Página inicial > Agamben, Giorgio > Agamben (E:198-202) – Eros – herói – demônio
Agamben (E:198-202) – Eros – herói – demônio
quarta-feira 29 de dezembro de 2021
Não é fácil precisar em que momento o “demônio aéreo” de Epinómis, de Calcídio e de Pselo acaba identificado com o “herói” ressuscitado pelos antigos cultos populares. Segundo uma tradição que Diogenes Laércio faz remontar a Pitágoras , certamente os [198] heróis já apresentam todos os traços da demonicidade aérea: eles habitam no ar e agem sobre os homens inspirando-lhes sinais premonitórios da doença e da saúde [1]. A identificação com o demônio aéreo é testemunhada por uma etimologia cuja origem é provavelmente estoica e que aparece muitas vezes nos Padres da Igreja a partir de Agostinho. No livro X do De civitate Dei, que contém uma refutação apaixonada da teurgia neoplatônica, ele define os mártires cristãos como “nostros heroas”:
Diz-se – acrescenta ele – que este nome tenha sido tirado de Juno, que em grego se chama Ἥρα, e por isso não sei que filho seu foi chamado Heros, segundo as fábulas dos gregos, querendo significar misticamente que o ar, onde acreditam que os heróis habitem junto com os demônios, está sob a potestade de Juno... Mas, pelo contrário, os nossos mártires seriam chamados “heróis” (se o uso eclesiástico admitisse tal expressão) não porque exista no ar alguma associação entre eles e os demônios, mas porque eles vencem os próprios demônios, ou seja, as potências aéreas...
E este tríplice patrimônio semântico Eros — herói — demônio aéreo que, fundindo-se com uma antiga teoria médica, de que já existem vestígios em Plutarco e em Apuleio [2], que via no amor uma doença, desemboca na imagem “demônica” e sinistra de um Eros que já Plutarco, fora de qualquer influência cristã, descreve como um pequeno monstro munido de dentes caninos e garras [3]. Assim, no âmbito da tradição neoplatônica, já se havia formado [199] uma figura “baixa” de Eros-herói-aéreo, que insidia os homens inspirando-lhes paixões insanas; e é a esta figura, unida à antiga crença hipocrática que via nos heróis uma causa de enfermidade mental, à qual se deve, senão a própria fórmula amor hereos da tradição medida, pelo menos sua interpretação como amor heroycus (“amor heroico”) [4]. O amor heroico não é, na sua origem, o amor mais nobre e elevado, mas o baixo e obscuro, inspirado pelo herói-demônio aéreo. Assim como a teoria humoral da melancolia estava ligada à influência sinistra do demônio meridiano (reencarnação de Empusa, figura pertencente ao cortejo espectral de Hecates, causa também ela, segundo Hipócrates, de pesadelos e enfermidades mentais), assim também a doutrina médica do amor hereos expressava a polaridade patológica das influências de Eros herói-demônio aéreo. E é esta figura heroico-demoníaca de Eros, com caninos e garras, que deve ter inspirado o modelo iconográfico do Cupido “baixo e mitográfico”, que Panofsky pressupõe estar na origem da representação de Amor com garras no lugar dos pés, na alegoria de Giotto sobre a castidade e no afresco do castelo de Sabbionara, cujo protótipo procura reconstruir, através da ilustração dos Documenti d’amore de Francesco da Barberino, que mostra o Amor com as garras e o arco, em pé, sobre um cavalo a galope. Panofsky não conseguiu identificar o modelo deste curioso tipo iconográfico, pressupondo, porém, que “deve ter sido imaginado algum tempo antes que Barberino escrevesse seu tratado, embora certamente não antes do século XIII” [5]. Na realidade, conforme já observamos, uma imagem “demônica” de Eros já havia sido elaborada—pelo menos nas fontes literárias — na Antiguidade tardia, no âmbito da teurgia neoplatônica, levando Plutarco a atribuir caninos e garras a Eros e confluindo, em determinado momento, com a teoria médica do amor hereos. E é [200] no campo da teurgia ídolo-poiética, em passagem de Proclo , onde se deve buscar verossimilmente a origem do inusitado tema de Eros em pé sobre um cavalo. [6] Estas as características obscuras e demoníacas que devemos aprender a ver por detrás da nobre face do deus de amor dos poetas. Só se compreendermos que a teoria do amor é uma polarização audaz do amor “heróico-demoníaco” e do amor enfermidade, poderão medir-se o caráter revolucionário e a novidade de uma concepção que, apesar das mudanças sofridas no transcurso de sete séculos, é substancialmente também a nossa, com todas as suas ambiguidades e suas contradições. E só tal proximidade com uma experiência, mórbida e demônica, da imaginação, que pode explicar, pelo menos parcialmente, a descoberta medieval do caráter fantasmático do processo amoroso, deixado tão singularmente na penumbra na tradição clássica. Se, pelo contrário, se pressupõe na sua origem um modelo “elevado” (como, por exemplo, a mística cristã platonizante e, através desta, a teoria platônica do amor celeste), fica excluída precisamente a inteligência daquilo que a descoberta dos poetas tem de único e de específico. Não se deve, naturalmente, esquecer que uma polaridade positiva estava potencialmente contida, conforme vimos, na própria tradição cultural na qual se vinha formando a imagem “baixa” de Eros, desde a teurgia neoplatônica até a pneuma-fantasmologia. Assim como a teurgia neoplatônica certamente contribuiu para a formação da soteriologia amorosa, assim a revalorização do “espírito fantástico”, realizado no crisol alquímico no qual o platonismo se uniu fecundamente ao pensamento cristão, influenciou indubitavelmente na revalorização poética do amor. A polarização positiva de Eros coincide, nos poetas, com a exasperação do seu caráter fantasmático. Se os médicos aconselham como remédio principal do amor hereos o coito, e recomendam tudo o que possa desembaraçar o enfermo de sua “falsa imaginação”, o amor dos poetas mantém-se, por sua vez, rigorosa e obsessivamente no interior do próprio círculo fantasmático. Aparece assim como a “enfermidade mortal” da imaginação, que precisa ter atravessado até o fundo, sem nem iludi-la, nem superá-la, porque ela, ao lado de um risco letal, encerra uma possibilidade extrema de salvação. Nesta perspectiva, Narciso e Pigmaleão aparecem como os dois emblemas extremos, entre os quais se situa uma experiência espiritual cujo problema crucial pode ser formulado com as seguintes interrogações: como curar do amor hereos sem transgredir o círculo fantasmático? [AgambenE:198-202]
[1] DIOGENES LAÉRCIO, VIII, 32
[2] Em fragmento do perdido tratado Sull’amore (STOBEO, IV, 20.67), Plutarco escreve: “Segundo alguns, o amor é uma doença, segundo outros, uma amizade, uma loucura...” Apuleio, no De philosophia morali, fala de um “Amor teterrimus” [“Amor horribilissimo”] como se fosse uma “aegritudo corporalis” [“enfermidade corporal”].
[3] Plutarco (em: STOBEO, IV, 20.68): “Quais são os dentes e as garras do Amor? A desconfiança, o ciúme...”.
[4] Observe-se, entre as possíveis explicações do termo Hereos, que, nos Oráculos caldeus, o demônio aéreo aparece com a grafia ῂέριος (Oracles chaldaïques, texto critico e tradução de E. Des Places. Paris, 1971, fr. 91 e 216).
[5] E. PANOFSKY. Studi di iconologia. I temi umanistici nell’arte del Rinascimento. Trad. it. Torino, 1975, p. 168.
[6] In Platonis rem publicam, I, p. 111 Kroll; Oracles chaldcäques, op. cit, fr. 146: “Pronunciada a invocação, verás ou um fogo semelhante a um menino que se joga aos saltos sobre a onda do ar; ou então um fogo sem forma do qual se joga uma voz; ou uma luz abundante que, enrolando-se, cairá com estrondo ao solo; ou um cavalo mais esplendoroso que a luz, ou também um menino ardente que cavalga o veloz dorso de um cavalo, coberto de ouro ou então nu, ou então com o arco em mão e em pé sobre o dorso”. Se tal hipótese fosse verdadeira, levaria a pensar em possível vinculação entre a teoria do amor e a teurgia ídolo-poiética neoplatônica, e colocaria sob nova luz o caráter “idolátrico” que o amor, na qualidade de processo fantasmático, tem na cultura medieval. Além das tão frequentes referências, conforme vimos, a Narciso e a Pigmaleão, feitas pelos poetas, também as representações de amantes como idólatras (veja-se, por exemplo, a tigela para o parto atribuída ao Mestre de São Martinho no Louvre, mostrando alguns amantes famosos no ato de adorar uma figura feminina nua e alada, em cujos lados estão dois “erotes” com garras) testemunham que o amor estava próximo da idolatria.