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Agamben (E:138-142) – Avicena e a noção de phantasia

segunda-feira 27 de dezembro de 2021, por Cardoso de Castro

  

Em nosso exame da fantasmologia medieval, partimos de Avicena  , não por ter sido o primeiro a nos oferecer uma formulação clara, mas porque a sua meticulosa classificação do “sentimento interior” exerceu influência tão profunda no que foi definido como “a revolução espiritual do século XIII”, a ponto de ainda ser possível vislumbrar suas pegadas em pleno humanismo. Além disso, em Avicena que, assim como Averróis  , é também, e talvez [138] sobretudo, um médico [1] (cujo Canone foi mantido como texto de medicina em algumas universidades europeias pelo menos até o século XVII), aparece já perfeitamente estabelecida a vinculação entre faculdade da alma e anatomia cerebral, motivo pelo qual cada faculdade fica localizada em uma das três câmaras ou cavidades, que uma tradição médica, já perfeitamente elaborada em Galeno, situava no cérebro. Importa lembrar, a este respeito, que, enquanto hoje nos admiraríamos se encontrássemos referências estritamente médicas e anatômicas em um tratado de filosofia, o sistema intelectual da Idade Média é tão compacto que obras, que nos parecem filosóficas ou religiosas, tomaram por objeto minuciosas questões de anatomia cerebral ou de patologia clínica, e vice-versa. Em geral — como ocorre em Avicena e Averróis, e o mesmo se podería dizer de boa parte dos autores compreendidos nos volumes da Patrologia de Migne — é simplesmente impossível distinguir entre o médico e o filósofo. Tal entrelaçamento de motivos explicitamente médicos com temas que consideramos filosófico-literários é perceptível também nos poetas, cuja obra, conforme poderemos verificar, fica muitas vezes totalmente ininteligível sem um bom conhecimento da anatomia do olho, do coração e do cérebro, dos modelos circulatórios e da embriologia medievais, não só porque os poetas se referem diretamente às doutrinas fisiológicas do seu tempo, mas também porque frequentemente tal referência está costurada com uma intenção alegórica, que se exerce de maneira privilegiada sobre a anatomia e a fisiologia do corpo humano.

Avicena começa dividindo o sentido externo (vis apprehendendi a foris— força de apreensão de fora) daquele interno (vis apprehendendi ab intus [139] - força de apreensão de dentro) e articula em seguida ο sentido externo em cinco “virtudes”. [2]

A primeira das virtudes apreensivas internas é a fantasia ou senso comum, que é uma força situada na primeira cavidade do cérebro, que recebe para si mesma todas as formas que estão impressas nos cinco sentidos e a ela são transmitidos. Depois dela, há a imaginação, que é a força situada na extremidade da cavidade anterior do cérebro, aquela que mantém o que o senso comum recebe dos sentidos e que continua nela mesmo depois da remoção dos objetos sensíveis [aqui Avicena explica que a imaginação, à diferença da fantasia, não é apenas receptiva, mas também ativa, e que o “reter” é diferente do simples “receber”, como acontece com a água, que tem a faculdade de receber as imagens, mas não a de retê-las]... Depois desta, é a força que se chama imaginativa com respeito à alma vital e cogitativa com respeito à alma humana; ela está situada na cavidade mediana do cérebro e compõe, segundo a sua vontade, as formas que estão com outras [3] na imaginação. Além disso, há a força estimativa, situada na sumidade da cavidade mediana do cérebro, a qual apreende as intenções [4] não sensíveis encontradas em cada um dos objetos sensíveis, assim como a força que permite à ovelha julgar que deve fugir [140] do lobo... Há, depois, a força memorial e reminisável’ situada na cavidade posterior do cérebro e que retém o que a estimativa apreende das intenções não sensíveis de cada um dos objetos. A relação entre essa virtude e a estimativa é semelhante àquela entre a imaginação e o senso comum. E a relação entre ela e as intenções é análoga àquela entre a imaginação e os fantasmas.

Avicena apresenta esta quíntupla gradação do sentido interno como um progressivo “desnudamento” (denudatio) do fantasma dos seus acidentes materiais: com relação aos sentidos, que não desnudam a forma sensível, denudatione peifecta, a imaginação a põe, por sua vez, a nu, denudatione vera, sem, contudo, privá-la dos acidentes materiais, pois os fantasmas da imaginação são “segundo certa quantidade e qualidade e segundo certo lugar”, a saber, são —poderíamos afirmar—imagens bem identificadas e não conceitos abstratos. Na parte mais elevada da cavidade mediana do cérebro, a estimativa continua efetuando ulteriormente tal “desnudamento” do fantasma, do qual apreende as intenções não sensíveis, como a bondade ou a malícia, a conveniência ou a incongruência. Só quando o processo do sentido interno se realizou, a alma racional pode ficar informada pelo fantasma completamente desnudado: no ato da intelecção, a forma está nua e, “se já não estivesse nua, de todo modo ficaria, pois a virtude contemplativa a despoja de tal modo que nenhuma afeição material nela continua presente”.

Este esquema psicológico, frequentemente simplificado em uma tripartição correspondente aos três compartimentos do cérebro da tradição médica, encontra-se constantemente nos autores medievais. Assim, na Philosophia mundi de Guilherme de Conches, um dos mestres da Escola de Chartres no século XII, o processo psíquico é expresso nos crus termos temperamentais da medicina humoral:

Na cabeça há três celas... a primeira é quente e seca, sendo chamada de fantástica, ou seja, visual ou imaginativa, pois nela existe a capacidade de ver e de imaginar, e precisamente é [141] quente e seca para que possa atrair as formas das coisas e as cores. A cela do meio é chamada λογιστικόν, ou seja, racional: nela há a capacidade de discernir. O que a fantástica atrai, passa a esta, e ali a alma discerne. É quente e úmida, para que, ao discernir melhor, se conforme às propriedades das coisas. A terceira cela é denominada memorial, porque nela há a capacidade de manter algo na memória. [5]

O procedimento do pensamento medieval pode ser comparado, e não só nesse caso, com as composições musicais que recebem o nome de “variações sobre um tema”: trabalha sobre um determinado tema que reproduz e transpõe, mediante pequenas divergências, que podem chegar, em alguns casos, a transformar totalmente o material que serve de ponto de partida. Enquanto o “tema” de Avicena volta a ser encontrado, com algumas variações, em Alberto Magno, em Tomás de Aquino e em Jean de la Rochelle, o esquema tripartite está presente em obras muito distintas, como a Anatomia de Ricardus Anglicus, a Opus maius de Roger Bacon, os Documenti d’amore do poeta Francesco da Barberino, e a Glossa de Dino dei Garbo, até a canção de Cavalcanti, Donna mi prega.


[1É significativo que Dante (Inferno IV 143-44) cite Avicena e Averróis ao lado de Hipócrates e Galeno.

[2O autor que aqui nos interessa é o Avicenna latinus, ou seja, o que podia ser lido pelos homens cultos do século XIII no Ocidente. A edição consultada é Avicennae arabum medicorum principis opera ex Gerardi cremonensis versione, Venetiis, 1545. Para o De anima, foi consultado também o texto da edição crítica de van Riet (Leuven-Leid, 1972).

[3O isolamento da faculdade imaginativa distinta da fantasia passiva (que está na origem não tão longínqua da distinção de Coleridge entre fancy e imagination) é característica constante da psicologia medieval. Isso permite explicar, entre outras coisas, alguns aspectos do amor ses vezer, como a domna soiseubuda, a saber, feita de pedaços “tomados de empréstimo” de outras mulheres, do trovador Bertran de Born.

[4“Intenção” é, no vocabulário da psicologia medieval, “o que a alma apreende de um objeto sensível que não foi já apreendido pelo sentido exterior” (Avicena); esta “não é parte da coisa, como a forma, mas antes a forma do conhecimento da coisa” (Alberto Magno).

[5A Philosophia mundi está publicada na Patrologia latina (172, 39-102) como obra de Honório de Autun.