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Agamben: Damascio
quinta-feira 24 de março de 2022
Excerto de AGAMBEN , Giorgio. Ideia da prosa. Tr. João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012, p. 21-26
No ano 529 da nossa era, o imperador Justiniano, instigado por fanáticos conselheiros do partido anti-helênico, decretou através de um édito o encerramento da escola filosófica de Atenas. Coube, assim, a Damáscio , [1] o escolarca responsável, ser o último diádoco da filosofia pagã. Ele tinha tentado, por meio de funcionários da corte que lhe ofereceram os seus préstimos, evitar o acontecimento, mas conseguiu apenas que lhe concedessem, para compensar a confiscação dos seus bens e os rendimentos da escola, o salário de superintendente de uma biblioteca de província. Ora, temendo possíveis perseguições, o escolarca e seis dos seus mais próximos colaboradores carregaram um carro com livros e instrumentos, e procuraram refúgio na corte do rei dos persas, Khosrô Anocharvan. Os bárbaros tinham salvado aquela puríssima tradição helênica que os gregos – ou antes, os “romanos”, como agora se chamavam – já não eram dignos de guardar.
O diádoco já não era novo, e já iam longe os tempos em que julgara poder ocupar-se de histórias maravilhosas e de aparições de espíritos ; em Ctesifonte [21], depois dos primeiros meses de vida de corte, deixou aos seus discípulos Prisciano e Simplício a incumbência de satisfazer, com comentários e edições críticas, a curiosidade filosófica do soberano. Fechou-se na sua casa da parte norte da cidade, em companhia de um escriba grego e de uma criada síria, e decidiu consagrar os últimos anos de vida à redação de uma obra que intitularia Aporias e soluções em torno dos princípios primeiros.
Sabia perfeitamente que a questão que pretendia abordar não era uma questão filosófica entre outras. Não havia escrito o próprio Platão, numa carta que até os cristãos consideravam importante (sem, no fundo, a entenderem), que precisamente a interrogação sobre a Coisa primeira é a causa de todos os males ? Mas tinha acrescentado que o sofrimento que aquela interrogação causa na alma é como a dor do parto : enquanto não se libertar dela, a alma não poderá encontrar a verdade. Por essa razão, sem hesitar, já ao selar a obra, o velho diádoco formulou com clareza o tema : “Aquilo a que chamamos princípio único e supremo do Todo está para além do Todo, ou uma determinada parte do Todo, por exemplo, o ponto culminante das coisas que daí derivam ? Devemos nós dizer, por outro lado, que o Todo está no princípio, ou que vem depois dele e é procedente dele ? Pois, a admitir-se esta alternativa, terá de admitir-se que algo está fora do Todo – e como seria isso possível ? Aquilo a que não falta nada é, de fato, o Todo absoluto ; mas falta o princípio e, portanto, aquilo que vem depois do princípio e está fora dele não é o Todo absoluto”. [22]
Diz a tradição que Damáscio trabalhou na sua obra durante trezentos dias e outras tantas noites, ou seja, durante todo o período do seu exílio em Ctesifonte. Por vezes interrompia o trabalho durante dias e semanas e, nesses momentos, percebia, como através de uma parede de névoa, a vanidade da sua empresa. O texto que hoje podemos ler está semeado de frases como “apesar da nossa demorada investigação, não chegamos, ao que me parece, a conclusões nenhumas”. Ou então : “que tudo o que acabamos de escrever tenha o destino que a Deus aprouver !” Ou ainda : “Na minha exposição há apenas uma coisa louvável : o ela se condenar a si mesma, ao reconhecer que não vê claro, que é incapaz de olhar para a luz”. Mas depois retomava infalivelmente o trabalho, até a suspensão seguinte, até a inevitável nova crise. Pois, como pode o pensamento colocar a questão sobre o princípio do pensamento ? Como se pode, por outras palavras, compreender o incompreensível ? É claro que aquilo que aqui é posto em questão não pode ser tematizado nem sequer como incompreensível, não pode ser expresso nem sequer como inexprimível. “É de tal modo incognoscível que nem sequer tem por natureza o incognoscível, e não é dizendo-o incognoscível que podemos criar a ilusão de conhecê-lo, porque não sabemos sequer se é incognoscível.” Por isso, o discípulo de Siriano , que tinha sido também mestre do seu primeiro mestre, Marino, e que muitos consideravam insuperável, escreveu uma vez que, como ele não tem nome, nós podemos pensá-lo através do acento agudo (spiritus asper) que [23] colocamos sobre a vogal da palavra ἕν [hen = Uno]. Mas tratava-se, evidentemente, de uma sutileza indigna de um filósofo, no limite da charlatanice. Não era desse modo, com um sinal ilegível ou com um sopro, que ele poderia expor, nas suas Aporias, o impensável que está para além do sopro e do acento que se pode escrever. Foi assim que uma noite, enquanto escrevia, lhe veio subitamente à ideia a imagem que – assim lhe pareceu – o havia de guiar até a conclusão da obra. Não era, porém, uma imagem, mas qualquer coisa como o lugar totalmente vazio no qual apenas as imagens, um sopro, a palavra, poderiam eventualmente acontecer ; não era, assim, nem sequer um lugar, mas, por assim dizer, o lugar do lugar, uma superfície, uma área absolutamente lisa e plana, na qual nenhum ponto se podia distinguir de outro. Pensou na eira de pedra branca da fazenda onde nascera, às portas de Damasco, e onde à tarde os camponeses malhavam o trigo para separar o grão da palha. Não era aquilo que buscava como a eira, ela própria impensável e indizível, sobre a qual os crivos do pensamento e da linguagem separavam o grão e a palha de todo o ser ?
Aquela imagem agradava-lhe, e, seguindo-a, veio-lhe aos lábios uma palavra inaudita, que ligava o termo que significa eira ou área com aquele outro com o qual os astrônomos designam a superfície da Lua ou do Sol : ἅλως [halos]. Não, não era má solução para aquilo que queria dizer. Devia ater-se a ela e não lhe acrescentar nada. “É certo”, escreveu, “que do absolutamente inefável não podemos nem mesmo afirmar que é inefável, e do Uno teremos de dizer [24] que se furta a qualquer composição de nome e discurso, como também a toda distinção, tal a do cognoscível e do cognoscente. Temos de concebê-lo como uma espécie de halo plano e liso no qual nenhum ponto se pode distinguir do outro, como a coisa mais simples englobante : não apenas o Uno, mas o Todo-Uno, e Uno antes de Tudo, e não o Uno de um Todo...”
Damáscio levantou por um instante a mão e olhou a tabuinha sobre a qual ia anotando o curso dos seus pensamentos. De repente, lembrou-se da passagem do livro sobre a alma em que o filósofo compara o intelecto em potência a uma tabuinha sobre a qual não está escrito nada. Como ele não pensou nisso antes ? Era isso que, dia após dia, tentara apreender, era isso que, sem descanso, tinha perseguido no breve lampejo daquele halo indiscernível, cegante. O limite último que o pensamento pode atingir não é um ser, não é um lugar ou uma coisa, mesmo despojados de qualquer qualidade, mas a própria potência absoluta, a pura potência da própria representação : a tabuinha para escrever ! Aquilo que até aí julgara pensar como o Uno, como o absolutamente Outro do pensamento, era, pelo contrário, apenas a matéria, apenas a potência do pensamento. E todo o longo volume que a mão do escriba tinha enchido de letras não era mais que a tentativa de representar aquela tábua perfeitamente rasa sobre a qual ainda se não escreveu nada. Por isso não conseguia levar a bom termo a obra : aquilo que não podia cessar de se escrever era a imagem daquilo que nunca cessava de não se escrever. No [25] uno espelhava-se o outro, inatingível. Mas tudo era finalmente claro : agora podia quebrar a tabuinha, cessar de escrever. Ou, antes, começar verdadeiramente. Julgava agora compreender o sentido da máxima segundo a qual conhecendo a incognoscibilidade do outro, conhecemos não alguma coisa dele, mas alguma coisa de nós. Aquilo que nunca poderá ser primeiro permitia-lhe perceber, difusamente, o vislumbre de um início. [26]
[1] Damáscio : filósofo neoplatônico, nascido em Damasco cerca do ano 470. Propõe um misticismo dialético, dissolvendo a metafísica neoplatônica numa simbologia que acentua a distância entre o Uno e o Múltiplo.