Página inicial > Barbuy, Heraldo > Barbuy: Progresso (5) - devenir incessante
Barbuy: Progresso (5) - devenir incessante
quinta-feira 7 de outubro de 2021, por
5. Quando se verifica que a ideia do progresso indefinido, do devenir incessante, constituiu o fulcro de onde emanaram atividade e pensamento contemporâneos, justo será perguntar em que espécie de progresso se tem acreditado tão fanaticamente: se no moral ou no econômico; no espiritual ou no material; no afetivo ou no intelectual. O progressismo, porém, não saberia dar uma resposta: a ideia de progresso nunca foi formulada claramente, tendo agido antes com a força de um mito. As teorias do progresso são derivados monistas do racionalismo, seja nas suas formas idealistas, seja nas materialistas. Ora, para o idealismo psicológico o mundo é produto da consciência geral ou concreta do sujeito do conhecimento; para o idealismo lógico, onde a realidade se apresenta como um sistema de juízos e determinações conceptuais, sujeito e objeto são manifestações dialéticas da Ideia do Absoluto: quer dizer que, espírito e matéria, individual e social, moral e econômico, são uma só e a mesma realidade sob aspectos diferentes. E para o materialismo, a consciência, a Ideia do Absoluto e todas as cousas em suma se reduzem a manifestações da matéria, ou seja, a uma só e mesma realidade. As infindáveis discussões entre idealismo e materialismo nada mais são [108] do que um novo tonel das Danaides, que nunca se esgota, porque o seu fundo é inteiramente vazio; nem o idealismo’ nem o materialismo se decidiram a tirar as últimas conclusões dos princípios da Inteligência e desconhecem ambos a realidade, sendo a matéria, a que se atribui a criação de todas as coisas, uma entidade tão abstrata, tão imponderável e tão desconhecida como a Ideia Absoluta de Hegel e a Vontade de Viver de Schopenhauer , que por outro lado se apresentam como a causa de todas as realidades. Tanto faz considerar a matéria como tradução do Espírito ou o Espírito como tradução da matéria; tendo o idealismo e o materialismo o comum fundamento monista, em toda dialética do progresso, seja materialista como a de Marx ou idealista como a de Hegel, o progresso se apresenta sob o aspecto de uma linha de desenvolvimento da mesma entidade, não se distinguindo essencialmente entre o moral e o econômico, o espiritual e o material, sendo o progresso um só: progresso de uma totalidade homogênea, que, como totalidade se compõe de partes que podem progredir em graus diversos: típico é o exemplo do Elan Vital bergso-niano que se paraliza no mineral, se embota no vegetal e progride no homem atravessando e arrastando o peso da matéria. O progresso indefinido não pode deixar de ser a evolução de um todo homogêneo, seja matéria, seja espírito, seja élan vital. Por isso, além das conclusões inteiramente vagas de que o progresso do mundo ou do homem é fruto do progresso da consciência da liberdade, ou de que o progresso da liberdade, ao contrário, resulta do progresso do homem e do mundo, não se podem encontrar nas teorias progressistas indicações mais claras da causa fundamental ou predominante do progresso. O progressismo, tendo agido sob o fascínio de um mito e supondo o progresso como existente a priori, longe de pretender indicar a sua causa, tratou antes de formular as suas leis. A filosofia do progressismo representou gigantesco esforço na determinação das leis de um progresso considerado como realidade evidente por si mesma. Comte formula na sociologia dinâmica uma lei geral, de tipo físico, do desenvolvimento contínuo, a que se subordinam as três conhecidas leis especiais: do progresso intelectual, com a lei dos três estados; do progresso nas atividades e do progresso afetivo; por claras que pareçam as leis oriundas dessa física social, Comte não consegue determinar as causas reais do progresso; quase sempre os progressos da inteligência, isto é, dos conhecimentos “científicos” [109] determinam os demais; porém no termo de sua obra Comte hesita entre a inteligência e os sentimentos; e depois de ter artificialmente distribuído as ciências, unificando-as na sociologia, quando tudo podia indicar a crença positivista na supremacia das descobertas intelectuais, Comte fundou a religião da Humanidade, que põe o altruísmo no primeiro plano; se o progresso dos sentimentos ou o da inteligência determina os demais, é problema que o positivismo afinal não esclarece. Condorcet, no entanto, de quem Comte se dizia o filho espiritual, havia escolhido uma solução eclética indicando causas diversas para o progresso nas diferentes épocas. — A subordinação do progresso contínuo a uma lei geral do desenvolvimento, de que se deduzem leis especiais, se generalizou na “filosofia natural” depois de Lamarck, em cujas Histoire Naturelle et Philosophie Zoologique se vêem todas as espécies animais derivando de um organismo primitivo pela graça da adaptação ao meio, das reações internas e da transmissão hereditária dos caracteres adquiridos. Eliminadas as reações internas, no sentido em que as entendia Lamarck (e que supunham a existência do sujeito, modificado pelo meio, mas independente dele, o que por sua vez implicava um finalismo), Darwin estabelece as leis da transformação sob uma perspectiva mecânica, na qual a vida é produto das leis da evolução e não vice-versa: através das leis da seleção natural, da luta pela vida, da adaptação ao meio e da transmissão hereditária dos caracteres adquiridos, o homem de Darwin é resultado do progresso que o trouxe desde o animal até a horda, desde a horda até a sociedade e desde a sociedade até o indivíduo. Esta marcha de um todo homogêneo para a riqueza crescente de inumeráveis manifestações heterogêneas (heterogêneas como acidentes, não como substâncias) fornece a lei geral de Spencer segundo a qual a evolução procede pela síntese, na integração constante de novos elementos, indo do simples para o complexo, do homogêneo para o heterogêneo, do indefinido para o definido, do indeterminado para o determinado, do caos para a ordem. A lei geral da diferenciação, que supõe por outro lado o desenvolvimento gradual do altruísmo, como o entendia Comte, é a que constitui o fundo explicativo da evolução social e moral. O progresso do indivíduo humano para Spencer se constitui pela sua especialização gradual como parte cada vez mais diferenciada e pela sua proporcional adaptação e harmonização com o todo. Nesta síntese de Spencer, como em todo monismo, o indivíduo, [110] se bem que exaltado pelo liberalismo, se apresenta finalmente como a parte de um todo, que funciona mecanicamente. Nem por menos, o ideal tradicional da sociedade aperfeiçoada pelo cumprimento das leis morais transcendentes, degenera com o progressismo no ideal da perfeição mecânica, onde o indivíduo só tem uma liberdade acidental, que lhe é concedida afim de que melhor realize a sua escravização ao interesse social. O erro capital do progressismo é considerar a sociedade como substância e o indivíduo como acidente; enquanto Santo Tomás estabelecia com admirável precisão que a sociedade não é nada mais do que uma unidade acidental, unidade de ordem e o indivíduo uma unidade substancial, o mecanicismo veio estabelecer justamente o contrário, não pela inversão consciente dos valores da realidade, mas pelo seu desconhecimento.
Reduzida pelo monismo toda realidade a um só e mesmo desenvolvimento, de que os múltiplos aspectos são apenas manifestações; indicadas as leis gerais e especiais do progresso, (suposto como existente, mais do que demonstrado), a indicação da causa do progresso, dependia, em última análise, da preferência de cada autor: tanto fazia indicar a Ideia Absoluta de Hegel, com sua incoercível exteriorização dialética, desde a triologia inicial — ser, não-ser e vir-a-ser — até as últimas formas superiores da arte, da religião e da filosofia e a reabsorção do Espírito em si mesmo: todo progresso seria então a tríplice, sucessiva manifestação do Espírito Absoluto; e verbalmente se pretenderá ser esta uma explicação da realidade concreta, quando ao contrário não toma sequer conhecimento do mundo das existências; o progressismo dialético gira num puro mundo de conceitos que inutilmente se esforçam por atingir a realidade existente [1]. Ou então, o progressista fatigado de abstrações poderá escolher a nebulosa de Laplace como ideia geral explicativa da origem do universo cósmico; ou ainda, poderá adotar a engenhosa teoria de Haeckel que desvenda todos os “enigmas do universo” com a monera, composta de azoto, hidrogênio, oxigênio e carbono: quatro elementos que, em transformações sucessivas, produzem todas as formas da vida, compreendida na sua totalidade; e o progressista convicto, depois de ter acompanhado linha por linha a construção de Haeckel, explicará as maravilhas do progresso indefinido, [111] inclusive o próprio gênio daquele naturalista, como produto da monera; as grandes sinfonias e os grandes poemas; as grandes descobertas técnicas e as mais aprimoradas filosofias, afinal o que serão? Produtos refinados do azoto, do hidrogênio, do oxigênio e do carbono. Mas, o Espírito Absoluto, a monera de Haeckel ou a grosseira matéria de Büchner e Le Dantec podem ser indiferentemente a causa miraculosa do progresso indefinido. Tudo se reduz sempre à mesma evolução, não se reconhecendo nunca a existência substancial da cousa que evolui.
[1] Sobre este ponto as originais observações de Étienne Gilson em seu livro L’Être et l’Essence,, Vrin, 1948; particularmente o cap. VII.
- Barbuy: Progresso (1) - mito do século XVIII a nossos dias
- Barbuy: Progresso (2) - racionalismo progressista
- Barbuy: Progresso (3) - razão e progressismo
- Barbuy: Progresso (4) - progressismo, sociologismo, materialismo
- Barbuy: Progresso (6) - progressismo e fatos históricos
- Barbuy: Progresso (7) - progressismo século XIX
- Barbuy: Progresso (9) - Paraíso Perdido
- Barbuy: Progresso (10) - progresso indefinido