos gênios invisíveis da natureza e dele brotam as forças mais profundas da cultura. O inconsciente é a matriz original de onde saem os novos mundos; tem uma função materna e se assimila ao feminino fecundado pela Vontade; como o feminino aristotélico, a natureza é a matéria em busca da forma que lhe é dada pelo Espírito. Do inconsciente nasce o culto romântico da mulher, da mãe e da matriz. No inconsciente estão todos os mitos do passado e a irrupção possível de todos os mitos do futuro. A cultura, que é mais profunda do que a ilustração e do que a razão, se converterá na entidade forjadora de novas naturezas, com novas florestas e novos deuses. Por isso a noção de “cultura” está intimamente unida à noção de “Weltanschauung”. Weltanschauung, isto é, Anschauung e Welt, visão e mundo, intuição e mundo, ou, imagem e mundo. Uma cultura é uma visão do mundo; o mundo não é senão a face objetiva de uma cultura e o mundo não é senão uma “simbólica do Espírito” (Novalis). A crença romântica na ressurreição da natureza divina, ou na projeção de uma nova natureza, vem da crença pela qual nascerão tantas realidades, quantas culturas nascerem. Eis porque, Wagner e Nietzsche   não repetem, mas criam. E o lado mais trágico do romantismo é justamente este sonho criador de novas naturezas e novos homens, que requer uma tensão agônica. A agonia do romantismo foi uma agonia de gênios e de heróis. Foi um Crepúsculo dos Deuses.