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Agamben (E:142-151) – Averróis e a noção de phantasia

segunda-feira 27 de dezembro de 2021, por Cardoso de Castro

  

Não nos surpreende, portanto, que um “tema” psicológico análogo — também nesse caso com algumas variações significativas — apareça na obra do pensador que mediou, talvez, mais do que qualquer outro, a leitura de Aristóteles para o século XIII e no qual, com razão, Dante   vislumbrou o comentador por excelência do texto aristotélico: “Averroís, ehe l’ gran comento feo” [“Averróis  , que fez o grande comentário”]. Na sua paráfrase do De senso et sensibilibus, ele resume o processo que vai da sensação à imaginação, em cuja síntese a psicofisiologia medieval encontra sua expressão exemplar. De toda maneira, encontramos aqui rmediatamente a explicação da pergunta que Giacomo da Lentini formula no seu soneto: Or come pote sl gran donna entrares. [142]

A opinião dos que dizem que as formas dos objetos sensíveis se imprimem na alma com uma impressão corporal fica destruída... também pelo fato de que os corpos maiores são compreendidos pela visão através da pupila, por mais que ela seja pequena... por isso, diz-se que estes sentidos não compreendem as intenções dos objetos sensíveis se não forem abstraídos da matéria. [1]

O olho aparece aqui como espelho no qual se refletem os fantasmas, “enquanto neste instrumento predomina a água, que é tersa e diáfana, de tal forma que nela se inscrevem as formas dos objetos sensíveis, como em um espelho”. E assim como um espelho, para refletir as imagens, necessita ser iluminado, também o olho não verá se a sua água (ou seja, os humores contidos na complexa articulação de “túnicas” que o compõem, segundo a anatomia medieval) não estiver iluminada através do ar.

Dizemos, portanto - continua Averróis - que o ar, mediante a luz, recebe por primeiro a forma das coisas, depois a entrega à rede externa do olho, e esta a transmite pouco a pouco até à última rede, depois da qual se encontra o senso comum. No meio, a rede granulada compreende a forma das coisas: ela é como um espelho, cuja natureza fica entre aquela do ar e a da água... Por este motivo, ela recebe as formas do ar, pois é semelhante a um espelho, e as transmite para a água, pois a sua natureza é comum a ambas. A água, de que Aristóteles afirma que se encontra depois do humor granulado, é aquilo que Galeno denomina vítreo e é a porção extrema do olho: é através dela que o senso comum vê a forma. Logo que o senso comum recebe a forma, a transmite para a virtude [143] imaginativa, que a recebe de modo mais espiritual; tal forma pertence, portanto, à terceira ordem. As formas têm três ordens: a primeira é corpórea, a segunda está no senso comum e é espiritual, a terceira encontra-se na imaginação e é mais espiritual. E por ser mais espiritual do que no senso comum, a imaginação, para torná-la presente, não precisa da presença da coisa externa; inversamente, no sentido a imaginação não vê a forma e não consegue abstrair a sua intenção, a não ser depois de uma intuição atenta e prolongada. Portanto, as ordens desta forma nestas virtudes são, segundo Aristóteles, como se um homem tomasse um espelho de duas faces e, olhando para uma delas, voltasse a outra na direção da água. Se agora alguém olhasse na segunda face do espelho, ou seja, naquela voltada para a água, veria aquela mesma forma escrita pela água no espelho. A forma daquele que olha é a coisa sensível, o espelho é o ar mediano, e a água é o olho; a segunda face do espelho é a virtude sensitiva, e o homem que a compreende é a virtude imaginativa. Se, pois, quem olha olhasse agora para este segundo espelho, a forma desapareceria do espelho e da água, e ficaria aquele que olha para a segunda face do espelho imaginando a forma. Assim acontece com a virtude imaginativa com a forma que está no senso comum; e, quando o objeto sensível se ausenta do senso comum, imediatamente fica ausente também a sua forma e fica a imaginação no ato de a imaginar, isso se explica pelo fato de que o senso comum vê a forma mediante o olho, o olho mediante o ar, e a vê no humor aquoso que está no olho... [2]

Se nos detivemos nesta passagem de Averróis, isso se deve ao fato de que todo o processo cognoscitivo aparece concebido como uma especulação em sentido restrito, um refletir-se de fantasmas de espelho em espelho: espelho e água são os olhos e o sentido, que refletem a forma do objeto, mas especulação também é a fantasia, que “imagina” os fantasmas na ausência [144] do objeto. E conhecer equivale a curvar-se sobre um espelho onde o mundo se reflete, um espiar imagens reverberadas de esfera em esfera: e o homem medieval está sempre frente a um espelho seja quando se olha em volta, seja quando se abandona à própria imaginação. Mas também amar é necessariamente uma especulação, não tanto porque, conforme os poetas repetem, “os olhos geram por primeiro o amor” e porque este, como escreve Cavalcanti na sua canção, “provém da forma vista em que se entende” (ou seja, de uma forma que, segundo o processo que acabamos de descrever, penetra através dos sentidos externos e internos, até tornar-se fantasma ou “intenção” na cela fantástica e na memorial), mas porque a psicologia medieval, com uma invenção que está entre as heranças mais fecundas legadas à cultura ocidental, concebe o amor como um processo essencialmente fantasmático, que implica imaginação e memória, em uma assídua raiva em torno de uma imagem pintada ou refletida no íntimo do homem. [3] Assim, Andrea Cappellano, cujo De amore   é considerado a teorização exemplar da nova concepção, define o amor como immoderata cogitatio de um fantasma interior, e acrescenta que “ex sola cogitatione, quam concipit animus ex eo, quod vidit, passio illa procedit” [“a paixão nasce unicamente do pensamento que o ânimo concebe a partir do que vê”]. A descoberta medieval do amor, sobre o qual, e nem sempre de forma devida, tanto se [145] discutiu, é a descoberta da irrealidade do amor, ou seja, do seu caráter fantasmático. E é nesta descoberta, que leva às últimas consequências a conexão entre desejo e fantasma, e que a Antiguidade tinha pressentido apenas no Filebo   platônico, que reside a novidade da concepção medieval de Eros, e não certamente na pretensa ausência de espiritualidade erótica do mundo clássico.

Em todo o mundo clássico não se encontra nada semelhante à concepção do amor como processo fantasmático, mesmo que de modo algum faltem teorizações “elevadas” do amor, que aliás, sempre encontraram em Platão o seu paradigma original. Os únicos exemplos de uma concepção “fantasmática” do amor encontram-se nos neoplatônicos tardios e nos médicos (de maneira segura só a partir do século VIII); em ambos os casos, porém, trata-se de concepções “baixas” do amor, entendido ora como uma intervenção demoníaca, ora até mesmo como doença mental. Só na cultura medieval é que o fantasma emerge ao primeiro plano como origem e objeto de amor, e o lugar próprio de Eros se desloca da visão para a fantasia.

Não nos deve, por isso, surpreender que o lugar amoroso, por excelência, é, para a Idade Média, uma fonte ou um espelho, e [146] se, no Roman de la Rose, o deus de amor habita junto a uma fonte, que nada mais é que o miroërs perilleus de Narciso  . Estamos tão acostumados com a interpretação que a psicologia moderna deu a respeito do mito de Narciso, quando se define como narcisismo o fechar-se e o retrair-se da libido no eu, que acabamos esquecendo que, afinal de contas, no mito o jovem não está enamorado diretamente de si, mas da própria imagem refletida na água, e que ele toma por uma criatura real. Diferentemente de nós (e nem poderia ser de outra forma, se considerarmos a importância que o fantasma assume na psicologia medieval), a Idade Média identifica a característica saliente da infeliz história de Narciso, não no fato de ser um amor de si (a filautia não é necessariamente reprovável para a mentalidade medieval), mas no fato de ser amor de uma imagem, um “enamorar-se por uma sombra”. E este o motivo pelo qual a fábula de Narciso mereceu tão obstinada ênfase na formação da ideia medieval do amor, a ponto de o miroërs perilleus [147] ter-se transformado em acessório indispensável do ritual amoroso e a imagem do jovem junto à fonte estar entre os temas preferidos da iconografia erótica medieval; como alegoria de amor, tanto a história de Narciso quanto a de Pigmaleão aludem de modo exemplar ao caráter fantasmático de um processo que está voltado essencialmente para o obsessivo galanteio de uma imagem, segundo um esquema psicológico através do qual todo autêntico enamoramento é sempre um “amar por sombra” ou “por figura”, [4] toda intenção erótica profunda está sempre voltada, idolatricamente, para uma ymage.

Nessa perspectiva, nada impede que vejamos na cena do enamoramento do protagonista junto à fonte de Eros-Narciso, presente no Roman de la Rose, uma alegoria bastante fiel da psicologia fantasmática, descrita na passagem de Averróis que acabamos de examinar: “aequa est oculus” [“a água é o olho”], conforme dizia Averróis (e isso explica por que só quando “o sol, que tudo observa, | lança os seus raios na fonte | e a luz desce até o fundo | então aparecem mais de cem cores | no cristal...”), e o cristal duplo, que reflete ora uma metade, ora a outra do jardim, e nunca ambas ao mesmo tempo, é o da virtude sensitiva e da imaginativa, o que se entende bastante claramente se lembrarmos que, como Averróis mostra com a imagem das duas faces do espelho, nas quais não se pode olhar contemporaneamente, é possível contemplar o fantasma na imaginação (cogitare) ou a forma do objeto no sentido, mas nunca ambos ao mesmo tempo. [148]

A fonte de Amor, que “inebria de morte os vivos”, e o espelho de Narciso aludem ambos à imaginação, onde mora o fantasma que é o verdadeiro objeto do amor; e Narciso, que se enamora [149] de uma imagem, é o paradigma exemplar da fin’amors, e, ao mesmo tempo, com uma polaridade que caracteriza a sabedoria psicológica da Idade Média, do fol amour, que rompe o círculo fantasmático, na tentativa de se apropriar da imagem como se fosse uma criatura real.

Podemos, por conseguinte, a partir daqui, mesmo que haja ainda muito a esclarecer, considerar suficientemente justificados tanto o aparecimento do tema da ymage na poesia amorosa, quanto o encontro de Eros e de Narciso junto à fonte de amor. Ter levado também Eros a gravitar na constelação do fantasma, tê-lo conduzido a espelhar-se no miroërs perilleus da imaginação, constitui a grande novidade da psicologia na Idade Média tardia, e talvez seja a contribuição mais original que ela, quase sem que se note, traz à fantasmologia aristotélica.

Antes de deixar Averróis, precisamos deter-nos em um aspecto do seu pensamento que tem importância central para entender as polêmicas entre averroístas e antiaverroístas na filosofia do século XIII, ou seja, a doutrina que torna o fantasma o ponto de união, a “cópula” entre o indivíduo e o único intelecto possível.

Não é este o lugar para reconstruirmos a famosa disputa sobre a unidade ou sobre a multiplicidade do intelecto possível que, originada de uma obscura passagem do De anima de [150] Aristóteles, dividiu profundamente a vida intelectual do século XIII. É suficiente lembrar que Averróis, como porta-voz de uma concepção profunda (que hoje se tornou estranha, mas que certamente está incluída entre as mais elevadas expressões do pensamento medieval), que vê na inteligência algo único e supraindividual, de que cada um é simplesmente, para usar a bela imagem de Proust  , um “coinquilino” que se limita a oferecer, com seu ponto de vista, o olhar, sustenta que o intelecto possível é único e separado; incorruptível e eterno, ele se junta (copulatur) contudo a cada um dos homens, para que cada um deles possa concretamente exercer de maneira ativa a intelecção, através dos fantasmas que se encontram no sentido interno.


[1Já no livro De oculis, atribuído a Galeno, encontrava-se a mesma questão para explicar que a visão não é uma emanação da coisa para o olho: “Si ergo ad visum ex re videnda aliquid dirigitur... quomodo illum angustum foramen intrare poterit?” [“Se, portanto, algo se dirige da coisa a ser vista para o olho... como podería entrarporuma abertura tão estreita?”] (GALENI. De oculis über, cap. VI, em: Operum Hippocratis Coi et Galenipergameni medicorum omnium principium, Lutetiae, 1679, t. X.)

[2O trecho citado está na paráfrase de Averróis ao De sensu et sensibilibus aristotélico, em: Aristotelis Stagiritae omnia quae extant opera am Averróis Cordubensis... commentariis (Venetiis, 1552, v. VI).

[3A aproximação entre amor e visão já está presente no Fedro platônico (255 c-d), onde o amor é comparado a uma “doença dos olhos” (οφθαλμία), e tinha levado Plotino (Enéades III, v. 3) a sugerir como hipótese uma curiosa etimologia: “Eros, cujo nome provém do fato de ele dever sua existência à visão (ὄρασις)”. Nesta perspectiva, a passagem da concepção clássica do amor àquela medieval pode ser eficazmente caracterizada como a passagem de uma “doença da visão” a uma “doença da imaginação” (o amor é definido como “maladie de pensée” no Roman de la Rose — cf. v. 4348).

[4‘Aos amador, que amatz per figura” faz parte de uma poesia do trovador Ozil de Cadars (cf. LANGFORS. Te Troubadour Ogil de Cadars. Helsinki, 1913).