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Schopenhauer (MVR1): vontade

quinta-feira 25 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

  

Até lá, contudo, portanto neste primeiro livro, é necessário considerar firmemente o lado do mundo do qual partimos, o lado da cognoscibilidade, e, por conseguinte, considerar sem resistência todos os objetos existentes, até mesmo o próprio corpo, apenas como representações, e não designá-las de outro modo senão simples representações. Aquilo do que se faz aqui abstração, como espero que mais tarde se tornará certo a cada um, é sempre a VONTADE, única que constitui o outro lado do mundo. Pois assim como este é, de um lado, inteiramente REPRESENTAÇÃO, é, de outro, inteiramente VONTADE. Uma realidade que não fosse nenhuma dessas duas, mas um objeto em si, é uma não coisa fantasmagórica, cuja aceitação é um fogo fátuo da filosofia. [MVR1: §1]

Mas, do mesmo modo que o objeto só existe para o sujeito como sua representação, também cada classe especial de representações existe só para uma igualmente especial disposição do sujeito, que se nomeia faculdade de conhecimento. O correlato subjetivo do tempo e espaço neles mesmos, como formas vazias, Kant   denominou sensibilidade pura, expressão que pode ser conservada, pois Kant abriu aqui o caminho, embora tal expressão não seja apropriada, visto que a sensibilidade já pressupõe a matéria. O correlato subjetivo da matéria, ou causalidade, pois ambas são uma coisa só, é o ENTENDIMENTO, que não é nada além disso. Conhecer a causalidade é sua função exclusiva, sua única força, e se trata de uma poderosíssima força, abarcando muito, de uso multifacetado e, não obstante, inconfundível em sua identidade no meio de todas as suas aplicações. Por sua vez, toda causalidade, portanto toda matéria, logo a efetividade inteira, existe só para o entendimento, através do entendimento, no entendimento. A primeira e mais simples aplicação, sempre presente, do entendimento é a intuição do mundo efetivo: este nada é absolutamente senão conhecimento da causa a partir do efeito: por conseguinte, toda intuição é intelectual. Todavia, jamais se poderia chegar a tal intuição se algum tipo de efeito não fosse conhecido imediatamente, servindo assim como ponto de partida. Este, contudo, é o efeito sobre os corpos animais. Nesse sentido, tais corpos são os OBJETOS IMEDIATOS do sujeito: a intuição de todos os outros objetos é intermediada por eles. As mudanças que cada corpo animal sofre são imediatamente conhecidas, isto é, sentidas, e, na medida em que esse efeito é de imediato relacionado à sua causa, origina-se a intuição desta última como um OBJETO. Tal relação não é uma conclusão em conceitos abstratos, não ocorre por reflexão, nem com arbítrio, mas é imediata, necessária, certa. Trata-se do modo de conhecimento do ENTENDIMENTO PURO, sem o qual não haveria intuição, mas restaria apenas uma consciência abafada, vegetal, das mudanças do objeto imediato, que se seguiriam completamente insignificantes umas às outras caso não tivessem um sentido como dor ou prazer para a VONTADE. Ora, assim como o nascer do Sol faz surgir o mundo visível, também o entendimento transforma de UM SÓ golpe, mediante sua função exclusiva e simples, a sensação abafada que nada diz em intuição. O que o olho, o ouvido e a mão sentem não é intuição: são meros dados. Só quando o entendimento passa do efeito à causa é que o mundo aparece como intuição, estendido no espaço, alterando-se segundo a figura, permanecendo em todo o tempo segundo a matéria, pois o entendimento une espaço e tempo na representação da MATÉRIA, isto é, eficácia. Este mundo como representação, da mesma forma que se dá apenas pelo entendimento, existe também só para o entendimento. No primeiro capítulo do meu ensaio Sobre a visão e as cores já havia explanado como o entendimento, a partir dos dados que os sentidos fornecem, produz a intuição e como, mediante a comparação das impressões do mesmo objeto recebidas pelos diferentes sentidos, a criança aprende a intuir; como justamente só assim se dá o esclarecimento de tantos fenômenos dos sentidos, tais como a visão singular com dois olhos, a visão dupla no estrabismo, o ver simultâneo de objetos apesar de eles situarem-se um atrás do outro em distâncias desiguais, e tantas outras ilusões produzidas por uma mudança súbita nos órgãos do sentido. De maneira muito mais detalhada e fundamentada, todavia, tratei desse tema tão importante na segunda edição do ensaio Sobre o princípio de razão, § 2 I. Tudo o que foi ali dito encontraria aqui o seu lugar necessário e, portanto, teria de ser propriamente repetido. Porém, como tenho quase tanta aversão em me copiar quanto em copiar os outros, e não estou em condições de expor o tema aqui melhor do que lá foi feito, remeto o leitor ao referido ensaio, em vez de aqui repeti-la, pressupondo-o portanto como conhecido. [MVR1: §4]

Se retomarmos dessa origem inteiramente independente, empírica, da questão acerca da realidade do mundo exterior para a sua origem especulativa, encontraremos, como vimos, que ela se apoia em primeiro lugar na falsa aplicação do princípio de razão entre sujeito e objeto e, em seguida, de novo na confusão de suas figuras, na medida em que, de fato, o princípio de razão do conhecer é transportado a um domínio onde o que vale é o princípio de razão do devir: contudo, dificilmente essa questão teria ocupado de maneira tão contínua os filósofos se fosse completamente destituída de conteúdo verdadeiro e em seu núcleo não residisse um pensamento correto e um sentido como sua origem mais própria; tem-se então de admitir que, só quando entraram na reflexão e se procurou exprimi-las é que assumiram aquelas forma e polêmica confusas, incompreensíveis nelas mesmas. Assim o penso. A expressão pura, que não se conseguiu encontrar, do sentido mais profundo daquela questão é: Que é este mundo intuitivo tirante o fato de ser minha representação? Por acaso é aquilo de que estou consciente só como representação, ou é como o meu próprio corpo, do qual estou duplamente consciente, de um lado como REPRESENTAÇÃO, de outro como VONTADE? — A explanação distinta e a resposta afirmativa dessa questão constituirão o conteúdo do segundo livro desta obra, e as consequências daí advindas formam a parte restante do presente escrito. [MVR1: §5]

Aqui, portanto, o corpo nos é objeto imediato, isto é, aquela representação que constitui para o sujeito o ponto de partida do conhecimento, na medida em que ela mesma, com suas mudanças conhecidas imediatamente, precede a aplicação da lei de causalidade e assim fornece a esta os primeiros dados. Toda a essência da matéria consiste, como foi mostrado, em seu fazer-efeito. Causa e efeito, entretanto, existem apenas para o entendimento, que nada é senão o seu correlato subjetivo. Mas o entendimento nunca seria usado caso não houvesse algo mais de onde ele partisse. E este algo é simplesmente a sensação dos sentidos, a consciência imediata das mudanças do corpo, em virtude da qual este é objeto imediato. Logo, a possibilidade de conhecer o mundo intuitivo baseia-se em duas condições: a primeira, PARA EXPRESSÁ-LO DE MANEIRA OBJETIVA, é a capacidade dos corpos de fazerem efeito uns sobre os outros, de produzirem mudanças entre si: sem essa propriedade universal, intuição alguma seria possível, mesmo mediante a sensibilidade dos corpos animais; se, todavia, quisermos EXPRESSAR DE MANEIRA SUBJETIVA essa mesma condição, então diremos que o entendimento, antes de tudo, torna a intuição possível, pois apenas dele procede a lei de causalidade, logo, a possibilidade de causa e efeito, que também vale apenas para ele; em consequência, o mundo intuitivo existe apenas para e pelo entendimento. A segunda condição, entretanto, é a sensibilidade do corpo animal, ou a propriedade de certos corpos de serem objetos imediatos do sujeito. As simples mudanças que os órgãos dos sentidos sofrem de fora, mediante ações que são aptos a receber, já devem ser nomeadas representações, se semelhantes ações não despertarem dor nem prazer, ou seja, não possuírem significado imediato algum para a VONTADE, e, não obstante, forem percebidas, portanto existirem apenas para o CONHECIMENTO: nesse sentido, digo que o corpo é CONHECIDO imediatamente, é OBJETO IMEDIATO. Todavia, aqui não se deve tomar o conceito de objeto no sentido estrito do termo, pois, por meio desse conhecimento imediato do corpo, que precede o uso do entendimento e é mera sensação dos sentidos, o corpo mesmo não se dá propriamente como OBJETO, mas, antes, os corpos que fazem efeito sobre ele; já que todo conhecimento de um objeto propriamente dito, ou seja, de uma representação intuível no espaço, existe apenas para e pelo entendimento, logo, não antes, mas somente após o seu uso. Portanto, o corpo como objeto propriamente dito, ou seja, como representação intuível no espaço, só é conhecido, justamente como os demais objetos, apenas de maneira mediata, pela aplicação da lei de causalidade na ação de uma de suas partes sobre as outras, logo, na medida em que o olho vê o corpo, a mão o toca. Por meio do simples sentimento geral não conhecemos a figura do nosso corpo, mas o fazemos apenas pelo conhecimento, apenas na representação, isto é, no cérebro, no qual o nosso corpo primeiramente se expõe como algo extenso, formado de membros, vale dizer, como um organismo: um cego de nascença recebe essa representação só gradualmente, pelos dados que o tato lhe fornece; um cego sem mãos nunca conheceria sua figura ou, quando muito, a iria inferir e construir gradualmente a partir da ação de outros corpos sobre si. É com essa restrição que se deve entender o que dizemos quando nomeamos o corpo um objeto imediato. [MVR1: §6]

O procedimento objetivo pode ser desenvolvido mais consequentemente e levado o mais longe possível quando se dá como materialismo propriamente dito. Este pressupõe a matéria, junto com o tempo e o espaço, como subsistindo absolutamente e salta por sobre a relação com o sujeito, unicamente no qual tudo isso decerto existe. O materialismo assume a lei de causalidade como fio condutor e com ela quer progredir tomando-a como uma ordenação de coisas a subsistir por si, veritas aeterna; em consequência, salta por sobre o entendimento, unicamente no qual e para o qual existe a causalidade. Então, tenta encontrar o primeiro e mais simples estado da matéria para, em seguida, desenvolver todos os outros a partir dele, ascendendo do mero mecanismo ao quimismo, à polaridade, à vegetação, à animalidade. Ora, supondo-se que tudo isso assim ocorresse, o último elo da cadeia seria a sensibilidade animal, o conhecimento, que, portanto, entraria agora em cena como uma mera modificação da matéria, um estado produzido a partir desta pela causalidade. Se com representações intuitivas seguíssemos o materialismo até este ponto, então, ao chegar ao ápice, seríamos subitamente assaltados pelo riso inextinguível dos deuses do Olimpo, na medida em que, como despertando de um sonho, perceberíamos de repente que seu último resultado, laboriosamente produzido, o conhecimento, já era pressuposto como condição absolutamente necessária no primeiríssimo ponto de partida, e a mera matéria que imaginávamos pensar no materialismo, de fato não a tínhamos pensado mas tão somente no sujeito que a representa, no olho que a vê, na mão que a sente, no entendimento que a conhece. Assim, desvelar-se-ia a inesperada e enorme petitio principii, pois subitamente se mostraria o último elo como o ponto fixo do qual o primeiro já pendia, e a cadeia formaria um círculo. O materialista assemelha-se ao Barão de Münchhausen, que, debatendo-se na água e montado em seu cavalo, puxa este para cima com as pernas e levanta a si mesmo pela ponta da peruca estendida ao alto. Daí que a absurdidade fundamental do materialismo consiste em partir do OBJETIVO, em tomar algo OBJETIVO por fundamento último de explicação, seja a MATÉRIA como ela é apenas PENSADA in abstracto, seja já revestida de forma e dada empiricamente, portanto o ESTOFO, como os elementos químicos fundamentais e as suas combinações elementares. Procedendo assim, considera a matéria como existente em si e absolutamente, para dela fazer surgir a natureza orgânica e, ao fim, o sujeito que conhece, e assim explica a este de maneira completa; — quando, em verdade, todo objetivo, já como tal, é condicionado de maneira variada pelo sujeito que conhece e pelas suas formas cognitivas, pressupondo-os; logo, caso se abstraia o sujeito, desaparece por completo o que é objetivo. O materialismo é, portanto, a tentativa de explicitar-nos o que é dado imediatamente a partir do que é dado mediatamente. Tudo o que é objetivo, extenso, que faz efeito, portanto tudo o que é material- o materialismo considera como fundamento sólido das suas explicações, de modo que uma redução àquilo não deixa nada mais a desejar. Porém, no meu entendimento, tudo isso é dado de maneira inteiramente mediata e condicionada, portanto tem subsistência meramente relativa, pois passou pela maquinaria e fabricação do cérebro, por conseguinte, entrou em suas formas: tempo, espaço e causalidade: apenas devido às quais se expôs como extenso no espaço e fazendo efeito no tempo. De algo dado dessa maneira o materialismo pretende explicar inclusive o que é dado imediatamente, a representação na qual tudo existe e, ao fim, até mesmo a VONTADE, a partir da qual, antes, todas aquelas forças fundamentais, que se exteriorizam pelo fio condutor das causas, devem na verdade ser explicadas. — À afirmação de que o conhecimento é modificação da matéria contrapõe-se sempre com igual direito a afirmação contrária de que toda matéria é apenas modificação do conhecer do sujeito, como representação do mesmo. Não obstante, o fim e ideal de qualquer ciência da natureza é, no fundo, um materialismo desenvolvido até as suas últimas consequências. Todavia, este é por nós aqui reconhecido como manifestamente impossível, o que confirma outra verdade, que resultará da nossa consideração posterior, de que toda ciência no sentido próprio do termo, compreendida como conhecimento sistemático guiado pelo fio condutor do princípio de razão, nunca alcança um alvo final, nem pode fornecer uma explicação completa e suficiente, porque jamais toca a essência mais íntima do mundo, jamais vai além da representação; antes, basicamente, somente conhece a relação de uma representação com outra. Qualquer ciência parte sempre de dois dados básicos: um deles, sem exceção, é o princípio de razão numa de suas figuras, como órganon; outro é O objeto específico de cada ciência, como problema. Assim, por exemplo, a geometria tem o espaço como problema e o princípio de razão do ser no espaço como o seu órganon; a aritmética tem o tempo como problema e o princípio de razão do ser no tempo como o seu órganon; a lógica tem a ligação dos conceitos enquanto tal como problema e o princípio de razão do conhecer como o seu órganon; a história tem os fatos humanos ocorridos em seu conjunto como problema e a lei de motivação como o seu órganon; a ciência da natureza, por sua vez, tem a matéria como problema e a lei de causalidade como o seu órganon: logo, seu objetivo e fim último é, pelo fio condutor da causalidade, reduzir um ao outro todos os possíveis estados da matéria e, ao fim, a um único estado, e novamente derivar todos os possíveis estados da matéria uns dos outros para, finalmente, derivá-los de um único estado. Dois estados da matéria se dão como extremos contrários da ciência natural: um é aquele no qual a matéria é o menos possível objeto imediato, outro é aquele no qual ela é o máximo possível objeto imediato do sujeito: noutros termos, de um lado a matéria morta e bruta, estofo primário fundamental, de outro o organismo humano. O primeiro é investigado pela ciência da natureza enquanto química, o segundo pela ciência da natureza enquanto fisiologia. Mas até agora os dois extremos não foram atingidos, e só entre os dois é que se ganhou alguma coisa. Também as perspectivas futuras são sem esperança. Os químicos, sob a pressuposição de que a divisão qualitativa da matéria não pode ir ao infinito como a sua divisão quantitativa, procuram sempre limitar o número dos elementos fundamentais, agora em cerca de 60: se chegassem a apenas dois, obteriam um modo de reduzi-los a apenas um, pois a lei de homogeneidade conduz à pressuposição de um estado químico primário da matéria que precederia a todos os outros, que como tais não essenciais a ela enquanto tal, mas apenas a suas formas contingenciais e qualidades. Por outro lado, é difícil entender como esse estado primário poderia alguma vez sofrer uma mudança química se não houvesse um segundo estado para fazer efeito sobre ele. Com isso, no domínio químico, apresenta-se o mesmo tipo de embaraço com o qual se deparou Epicuro   no domínio mecânico, ao ter de explicar como um primeiro átomo partiu da direção originária de seu movimento: sim, essa contradição que se desenvolve inteiramente por si mesma, impossível de ser evitada e resolvida, poderia ser considerada de maneira bastante apropriada uma ANTINOMIA química: contradição que, assim como se apresenta aqui no primeiro dos dois procurados extremos da ciência da natureza, também se mostra no segundo como sua contrapartida correspondente. — Há também pouca esperança de alcançar esse outro extremo da ciência da natureza, pois se reconhece cada vez mais que nunca algo químico pôde ser reduzido a algo mecânico, nem algo orgânico a algo químico ou elétrico. Aqueles, porém, que tentam hoje em dia percorrer de novo o caminho desse antigo erro logo serão obrigados, como todos os seus predecessores, a retomar calados e envergonhados. O assunto será objeto de exame detalhado no segundo livro. As dificuldades aqui mencionadas apenas de passagem confrontam a ciência da natureza em seu próprio domínio. A ciência da natureza considerada como filosofia seria materialismo, o qual, contudo, como vimos porta desde o nascimento a morte no coração, porque salta por sobre o sujeito e as formas do conhecer, que de fato já são pressupostos tanto na matéria mais bruta, de onde o materialismo desejaria principiar, quanto no organismo, onde o materialismo desejaria chegar. Pois “nenhum objeto sem sujeito” é a proposição que torna para sempre todo materialismo impossível. Sóis e planetas sem um olho que os veja e um entendimento que os conheça, até se pode dizê-las em palavras, mas estas são para a representação um sideroxylon. Por outro lado, a lei de causalidade e a consideração e investigação da natureza que dela se seguem conduzem-nos necessariamente à afirmação segura de que, no tempo, qualquer estado da matéria mais complexamente organizado deve ter sido precedido de um mais simples, vale dizer, que os animais existiram antes dos seres humanos, os peixes antes dos animais, as plantas antes destes e o inorgânico antes de qualquer orgânico; por consequência, a massa originária passou por uma longa série de mudanças antes que o primeiro olho pudesse abrir-se. E no entanto a existência daquele mundo inteiro permanece sempre dependente desse primeiro olho que se abriu, tenha ele pertencido até mesmo a um inseto: pois tal olho é o intermediador necessário do conhecimento, para o qual e no qual unicamente existe o mundo, que sem o conhecimento não pode ser concebido uma vez sequer: pois o mundo é absolutamente representação e precisa, enquanto tal, do sujeito que conhece como sustentáculo de sua existência: sim, toda aquela longa série temporal cheia de inumeráveis mudanças mediante as quais a matéria ascendeu de forma em forma até a existência do primeiro animal cognoscente, todo esse tempo, ele mesmo, só pode ser pensado unicamente na identidade de uma consciência; ele é sucessão de representações dessa consciência, forma de seu conhecimento, e na ausência dessa identidade, o tempo perde toda sua significação e nada é. Assim, vemos de um lado a existência de todo o mundo necessariamente dependente do primeiro ser que conhece, por mais imperfeito que seja; de outro, vemos esse primeiro animal cognoscente também necessariamente dependente de uma longa cadeia de causas e efeitos que o precede, na qual aparece como um membro diminuto. Essas duas visões contraditórias, pelas quais somos, de fato, conduzidos com igual necessidade, poderiam decerto ser denominadas uma ANTINOMIA da nossa faculdade de conhecimento, antinomia esta posicionada como contrapartida daquela encontrada no primeiro extremo da ciência da natureza; em contraste, a quádrupla antinomia de Kant será demonstrada, na crítica da sua filosofia em apêndice a este livro, como um blefe. — Todavia, a contradição que por último se apresenta necessariamente a nós encontra sua solução no fato de, para falar na linguagem de Kant, o tempo, o espaço e a causalidade não pertencerem à coisa em si, mas exclusivamente à sua aparência, da qual são as formas, o que na minha linguagem soa: o mundo objetivo como representação não é o único, mas apenas um lado do mundo, por assim dizer o seu lado exterior: o mundo ainda possui um outro lado completamente diferente, a sua essência mais íntima, o seu núcleo, justamente a coisa em si: este lado nós o consideraremos no livro seguinte, nomeando-o VONTADE, conforme a mais imediata de suas objetivações. Porém, o mundo como representação, único considerado aqui, surge apenas com a abertura do primeiro olho, sem cujo médium do conhecimento não pode existir: portanto não existia anterior mente. Ora, sem esse olho, isto é, fora do conhecimento, também não havia antes tempo algum. Isso, todavia, não significa que o tempo tenha começado, mas antes todo começo está nele: porém, como o tempo é a forma mais universal da cognoscibilidade, à qual têm de se adaptar todas as aparências por intermédio da cópula da causalidade, o tempo também está ali presente com o primeiro conhecimento. A aparência que preenche esse primeiro presente tem de simultaneamente ser conhecida como ligada causalmente e dependendo de uma série de aparências que se estendem infinitamente no passado, que é tanto condicionado pelo primeiro presente quanto este o é pelo passado; assim, também o passado, do qual descende o primeiro presente, depende do sujeito que conhece e sem este nada é; contudo, a necessidade também leva a que o primeiro presente não se apresente como se fosse o primeiro, ou seja, sem passado algum como mãe e o começo do tempo, mas, antes, apresente-se, segundo o princípio de razão de ser no tempo, como consequência do passado; do mesmo modo como a aparência que preenche esse primeiro presente se apresenta, segundo a lei de causalidade, como efeito de estados prévios que preenchem o passado. — Quem aprecia interpretações mitológicas pode considerar como descrição do momento aqui exposto de aparecimento do tempo o nascimento de Cronos, o mais jovem dos titãs, que, tendo castrado o seu pai, cessa as produções cruas do céu e da terra, com o que a raça de deuses e homens povoa agora o cenário. [MVR1: §7]

Tirante as representações até agora consideradas, vale dizer, as que conforme a sua composição remontam a tempo, espaço e matéria ou a sensibilidade e entendimento, isto é, conhecimento da causalidade, apareceu ainda, no ser humano somente, entre todos os habitantes da Terra, uma outra faculdade de conhecimento; despontou uma consciência completamente nova, que muito apropriadamente e com precisão infalível se denominou REFLEXÃO. Porque, de fato, esta é um reflexo, algo derivado do conhecimento intuitivo e que, todavia, assumiu uma natureza e uma índole fundamentalmente diferentes, sem as formas do conhecimento intuitivo. Também o princípio de razão que rege todos os objetos adquiriu aqui uma figura completamente outra. Essa nova consciência, extremamente poderosa, reflexo abstrato de todo intuitivo em conceitos não intuitivos da razão, é a única coisa que confere ao ser humano aquela clarividência que tão decisivamente diferencia a sua consciência da dos animais e faz o seu modo de vida tão diferente do de seus irmãos irracionais. De imediato o ser humano os supera em poder e sofrimento. Os animais vivem exclusivamente no presente; já o ser humano vive simultaneamente no futuro e no passado. Os animais satisfazem as necessidades do momento; já o ser humano se serve de engenhosos preparativos para cuidar do seu futuro, sim, para cuidar até do tempo em que não pode viver. Os animais sucumbem por completo à impressão do momento, ao efeito do motivo intuitivo; já o ser humano é determinado por conceitos abstratos independentes do momento presente. Eis por que o ser humano executa planos ponderados e age conforme máximas, sem observância do meio que o cerca e das impressões casuais do momento; por isso pode, por exemplo, fazer friamente preparativos artificiais para a própria morte, pode dissimular até à inescrutabilidade e levar consigo seu mistério ao túmulo; possui, por fim, uma escolha real entre diversos motivos, pois apenas in abstracto é que estes podem, ao ser encontrados simultaneamente na consciência, trazer consigo o conhecimento de que um exclui o outro e, assim, permitir a comparação do poder relativo que cada um exerce sobre a VONTADE, com o que o motivo preponderante, assumindo as rédeas, é a decisão ponderada da VONTADE, que dá assim sinais inconfundíveis de sua índole. O animal, ao contrário, é determinado pela impressão atual: apenas o temor da pressão do momento presente pode restringir seu apetite, até o ponto de o temor se tornar hábito e, como tal, determiná-lo: tem-se aí o adestramento. O animal sente e intui; o ser humano, além disso, PENSA e SABE. Ambos QUEREM. Enquanto o animal comunica sua sensação e disposição por gestos e sons, O ser humano comunica seus pensamentos aos outros mediante a linguagem, ou os oculta por ela. Linguagem que é o primeiro produto e instrumento necessário da razão: por isso, em grego e italiano, linguagem e razão são indicadas com a mesma palavra: il discorso. Vernunft, razão, vem de Vernehmen, inteligir, que não é sinônimo de Hören, ouvir, mas antes significa a interiorização de pensamentos comunicados por palavras. Somente com a ajuda da linguagem a razão traz a bom termo suas mais importantes realizações, como a ação concordante de muitos indivíduos, a cooperação planejada de muitos milhares de pessoas, a civilização, o Estado, sem contar a ciência, a manutenção de experiências anteriores, a combinação de elementos comuns num único conceito, a comunicação da verdade, a propagação do erro, o pensamento e a ficção, os dogmas e as superstições. O animal conhece a morte tão somente na morte; já o ser humano aproxima-se dela a cada hora com inteira consciência e isso torna a vida às vezes questionável, mesmo para quem ainda não reconheceu no todo mesmo da vida o seu caráter de contínua aniquilação. Principalmente devido à morte é que o ser humano possui filosofias e religiões, embora seja incerto se aquilo que com justeza apreciamos acima de tudo na ação de alguém, isto é, a retidão voluntária e a nobreza de caráter, alguma vez tenha sido fruto de alguma daquelas duas. Por outro lado, como produtos certos, exclusivos da filosofia e da religião e que são criações da razão, temos as opiniões mais estranhas e aventureiras dos filósofos de diversas escolas e as práticas mais raras, às vezes cruéis, dos padres de diferentes religiões. [MVR1: §8]

Por fim, também a virtude e a santidade não nascem da reflexão, mas da profundeza íntima da VONTADE e da sua relação com o conhecimento. A explicitação disso pertence a outro lugar completamente diferente deste escrito; aqui, porém, permito-me observar que os dogmas que se relacionam com o ético podem até ser os mesmos na faculdade de razão de nações inteiras, porém a conduta de cada indivíduo pode ser outra, e vice-versa; a conduta transcorre, como se diz, conforme o SENTIMENTO, isto é, não segundo conceitos, mas segundo o conteúdo ético. Os dogmas ocupam a razão ociosa; enquanto a conduta segue o seu caminho, em última instância, independentemente deles, a maioria das vezes não conforme máximas abstratas, mas conforme máximas indizíveis, cuja expressão é a pessoa inteira mesma. Assim, por mais diferentes que sejam os dogmas religiosos dos povos, o bom feito é acompanhado entre eles de contentamento indizível, e o mau feito, de um remorso sem fim: o primeiro não admite zombaria alguma; do último, padre algum pode nos absolver. Todavia, não se deve negar que, na observância de uma vida virtuosa, o emprego da razão é necessário, embora ela não seja a fonte da virtude, mas sua função é subordinada, ou seja, manter as decisões tomadas, providenciar máximas para resistência contra fraquezas do momento e para conservação da conduta. Ao fim, a razão tem o mesmo papel na arte, onde ela também em nada contribui para o principal, porém apoia a execução, justamente porque o gênio não está sempre desperto e, não obstante, a obra deve ser consumada em todas as suas partes, formando um todo. [MVR1: §12]

§ 16. Após as considerações sobre a razão enquanto faculdade especial e exclusiva do ser humano e sobre aqueles fenômenos e realizações próprios da natureza humana, falta ainda falar da razão na medida em que conduz a ação das pessoas, podendo, portanto, nesse aspecto ser denominada PRÁTICA. Porém, o que aqui será mencionado encontra em grande parte o seu lugar em outro contexto, a saber, no apêndice deste livro, em que se contesta a existência da chamada razão prática de Kant, que ele expõe como fonte imediata de todas as virtudes e sede de um DEVER absoluto. A refutação minuciosa desde os fundamentos desse princípio kantiano da moral foi por mim ulteriormente realizada nos Dois problemas fundamentais da ética. — Em função disso, tenho aqui muito pouco a falar sobre a real influência da razão, no sentido autêntico deste conceito, sobre o agir. Já no início de nossa consideração acerca dessa faculdade observamos, em termos gerais, como a ação e o comportamento do ser humano diferenciam-se bastante da ação e do comportamento animal, e como semelhante diferença deve ser vista somente como consequência da presença de conceitos abstratos na consciência. A influência destes sobre a nossa existência inteira é tão determinante e significativa que, em certo sentido, pode-se dizer que estamos para os animais, assim como os animais que veem estão para os destituídos de olhos: só pelo tato é que estes animais conhecem o que lhes está imediatamente presente no espaço, ou seja, chega-lhes ao contato; os animais que veem, ao contrário, conhecem um amplo círculo do que está próximo e distante. Da mesma forma, a ausência de razão confina os animais às representações intuitivas que lhes são imediatamente presentes no tempo, ou seja, objetos reais: o ser humano, ao contrário, em virtude do conhecimento in abstracto, abrange, ao lado do presente efetivo e próximo, ainda o passado inteiro e o futuro, junto com o vasto reino das possibilidades: divisamos livremente a vida em todos os lados, para além do presente e da realidade efetiva. Assim, em certa medida, a razão é para o conhecimento interior no tempo o que o olho é para o conhecimento sensível no espaço. E do mesmo modo que a visibilidade dos objetos só tem valor e significação desde que indique a sua palpabilidade, assim também todo o valor do conhecimento abstrato reside sempre na sua referência ao conhecimento intuitivo. Eis por que o ser humano natural sempre atribui mais valor àquilo que foi conhecido imediata e intuitivamente do que aos conceitos abstratos, meramente pensados: ele prefere o conhecimento empírico ao lógico. O contrário pensam as pessoas que vivem mais nas palavras que nos atos, que enxergaram mais no papel e nos livros que no mundo efetivo, e que, na sua forma mais degenerada, tornam-se pedantes e apegados à letra. Daí se torna concebível como Leibniz   e Wolf, junto aos seus seguidores, puderam errar tanto a ponto de afirmarem, seguindo o exemplo de Duns Skotus, que o conhecimento intuitivo não passa de um conhecimento abstrato confuso! Em honra de Espinosa   seja dito que seu senso de correção fazia com que explicasse todo conceito geral como tendo se originado da confusão do que foi conhecido intuitivamente. — Daquele modo pervertido de pensar também resultou, na matemática, o desprezo por sua evidência propriamente dita, para fazer valer apenas a evidência lógica; também resultou que, em geral, todo conhecimento não abstrato seja concebido sob o amplo conceito de sentimento, merecedor de pouca consideração, e que, por fim, a ética kantiana afirme que a pura e boa VONTADE despertada imediatamente pelo conhecimento das circunstâncias e que conduz à ação justa e benevolente é mero sentimento, o que o faz tomá-la como destituída de valor e mérito; ao contrário, só as ações derivadas de máximas abstratas são por ele reconhecidas como dotadas de valor moral. [MVR1: §16]

O desenvolvimento perfeito da RAZÃO PRÁTICA, no verdadeiro e autêntico sentido do termo, o ápice a que o ser humano pode chegar mediante o simples uso da razão, com o que a sua diferença do animal se mostra da maneira mais nítida, foi exposto, enquanto ideal, na figura do SÁBIO ESTOICO. Pois a ética estoica não é originária e essencialmente uma doutrina da virtude, mas mera instrução para uma vida racional, cujo fim e objetivo é a felicidade mediante a tranquilidade de ânimo. A conduta virtuosa encontra-se ali como que per accidens, como meio, não como fim. Eis por que a ética estoica, segundo toda a sua essência e o seu ponto de vista, é fundamentalmente diferente dos sistemas éticos orientados imediatamente para a virtude, como o são as doutrinas dos Vedas  , de Platão, do cristianismo e de Kant. O objetivo da ética estoica é a felicidade: virtutes omnes finem habere beatitudinem, lê-se na exposição de Stoa feita por Estobeu. A ética estoica ensina que a felicidade certa só se encontra na paz interior e tranquilidade espiritual, por sua vez só alcançáveis pela virtude: precisamente isso significa a expressão: a virtude é o bom supremo. Se gradativamente o objetivo foi esquecido em favor dos meios e a virtude foi recomendada de modo que revele um interesse completamente outro que o da própria felicidade, já que contraria a esta; então se trata de uma daquelas inconsequências pelas quais, em qualquer sistema, o imediatamente conhecido ou, como se diz, a verdade sentida é deixada de lado, fazendo violência à lógica das conclusões; é o que se vê claramente, por exemplo, na ética de Espinosa, que deduz uma doutrina pura da virtude por evidentes sofismas a partir do egoístico suum utile quaerere. Segundo o que foi dito, o espírito da ética estoica, tal qual o concebo, encontra-se no pensamento de se a grande prerrogativa do homem, a razão, e o que desta provém e que tanto facilita mediatamente o fardo de sua vida por ações planejadas, não seria também capaz de eliminar imediatamente e por completo, ou algo próximo disso, por intermédio do mero conhecimento, os sofrimentos e tormentos de todo tipo que preenchem a vida. Os estoicos consideram incompatível com a prerrogativa da razão que, ao sermos dela dotados, e por ela concebendo e abarcando uma infinitude de coisas e estados, ainda sejamos passíveis — em relação ao presente e às circunstâncias de que se compõem os poucos anos de uma vida tão curta, fugidia e incerta — a tão veementes dores, a tão grandes angústias e sofrimentos provindos do ímpeto tempestuoso da cobiça e da aversão; pensaram, assim, que o emprego apropriado da razão deveria ter em vista a elevação do ser humano por sobre tudo isso, tornando-o invulnerável. Eis por que Antístenes diz: aut mentem parandam, aut laqueum, ou seja, a vida é tão cheia de tormentos e atribulações que ou se os supera por pensamentos equilibrados ou se tem de abandoná-la. Perceberam que a privação e o sofrimento não se originam imediata e necessariamente de não ter; mas antes de querer ter e não ter; portanto, esse querer ter é a condição necessária pela qual exclusivamente o não ter se torna privação e provoca dor. Non paupertas dolorem efficit, sed cupiditas. Reconheceram ainda por experiência que é a esperança, a expectativa, o que atiça e alimenta o desejo; consequentemente, nem os muitos e inevitáveis males comuns a todos, nem os bens inalcançáveis são aquilo que inquieta e atormenta; mas só o algo de mais ou de menos insignificante daquilo que se pode alcançar ou evitar; sim, reconheceram que não apenas o absolutamente, mas também o relativamente, inalcançável, ou inevitável, deixa-nos completamente tranquilos; por isso os males, uma vez acrescidos à nossa individualidade, ou os bens que necessariamente lhe têm de permanecer negados, são considerados com indiferença e, em consequência dessa peculiaridade humana, cada desejo logo se extingue; portanto, não pode provocar mais dor alguma caso nenhuma esperança o alimente. De tudo o que foi dito resulta que toda felicidade só pode basear-se na proporção existente entre as nossas aspirações e o que recebemos: é indiferente quão grandes ou pequenas sejam as duas grandezas dessa proporção, que pode ser produzida tanto pela diminuição da primeira grandeza quanto pelo aumento da segunda: no mesmo sentido, todo sofrimento propriamente dito provém da desproporção entre o que por nós é exigido e aquilo que nos é dado; desproporção esta, entretanto, que manifestamente só se encontra no conhecimento e poderia ser inteiramente eliminada por uma melhor intelecção. Eis por que Crisipo   diz: Temos de viver de acordo com a experiência do que comumente ocorre na natureza, ou seja, deve-se viver com apropriado conhecimento sobre o curso das coisas no mundo. Todas as vezes que alguém perde o controle, ou sucumbe aos golpes da infelicidade, ou se entrega à cólera, ou se desencoraja mostra justamente que concebe as coisas de maneira diferente do que esperava, logo, que estava errado e não conhecia o mundo nem a vida, não sabia como a natureza inanimada, pelo acaso, assim como a natureza animada, por intenções conflitantes, e também por crueldade, cruza a cada passo a VONTADE individual: portanto, não usou a razão para chegar a um conhecimento universal da índole da vida ou então lhe faltava a faculdade de juízo; pois não conseguia reconhecer no particular aquilo que conhecia em geral, surpreendendo-se, com o que a pessoa fica fora de si. Assim, toda alegria vivaz é também um erro, uma ilusão, já que nenhum desejo realizado pode nos satisfazer duradouramente e, ainda, porque toda posse e felicidade só podem ser concedidas pelo acaso, por tempo indeterminado, conseguintemente podem ser retiradas na hora seguinte. Toda dor, por seu turno, baseia-se no desaparecimento de tal ilusão: alegria e dor, portanto, nascem de um conhecimento falho; o sábio, no entanto, sempre permanece distante do júbilo ou da dor e nenhum acontecimento perturba a sua Ataraxia. [MVR1: §16]

EPICTETO  , em conformidade com o espírito e objetivo de Stoa; começa e constantemente retorna a um pensamento que considerava como o núcleo da sua sabedoria: que devemos ponderar cuidadosamente e diferenciar o que depende de nós do que não depende de nós, e nunca contar com este último fator; com o que confiantemente livramo-nos de toda dor, sofrimento e angústia. Aquilo, entretanto, que depende de nós é exclusivamente a VONTADE: e aqui se dá gradualmente uma transição para a doutrina da virtude, ao se notar que, assim como o mundo exterior e independente de nós determina a felicidade ou a infelicidade, assim também o contentamento íntimo ou o descontentamento conosco mesmos provêm da VONTADE. Ulteriormente foi questionado se os termos bonum et malum deveriam ser atribuídos àquele primeiro par ou ao último. Isso obviamente era arbitrário, objeto de escolha, e não alterava em nada as coisas; porém, estoicos, peripatéticos e epicuristas polemizaram incessantemente sobre o tema, comprazendo-se na comparação inadmissível entre essas duas grandezas completamente incomensuráveis, daí inferindo sentenças opostas e paradoxais que eles atiravam na cara uns dos outros. Uma interessante compilação dessas sentenças, fornecida pelo lado estoico, encontra-se nos Paradoxa de Cícero. [MVR1: §16]

19. Se com resistência interior explanamos no primeiro livro o próprio corpo e os demais objetos deste mundo intuitivo como mera representação do sujeito que conhece, agora tornou-se claro que na consciência de cada um há algo que diferencia a representação do próprio corpo de todas as demais representações, que de resto são totalmente iguais a ele; noutros termos, o corpo se dá à consciência de um modo toto genere diferente, indicado pela palavra VONTADE; e precisamente esse conhecimento duplo que temos do nosso corpo fornece elucidação sobre ele mesmo, sobre seu fazer-efeito e movimento por motivos, bem como sobre seu sofrimento por ação exterior, numa palavra, sobre o que ele é não como representação, porém fora disso, portanto EM SI — elucidação que de imediato não temos em relação à essência, fazer-efeito e sofrimento de todos os outros objetos. [MVR1: §19]

Denomino CAUSA, no sentido estrito do termo, o estado da matéria que, ao produzir outro com necessidade, sofre ele mesmo mudança igual à que provoca, o que se expressa na lei “ação e reação são iguais”. Ademais, em se tratando de causa propriamente dita, o efeito cresce na proporção exata dela, e assim também a sua reação, de modo que uma vez conhecido o tipo de efeito é possível medir e calcular o seu grau a partir do grau de intensidade da causa, e vice-versa. Tais causas em sentido estrito fazem efeito em todos os fenômenos da mecânica, da química etc., numa palavra, em todas as mudanças dos corpos inorgânicos. Por outro lado, denomino ESTÍMULO aquela causa que não sofre reação alguma proporcional ao seu efeito e cujo grau de intensidade nunca é paralelo à intensidade do efeito, e este, portanto, não pode ser medido de acordo com aquela: antes, um pequeno aumento no estímulo pode ocasionar um grande aumento no efeito ou, ao contrário, suprimir por completo o efeito já produzido etc. Desse tipo são todos os efeitos sobre os corpos orgânicos enquanto tais: assim, todas as mudanças propriamente orgânicas e vegetativas no corpo animal ocorrem por estímulo, não por simples causas. O estímulo, entretanto, como em geral qualquer causa, portanto como qualquer motivo, nada mais determina senão o ponto de exteriorização de cada força no tempo e no espaço, não a essência íntima da força que se exterioriza, que, conforme nossa inferência anterior, reconhecemos como VONTADE, à qual devem ser atribuídas as mudanças tanto sem consciência quanto conscientes do corpo. O estímulo ocupa o meio-termo, faz a transição entre o motivo, que é causalidade intermediada pelo conhecimento, e a causa em sentido estrito. Em casos específicos o estímulo situa-se ora mais próximo do motivo, ora mais próximo da causa, contudo sempre deve ser diferenciado de ambos: assim, por exemplo, o aumento da seiva nas plantas se dá por estímulo e não é explanável a partir de meras causas segundo leis da hidráulica ou dos tubos capilares: embora decerto receba apoio destes, estando já bastante próximo da pura mudança causal. Por outro lado, os movimentos da Hedysarum gyrans e da Mimosa pudica, embora se sigam de mero estímulo, são bastante similares aos movimentos que se seguem de motivos e quase aparentam querer fazer a transição. A contração da pupila em virtude do aumento de luz se dá por estímulo, porém já entra no movimento por motivo, ocorrendo porque a luz muito forte poderia afetar dolorosamente a retina, com o que, para evitá-lo, contraímos a pupila. — A ereção se deve a um motivo, vale dizer, a ocasião que a produz é uma representação; todavia, faz efeito com a necessidade de um estímulo: isto é, não se pode resistir a ele, mas ele tem de ser afastado para tornar-se ineficaz. Esse é também o caso de objetos repugnantes que provocam náuseas. Consideramos anteriormente o instinto dos animais como um tipo de intermediário real mas completamente diferente entre o movimento por estímulo e o agir conforme motivo conhecido. Poderíamos ser tentados a procurar na respiração outro intermediário desse tipo: de fato, discutiu-se muito se a respiração é um movimento voluntário ou involuntário, noutros termos, se ela se segue a partir de motivos ou de estímulos. Talvez seja algo intermediário. MARSHALL HALL a explica como uma função mista, pois está em parte sob a influência dos nervos cerebrais, em parte dos nervos espinhais. No entanto, em última instância temos de computá-la entre as exteriorizações da VONTADE que se dão por motivos, visto que outros motivos, ou seja, meras representações, podem determinar a VONTADE a travar ou acelerar a respiração, com o que esta, como toda outra ação voluntária, adquire a aparência de poder ser travada, provocando assim livremente a asfixia. De fato, isso pode ocorrer no instante em que um motivo determina tão fortemente a VONTADE que a impositiva necessidade de ar é sobrepujada. Segundo alguns, foi dessa forma que Diógenes pôs fim à própria vida. Negros também devem ter feito o mesmo. Teríamos aí um exemplo forte da influência de motivos abstratos, ou seja, da força superior do querer racionável propriamente dito sobre o querer meramente animal. Em favor do condicionamento parcial da respiração pela atividade cerebral há o fato de que o ácido cianídrico provoca morte ao paralisar o cérebro, travando assim indiretamente a respiração: se esta for mantida artificialmente até que finde a narcose cerebral, a morte é evitada. De passagem seja aqui dito que a respiração fornece também o exemplo mais eloquente de como os motivos fazem efeito com uma necessidade tão intensa quanto o estímulo e as causas em sentido estrito, só podendo ser neutralizados em sua eficácia por motivos opostos, ou seja, a pressão neutralizada por meio de contrapressão: pois, em se tratando de respiração, a ilusão de poder privar-se desta é incomparavelmente mais fraca do que no caso de outros movimentos que se seguem a partir de motivos, porque lá o motivo é impositivo, bastante próximo, e sua satisfação é muito fácil em virtude dos músculos infatigáveis que realizam a respiração; ademais, via de regra, nada se lhe opõe, e todo o processo é apoiado pelo hábito inveterado do indivíduo. E, no entanto, todos os motivos de fato fazem efeito com a mesma necessidade. O conhecimento de que a necessidade é comum aos movimentos por motivo e por estímulo facilitará a intelecção de que também aquilo que no corpo animal se dá por estímulo e em conformidade completa com leis é, segundo sua essência interior, VONTADE; que, não em si, mas em todas as suas aparências está submetida ao princípio de razão, à necessidade. Por conseguinte, não ficaremos só no conhecimento de que os animais em seu agir, em sua existência inteira, corporização e organização são aparecimentos da VONTADE, mas também estenderemos às plantas o único conhecimento imediato que nos é dado sobre a essência em si das coisas. Todos os movimentos das plantas se dão por estímulos, já que a ausência de conhecimento e de movimento por motivos condicionados por conhecimento constitui a única diferença essencial entre animal e planta. Portanto, o que aparece para a representação como planta, simples vegetação, força cega que cresce, será considerado por nós, segundo a sua essência em si, como VONTADE e reconhecido como aquilo que justamente constitui a base da nossa própria aparência que se exprime em nosso agir e em toda a existência do nosso corpo. [MVR1: §23]

Resta-nos ainda dar o último passo e estender o nosso modo de consideração a todas as forças que fazem efeito na natureza segundo leis universais, imutáveis, em conformidade com as quais seguem-se os movimentos de todos os corpos que, privados de órgãos, não têm suscetibilidade alguma a estímulos ou conhecimento para motivos. Portanto, a chave para a compreensão da essência em si das coisas, chave esta que só poderia ser dada pelo conhecimento imediato da nossa própria essência, também tem de ser aplicada às aparências do mundo inorgânico, que são as mais distantes de nós. — Assim, ao considerá-las com olhar investigativo, ao vermos o ímpeto poderoso e irresistível com que a massa d água se precipita nas profundidades, a persistência com a qual o ímã sempre se volta ao pelo norte, o anelo com que o ferro é atraído pelo ímã, a veemência com que os pelos da eletricidade se esforçam por reunir-se e que, precisamente como os desejos humanos, é intensificada por obstáculos; ao vermos a formação rápida e repentina do cristal numa regularidade de configuração que manifestamente indica um decisivo e preciso esforço de expansão em diversas direções, subitamente paralisado; ao notarmos a escolha com que os corpos se procuram ou se evitam, se unem ou se separam quando colocados livres no estado fluido e subtraídos ao vínculo da gravidade; por fim, ao sentirmos de maneira completa e imediata como o esforço de uma carga para continuar a sua própria tendência à superfície da Terra atrapalha o movimento do nosso corpo, Incessantemente pressionando-o e comprimindo-o; — então não custará grande esforço à imaginação reconhecer de novo a nossa própria essência até mesmo em tão grande distância. Precisamente aquela essência que em nós segue seus fins à luz do conhecimento, aqui, nas mais tênues de suas aparências, esforça-se de maneira cega, silenciosa, unilateral e invariável. Mas em toda parte é uma única e mesma essência. Ora, tanto quanto os primeiros raios da aurora e os intensos raios do meio-dia têm o mesmo nome de luz do Sol, assim também cada um dos aqui mencionados casos tem de levar o nome de VONTADE, que designa o ser em si de cada coisa no mundo, sendo o único núcleo das aparências. [MVR1: §23]

A separação, a ilusão de uma diferença total entre as aparências da natureza inorgânica e a VONTADE, que percebemos como o íntimo do nosso próprio ser, origina-se antes de tudo do contraste entre a legalidade plenamente determinada de um tipo de aparência e a ilusória arbitrariedade desregrada de outra. Pois no ser humano a individualidade irrompe poderosamente: cada um possui seu próprio caráter: por conseguinte o mesmo motivo não tem poder igual sobre todos, e milhares de circunstâncias menores que ocupam espaço na ampla esfera de conhecimento do indivíduo e modificam sua reação permanecem, no entanto, desconhecidas para outros; daí a ação de alguém não poder ser predeterminada exclusivamente a partir do motivo, pois falta o outro fator, a noção exata do caráter individual e do conhecimento que a este acompanha. As aparências das forças naturais, ao contrário, exibem o outro extremo: fazem efeito conforme leis universais, sem exceção, sem desvio, privadas de individualidade, segundo circunstâncias visivelmente manifestas, submetidas às mais exatas predeterminações, e a mesma força natural exterioriza-se exatamente do mesmo modo em milhões de aparências. Ora, para esclarecer esse ponto e demonstrar a identidade de uma VONTADE UNA e indivisa em todos os seus tão diferentes aparecimentos, tanto nos mais tênues quanto nos mais nítidos, precisamos antes considerar a relação existente entre a VONTADE como coisa em si e a sua aparência, noutros termos, entre o mundo como VONTADE e o mundo como representação, com o que se nos abrirá o melhor caminho para uma profunda investigação do tema abordado em todo este segundo livro. [MVR1: §23]

24. Aprendemos do grande Kant que tempo, espaço e causalidade estão presentes em nossa consciência segundo a completa legalidade e possibilidade de todas as suas formas, e que a sua presença na consciência é inteiramente independente dos objetos que ali aparecem e que constituem o seu conteúdo: noutros termos, tempo, espaço e causalidade podem ser encontrados quer se parta do sujeito, quer se parta do objeto; daí com igual direito poder-se denominá-las modos de intuição do sujeito ou qualidades do objeto ENQUANTO OBJETO, ou seja, REPRESENTAÇÃO. Aquelas formas podem ser consideradas o limite intransponível entre objeto e sujeito: eis por que todo objeto tem de aparecer nelas; mas também o sujeito as possui e as examina em toda a sua extensão sem referência ao objeto que aparece. — Ora, se os objetos que aparecem nessas formas não devem ser fantasmas vazios, mas possuir uma significação, então têm de indicar e ser expressão de algo que não é mais, como eles mesmos, objeto, representação, isto é, meramente relativo e para um sujeito, mas algo que existe independentemente de uma condição essencial contraposta com suas formas, ou seja, algo que não é mais REPRESENTAÇÃO, e sim uma COISA EM SI. Nesse horizonte é permitido ao menos perguntar: aquelas representações, aqueles objetos são outra coisa além de representações, objetos do sujeito? E, nesse sentido, o que seriam? Que é aquele seu outro lado toto genere diferente da representação? Que é a coisa em si? — Nossa resposta foi: a VONTADE. Tema esse que, todavia, deixo momentaneamente de lado. [MVR1: §24]

A despeito do que seja a coisa em si, Kant corretamente concluiu que tempo, espaço e causalidade não são determinações da coisa em si e só lhe convêm depois e na medida em que se torna representação, ou seja, pertencem somente à sua aparência, não à VONTADE mesma. Pois, visto que o sujeito constrói e conhece plenamente tais formas a partir de si e independentemente de qualquer objeto, elas têm de aderir ao SER-REPRESENTAÇÃO enquanto tal, não àquilo que vem a ser representação. Têm de ser a forma da representação nela mesma, não as qualidades daquilo que assumiu esta forma. Têm de ser dadas já na mera oposição entre sujeito e objeto, por conseguinte têm de ser apenas a determinação mais precisa da forma do conhecimento em geral, cuja determinação mais universal é justamente essa oposição. Portanto, o que na aparência, no objeto é condicionado por tempo, espaço e causalidade, vale dizer, PLURALIDADE, MUDANÇA E DURAÇÃO, e matéria, por fim tudo o que é representado apenas por meio deles, — tudo isso tomado conjuntamente não é essencial ao QUE ali aparece, ao QUE entrou na forma da representação, mas pertence somente a essa forma mesma. Ao contrário, aquilo que na aparência NÃO é condicionado por tempo, espaço e causalidade, nem é remissível a eles, muito menos explanável a partir deles, é justamente aquilo pelo qual o que aparece, a coisa em si, dá sinal de si imediatamente. Em conformidade com isso, a mais perfeita cognoscibilidade, vale dizer, a maior clareza, distinção e suscetibilidade de exaustiva fundamentação convém necessariamente ao que é próprio do conhecimento ENQUANTO TAL, portanto à sua FORMA, mas de modo algum ao que em si NÃO é representação, NÃO é objeto e só é cognoscível quando entra em tais formas, ou seja, torna-se representação, objeto. Portanto, somente aquilo que depende exclusivamente de ser conhecido, de ser-representação em geral e enquanto tal, que convém, pois, sem exceção a tudo o que é conhecido e nesse sentido pode ser encontrado, quer se parta do sujeito, quer do objeto, — apenas isso nos poderá proporcionar sem reserva conhecimento suficiente, exaustivo e claro até seu último fundamento. Tal conhecimento, entretanto, não se baseia em outra coisa senão nas formas conhecidas a priori de todas as aparências, formas essas que conjuntamente se expressam como princípio de razão e que, relacionadas ao conhecimento intuitivo, são tempo, espaço e causalidade. Unicamente sobre elas se fundam toda a matemática pura e a ciência pura a priori da natureza. Só em tais ciências, portanto, o conhecimento não encontra obscuridade alguma, não se choca contra o infundado e não mais dedutível; foi nesse sentido que Kant, como dito, quis denominar aqueles conhecimentos, ao lado da lógica, preferencial e exclusivamente ciências. Por outro lado, tais conhecimentos não mostram nada além de meras proporções e relações de uma representação com outra, forma sem nenhum conteúdo. Todo conteúdo que recebem, qualquer aparência que preencha aquelas formas, contém algo não mais completamente cognoscível em sua essência, não mais inteiramente explanável por outra coisa, portanto, algo sem fundamento, em que o conhecimento perde de súbito em evidência e perfeita cristalinidade. Isso que se furta a toda fundamentação, contudo, é justamente a coisa em si, aquilo que essencialmente não é representação, não é objeto do conhecimento e só se torna cognoscível quando entra naquela forma. A forma lhe é originariamente alheia e nunca se confunde com ela. A coisa em si jamais pode ser remetida à mera forma e, como esta é o princípio de razão, jamais pode ser plenamente FUNDAMENTADA. Se, em consequência, a matemática nos fornece conhecimento exaustivo daquilo que na aparência é grandeza, posição, número, ou seja, relações espaciais e temporais; se a etiologia nos dá por completo as condições regulares sob as quais as aparências emergem no tempo e no espaço com todas as suas determinações — ainda assim nada se aprende por aí senão por que cada aparência determinada tem de se mostrar precisamente agora e exatamente aqui; assim, com a ajuda de tais ciências nunca podemos penetrar a essência íntima das coisas; sempre permanece algo alheio à explanação, que esta, contudo, sempre pressupõe, a saber, as forças da natureza, o modo determinado de fazer-efeito das coisas, a qualidade, o caráter de cada aparência, o infundado que não depende da forma da aparência, do princípio de razão, alheio a esta forma e no entanto nela entrando e aparecendo conforme sua lei, que, entretanto, determina justamente o aparecimento, não aquilo QUE aparece; determina apenas o Como, não o Que da aparência, apenas a forma, não O conteúdo. — Mecânica, física   e química ensinam as regras e leis segundo as quais as forças de impenetrabilidade, gravidade, rigidez, fluidez, coesão, elasticidade, calor, luz, afinidades eletivas, magnetismo, eletricidade etc. fazem efeito, isto é, a lei, a regra observada por essas forças em seu aparecimento no tempo e no espaço em cada caso: porém, as forças mesmas, não importa o que nós façamos, permanecem ali qualitates occultae. Pois se trata exatamente da coisa em si que, à medida que aparece, expõe esses fenômenos; ela mesma, porém, é completamente diferente deles e, embora em sua aparição esteja integralmente submetida ao princípio de razão como forma da representação, ainda assim nunca é remissível a esta forma e, por conseguinte, não é etiologicamente explicável até o seu fundo, não podendo ser por completo fundamentada; pode até ser plenamente compreensível ao assumir aquela forma, isto é, na media em que é aparência; contudo, essa compreensibilidade não explana um mínimo sequer a sua essência íntima. Por isso, quanto mais necessidade está implicada em um conhecimento, tanto mais há nele aquilo que não pode ser pensado nem representado de outro modo, como por exemplo as relações espaciais; quanto mais claro e suficiente ele é, tanto menos puro conteúdo objetivo possui, ou tanto menos realidade propriamente dita ele fornece. Ao contrário, quanto mais nele há que tem de ser apreendido de maneira pura e contingente, quanto mais ele se nos impõe de modo simplesmente empírico, tanto mais há nele algo de propriamente objetivo e verdadeiramente real, mas também tanto mais inexplicável é, ou seja, não pode mais ser deduzido de outra coisa. [MVR1: §24]

Trata-se de um erro tão grande quanto comum considerar que os fenômenos mais corriqueiros, universais e simples seriam os mais bem compreendidos por nós; mas estes são apenas os fenômenos com os quais mais estamos familiarizados, e acerca dos quais, no entanto, somos mais frequentemente ignorantes. É tão inexplicável que uma pedra caia em direção à terra quanto o é que um animal se movimente. Supôs-se, como foi anteriormente mencionado, que, a partir das forças mais universais da natureza, poder-se-iam explicar as forças que atuam mais raramente e apenas sob a combinação de circunstâncias, que, por fim, a partir destas, poder-se-iam compreender não só o organismo e a vida dos animais, mas também o conhecimento e o querer humanos. Operou-se tacitamente com meras qualitates occultae, cuja elucidação foi totalmente abandonada, já que se pretendia construir sobre elas, e não escavá-las. Mas esse tipo de procedimento, como foi dito, não é possível. Porém, aparte isso, tais edifícios sempre se sustentam no ar. De que servem explicações que em última instância remetem a algo tão desconhecido como o primeiro problema? Acaso compreende-se ao fim mais sobre a essência íntima daquelas forças naturais universais do que sobre a essência íntima de um animal? Uma não permanece tão inexplicável quanto a outra? Infundada, porque sem fundamento, já que aí se trata do conteúdo, do Quê da aparência, jamais redutível à sua forma, ao Como, ao princípio de razão. Nós, diferentemente, que aqui praticamos não etiologia, mas filosofia, isto é, não conhecimento relativo, mas incondicionado, da essência do mundo, escolhemos o caminho oposto e partimos Daquilo que nos é conhecido de imediato da maneira mais completa e plenamente confiável, daquilo que nos é mais próximo, para então compreendermos o que é distante, unilateral e mediato: a partir da aparência mais poderosa, significativa e distinta queremos compreender as aparências mais débeis e menos complexas. Excetuando-se meu corpo, é-me conhecido de todas as coisas apenas UM lado, o da representação: a essência íntima das coisas permanece trancada, um enigma profundo, mesmo que eu conheça todas as causas das quais se seguem as suas mudanças. Somente da comparação com Aquilo que se passa em mim quando meu corpo executa uma ação após um motivo tê-lo posto em movimento — e que é a essência íntima de minha própria mudança determinada por fundamentos externos — posso adquirir intelecção do modo como os corpos privados de vida mudam através de causas e assim compreender o que é a sua essência íntima. O conhecimento da causa do aparecimento dessa essência me fornece a mera regra de sua entrada em cena no tempo e no espaço, nada mais. Assim posso proceder porque meu corpo é o único objeto do qual não conheço apenas UM lado, o da representação, mas também o outro, que se chama VONTADE. Ora, em vez de acreditar que eu compreenderia melhor a minha própria organização e depois o meu conhecer e querer e movimento por motivo, simplesmente os remetendo ao movimento a partir de causas por eletricidade, quimismo, mecanismo; em vez disso e na medida em que pratico filosofia, não etiologia, tenho de aprender a compreender até mesmo a essência íntima dos movimentos mais simples e comuns dos corpos orgânicos a partir de meu próprio movimento por motivos e reconhecer que as forças infundadas que se exteriorizam em todos os corpos da natureza são idênticas em espécie Àquilo que em mim é a VONTADE, e diferentes desta apenas segundo o grau. Isso significa: a quarta classe de representações estabelecida no ensaio sobre o princípio de razão tem de se tornar para mim a chave para o conhecimento da essência Íntima da primeira classe; a partir da lei de motivação tenho de aprender a compreender a lei de causalidade em sua significação Íntima. [MVR1: §24]

Espinosa afirma que se uma pedra atirada por choque ao ar tivesse consciência, ela pensaria voar por VONTADE própria. Eu apenas acrescento: a pedra teria razão. O choque é para ela o que para mim é o motivo, e o que nela aparece como coesão, gravidade, rigidez no estado adquirido é, em sua essência íntima, o mesmo que reconheço em mim como VONTADE, e que a pedra, se adquirisse conhecimento, também reconheceria como VONTADE. Espinosa, naquela passagem, concentrou sua atenção na necessidade com que uma pedra voa e quis, com razão, transmiti-la à necessidade do ato voluntário isolado de uma pessoa. De outra perspectiva considero a essência íntima, que, como pressuposto, confere significação e validade a toda necessidade real, que no ser humano se chama caráter e na pedra qualidade, como sendo em ambos os casos uma única e mesma coisa, chamada VONTADE ali onde é imediatamente conhecida e que na pedra tem o seu grau mais fraco e no ser humano o seu grau mais forte de visibilidade, de objetidade. — Esse algo que, no seu empenho em todas as coisas, é idêntico ao nosso querer já fora reconhecido com sentimento verdadeiro por santo Agostinho  , cuja expressão ingênua do assunto não posso furtar-me aqui a citar: “Se fôssemos gado, amaríamos a vida carnal e o que corresponde ao seu sentido; estaríamos satisfeitos com isso como se fosse nosso bem, e se tudo estivesse bem para nós, não desejaríamos mais nada. Se fôssemos árvores, então não poderíamos sentir nem aspirar a nada pelo movimento; pareceríamos desejar aquilo pelo qual pudéssemos ser mais férteis e produzir frutos mais abundantes. Se fôssemos pedras, ou torrentes, ou vento, ou flama, ou algo semelhante, sem consciência e vida, ainda assim não nos faltaria um certo apetite por posição e ordem. Pois o amor, por assim dizer, exprime-se no movimento dos corpos inanimados em sua tendência para baixo, devido ao peso, ou para cima, devido à leveza: um corpo é impulsionado pelo seu peso exatamente como o espírito é impelido pelo amor.” [MVR1: §24]

Se por meio dessa consideração tornou-se clara a diferença entre a força natural e todas as suas aparências; e, ainda, se reconhecemos que aquela é a VONTADE mesma num grau determinado de sua objetivação, que somente às aparências convêm a pluralidade mediante tempo e espaço e que a lei de causalidade nada é senão a determinação, nestes, da posição das aparências isoladas — então reconheceremos a verdade perfeita e o sentido profundo da doutrina de MALEBRANCHE sobre as causas ocasionais, causes occasionnelles. Vale a pena comparar a sua doutrina, tal qual exposta em Recherches de la vérité, sobretudo no terceiro capítulo da segunda parte do sexto livro, e nos éclaircissements em apêndice a esse capítulo, com a minha presente exposição do tema e, assim, perceber a concordância perfeita das duas doutrinas, apesar da grande diferença no encadeamento do raciocínio. Sim, tenho de me surpreender com o fato de Malebranche, apesar das peias e do fardo de estar totalmente imerso em dogmas positivos impostos por seu tempo, ainda assim ter encontrado de maneira tão feliz e correta a verdade, e ter sabido conciliá-la com aqueles dogmas, ao menos com a linguagem deles. [MVR1: §26]

De fato, Malebranche tem razão: toda causa na natureza é causa ocasional, apenas dá a oportunidade, a ocasião, para o aparecimento da VONTADE una, indivisa, Em si de todas as coisas, e cuja objetivação grau por grau é todo este mundo visível. Apenas a entrada em cena, o tornar-se visível neste lugar, neste tempo é produzido pela causa e nesse sentido depende desta, mas não o todo da aparência, não a sua essência íntima: esta é a VONTADE, à qual não se aplica o princípio de razão e, portanto, é sem fundamento. Coisa alguma no mundo tem uma causa absoluta e geral de sua existência, mas apenas uma causa a partir da qual existe exatamente aqui, exatamente agora. Por que uma pedra mostra agora gravidade, depois rigidez, agora eletricidade, depois propriedades químicas, tudo isso depende de causas e ações exteriores, e são explicáveis a partir destas: entretanto, as propriedades mesmas, portanto toda a essência em que consistem, e que se exterioriza de todos aqueles modos, logo, o fato de ser em geral assim como é, o fato de existir em geral — isso não possui fundamento algum, mas é o tornar-se visível da VONTADE sem fundamento. Portanto, toda causa é causa ocasional. E assim a encontramos na natureza privada de conhecimento: precisamente assim é também ali onde não se trata mais de causas e estímulos, mas de motivos que determinam o ponto de entrada das aparências, por consequência, ali onde se trata da ação de animais e seres humanos. Pois aqui, como lá, trata-se de uma única e mesma VONTADE que aparece, diversa nos graus de sua manifestação, múltipla nas suas aparências e, neste aspecto, submetida ao princípio de razão, porém em si mesma livre de todas essas determinações. Os motivos não determinam o caráter do ser humano, mas tão somente o aparecimento desse caráter, logo as ações e atitudes, a feição exterior do seu decurso de vida, não a sua significação íntima e o seu conteúdo: estes procedem do caráter, que é o aparecimento imediato da VONTADE, portanto sem fundamento. Que um caráter seja mau e outro bom, isso não depende de motivos e influências exteriores, como doutrinas e sermões; nesse sentido, o caráter é algo absolutamente inexplicável. Porém, se um malvado mostra sua maldade em injustiças diminutas, intrigas covardes, velhacarias sórdidas que ele exerce no círculo estreito de seu ambiente, ou se ele, como um conquistador, oprime povos, faz um mundo ajoelhar-se em penúrias, derramando o sangue de milhões — isso é a forma exterior do seu aparecimento, o inessencial deste, dependente das circunstâncias nas quais o destino o colocou, dependente do ambiente e das influências exteriores dos motivos; contudo, jamais a decisão do caráter em virtude de tais motivos é explicável a partir deles; pois essa decisão procede da VONTADE, cuja aparência é esse ser humano. Mais sobre o assunto no quarto livro desta obra. A maneira como o caráter desdobra as suas propriedades é inteiramente comparável à maneira como os corpos da natureza destituída de conhecimento mostram as suas propriedades. A água permanece água, com suas propriedades intrínsecas, seja num lago plácido que espelha as margens, seja saltando em espumas quando se choca contra as rochas, ou ainda sendo artificialmente impelida para o alto num jato em forma de arco: tudo isso depende de causas exteriores: uma coisa lhe é tão natural quanto a outra; no entanto, mostra-se desta ou daquela maneira de acordo com as circunstâncias, igualmente pronta para tudo, todavia fiel em cada caso ao seu caráter e sempre manifestando apenas a este. É assim que todo caráter humano também se manifestará em todas as circunstâncias: mas as aparências que daí emergem variarão segundo as circunstâncias. [MVR1: §26]

Assim, caso não se perca de vista a diferença entre aparência e coisa em si, segue-se daí que a identidade da VONTADE objetivada em todas as ideias não pode ser transformada em uma identidade das ideias particulares nas quais a VONTADE aparece. Dessa maneira, por exemplo, nunca a atração química ou elétrica pode ser reduzida à atração por gravidade, embora a analogia interna de ambas seja conhecida e a primeira possa ser vista, por assim dizer, como potência mais elevada da última; tampouco se pode, a partir da analogia interna da estrutura dos animais, misturar as espécies e identificá-las, explicando assim as mais perfeitas como variações aleatórias das mais imperfeitas. Por fim, as funções fisiológicas jamais podem ser reduzidas a processos químicos ou físicos, mas pode-se sem dúvida, para justificação desse método no interior de certos limites, admitir com bastante probabilidade o que vem a seguir. [MVR1: §27]

A ideia mais perfeita, resultante dessa vitória sobre as ideias ou objetivações mais baixas da VONTADE, ganha um caráter inteiramente novo, precisamente pelo fato de absorver em si, de cada uma das ideias que foram dominadas, um análogo mais elevadamente potenciado: a VONTADE objetiva-se em uma nova e distinta espécie: nasce, originariamente por generatio aequivoca, depois por assimilação no gérmen existente, seiva orgânica, planta, animal, ser humano. Portanto, do conflito entre aparências mais baixas resultam as mais elevadas, que engolem as outras, porém efetivando o esforço de todas em grau mais elevado. — Por isso vale aqui a lei: serpens, nisi serpentem comederit, non fit draco. [MVR1: §27]

Assim vimos aqui em seus graus mais baixos a VONTADE expor-se como um ímpeto cego, um impelir abafado, obscuro, distante de qualquer capacidade imediata de conhecimento. Trata-se da espécie mais simples e débil de sua objetivação. Como ímpeto cego e esforço privado de conhecimento, a VONTADE também aparece em toda a natureza inorgânica, ou seja, em todas as forças originárias, cuja investigação e descoberta de suas leis é tarefa da física e da química, sendo que cada uma dessas forças expõe-se para nós em milhões de aparências similares e regulares, sem vestígio algum de caráter individual, meramente multiplicadas pelo tempo e o espaço, isto é, pelo principium individuationis, parecidas a uma imagem multiplicada pelas facetas de um vidro. [MVR1: §27]

Assim como o conhecimento da unidade da VONTADE como coisa em si em meio à infinita diversidade e variedade das aparências é o único que nos fornece o verdadeiro esclarecimento sobre aquela analogia impressionante e inquestionável entre todas as produções da natureza, sobre aquela semelhança de família que nos permite considerar a estas como variações do mesmo tema não dado; assim também, em igual medida, mediante o conhecimento distinto e profundamente apreendido da harmonia e conexão essencial de todas as partes do mundo, da necessidade de sua gradação que acabamos de considerar, abre-se para nós uma verdadeira e suficiente intelecção da essência íntima e significação da FINALIDADE inegável de todos os produtos orgânicos da natureza, finalidade que até pressupomos a priori quando consideramos e fazemos julgamentos sobre esses produtos. [MVR1: §28]

No entanto, a adaptação e a acomodação recíproca das aparências, que surgem dessa unidade, não podem anular o conflito intrínseco anteriormente exposto, o qual aparece na luta geral da natureza, e é essencial à VONTADE. Aquela harmonia vai só até onde torna possível a CONSERVAÇÃO do mundo e dos seus seres, os quais, sem ela, há muito tempo teriam se extinguido. Em consequência, se, em virtude daquela harmonia e acomodação, as ESPÉCIES no reino orgânico e a NATUREZA no reino inorgânico conservam-se lado a lado e até apeiam-se reciprocamente, por outro lado, o conflito interno à VONTADE, que se objetiva por meio de todas aquelas ideias, mostra-se numa guerra interminável de extermínio dos INDIVÍDUOS de cada espécie e na luta contínua das APARÊNCIAS das forças da natureza entre si, como abordamos antes. O cenário e o objeto dessa batalha é a matéria, que eles se empenham por arrebatar uns dos outros, bem como o espaço e o tempo, cuja união, pela forma da causalidade, é propriamente a matéria, como foi exposto no primeiro livro. [MVR1: §28]

29. Concluo aqui a segunda parte capital da minha exposição na esperança de que, apesar de se tratar da primeira comunicação de um pensamento como este, nunca antes exposto, e que, por conseguinte, carrega os traços da individualidade em que foi primeiramente gerado, ainda assim terei conseguido comunicar a certeza distinta de que este mundo no qual vivemos e existimos é, segundo toda a sua natureza, absolutamente VONTADE e absolutamente REPRESENTAÇÃO; que esta representação, enquanto tal, já pressupõe uma forma, a saber, objeto e sujeito, portanto é relativa; e que, se perguntarmos o que resta após a supressão dessa forma e de todas as outras a ela subordinadas, expressas pelo princípio de razão, a resposta é: esse algo outro, como toto genere diferente da representação, nada pode ser senão a VONTADE, a qual, neste sentido, é propriamente a COISA EM SI. Cada um encontra a si próprio como essa VONTADE, na qual consiste a essência íntima do mundo, e cada um também encontra a si mesmo como sujeito que conhece, cuja representação é o mundo inteiro, que só tem existência em relação à sua consciência como seu sustentáculo necessário. Cada um, portanto, é o mundo inteiro nessa dupla acepção, é o microcosmo que encontra as duas partes do mundo completa e plenamente em si mesmo. E aquilo que assim conhece como sendo o próprio ser esgota, em verdade, a essência do mundo inteiro, do macrocosmo, pois o mundo, tanto quanto a pessoa mesma, é absolutamente VONTADE e absolutamente representação, e nada mais. Assim, vemos aquela filosofia que investigava o macrocosmo, a de Tales, e aquela que investigava o microcosmo, a de Sócrates  , coincidirem na medida em que se prova que o objeto de arribas é o mesmo. — Entretanto, o conhecimento comunicado nos dois primeiros livros desta obra ganhará maior completude e com isso também maior certeza precisamente mediante os dois livros que se seguem, nos quais, espero, muitas das questões que emergem aqui distinta ou indistintamente vão encontrar a sua resposta. [MVR1: §29]

Quando, entretanto, uma ocasião externa ou uma disposição interna nos arranca subitamente da torrente sem fim do querer, libertando o conhecimento da escravidão imposta pela VONTADE, e a atenção não é mais direcionada aos motivos do querer, mas, ao contrário, à apreensão das coisas livres de sua relação com a VONTADE, portanto sem interesse, sem subjetividade, consideradas de maneira puramente objetiva, estando nós inteiramente entregues a elas, na medida em que são simples representações, não motivos — então aquela paz, sempre procurada antes pelo caminho do querer, e sempre fugidia, entra em cena de uma só vez por si mesma e tudo está bem conosco. É o estado destituído de dor que Epicuro louvava como o bem supremo e o estado dos deuses; somos, nesse instante, alforriados do desgraçado ímpeto volitivo, festejamos o Sabbath dos trabalhos forçados do querer, a roda de Íxion cessa de girar. [MVR1: §38]

Semelhante estado é precisamente o descrito anteriormente como exigido para o conhecimento da ideia, como estado de pura contemplação, absorção na intuição, perder-se no objeto, esquecimento de toda individualidade, supressão do modo de conhecimento que segue o princípio de razão e apreende apenas relações, pelo que simultânea e inseparavelmente a coisa isolada intuída se eleva à ideia de sua espécie, e o indivíduo que conhece a puro sujeito do conhecer isento de VONTADE, ambos, enquanto tais, não mais se encontrando na torrente do tempo e de todas as outras relações. É indiferente se se vê o pôr do sol de uma prisão ou de um palácio. [MVR1: §38]

Disposição interna e preponderância do conhecimento sobre o querer podem produzir esse estado em qualquer ambiente. Isso o mostram aqueles maravilhosos neerlandeses, que direcionavam sua intuição puramente objetiva aos objetos mais insignificantes e erigiam monumentos duradouros de sua objetividade e paz de espírito nas pinturas de NATUREZA-MORTA, que o espectador estético considera com encanto, visto que aqui se presentifica o calmo e sereno estado de espírito do artista livre de VONTADE, que era necessário para intuir objetivamente tão insignificantes coisas, considerá-las tão atenciosamente e depois repetir essa intuição de maneira tão límpida: na medida em que o quadro também convida à participação do espectador em semelhante estado, o encanto do espectador é muitas vezes aumentado pelo contraste com o seu estado pessoal inquieto, a sua constituição mental intranquila, turvada pelo querer veemente, na qual se encontra. No mesmo espírito, pintores de paisagem, em especial Ruysdael, frequentes vezes pintaram temas paisagísticos extremamente insignificantes, e com isso produziram o mesmo efeito de maneira ainda mais aprazível. [MVR1: §38]

Entretanto, cabe ainda esta observação referente ao que foi dito até agora. A luz é o mais aprazível das coisas: por isso tornou-se símbolo de tudo o que é bom e salutar. Em todas as religiões ela indica a salvação eterna, enquanto a escuridão indica a danação. Ormuzd mora na mais pura luz, Ahriman na noite eterna. O paraíso de Dante   assume as aparências de Vauxhall em Londres, pois todos os espíritos bem-aventurados aparecem em pontos de luz, reunidos em figuras regulares. A ausência de luz deixa-nos logo tristes; seu retorno, felizes. As cores despertam de imediato um prazer vivaz e, caso sejam transparentes, o prazer atinge o grau supremo. Tudo isso provém exclusivamente do fato de a luz ser o correlato e a condição do modo de conhecimento intuitivo mais perfeito, o único que não afeta imediatamente a VONTADE. Pois, diferentemente das afecções dos outros sentidos, a visão, em si, imediatamente e por meio de seu efeito sensível, não é capaz de uma SENSAÇÃO agradável ou desagradável no órgão; noutros termos, não tem ligação imediata alguma com a VONTADE: só a intuição originada no entendimento pode dar origem a tal sensação, que, então, encontra-se na relação do objeto com a VONTADE. Já na audição se dá algo completamente diferente: tons podem provocar dores imediatamente e, sem referência à harmonia ou à melodia, podem ser por si mesmos sensualmente agradáveis. O tato, na medida em que se confunde com o sentimento do corpo inteiro, está ainda mais submetido a esse influxo imediato sobre a VONTADE, embora também haja tato destituído de dor ou agrado. O odor, entretanto, é sempre agradável ou desagradável: o paladar ainda mais. Portanto, estes dois últimos sentidos são os mais comprometidos com a VONTADE, pelo que sempre foram chamados de sentidos menos nobres e, por Kant, de sentidos subjetivos. Por conseguinte, a alegria proveniente da luz é de fato apenas a alegria derivada da possibilidade objetiva do modo de conhecimento intuitivo mais puro e perfeito; nesse sentido, pode-se inferir que o conhecimento puro, livre e isento de todo querer é o mais altamente aprazível e, nele mesmo, possui uma substancial participação na fruição estética. — A partir dessa consideração da luz compreendemos também a beleza esplendorosa que conferimos a objetos refletidos n água. Aquele tipo mais suave, mais rápido, mais sutil de ação dos corpos uns sobre os outros, ao qual agradecemos por aquela que é de longe a mais perfeita e mais pura de nossas percepções: a impressão mediante raios de luz refletidos: é aqui trazido perante os olhos de maneira inteiramente nítida, clara e completa, em causa e efeito, numa escala grandiosa: tal é à base de nossa alegria estética nesse espetáculo, alegria que, no principal, enraíza-se inteiramente no fundamento subjetivo da satisfação estética e é alegria do puro conhecer e seus caminhos. [MVR1: §38]

39. A todas essas considerações que pretendem salientar a parte subjetiva da satisfação estética — vale dizer, que essa satisfação é a alegria do simples conhecimento intuitivo enquanto tal, em oposição à VONTADE —, liga-se, e delas dependem imediatamente, a seguinte explanação daquela disposição que se denominou sentimento do SUBLIME. [MVR1: §39]

Transportemo-nos para uma região extremamente solitária, o horizonte a perder de vista sob o céu completamente sem nuvens, árvores e plantas numa atmosfera inteiramente imóvel, nenhum animal, nenhum humano, nenhuma corrente de água, a quietude mais profunda; — tal cercania é como se fosse um apelo à seriedade, à contemplação com abandono de todo querer e sua indigência: mas justamente isso confere a tal cercania solitária e profundamente quieta um traço de sublime; pois, visto que não oferece objeto algum, nem favorável nem desfavorável à VONTADE ávida de ansiar e adquirir, permanece ali apenas o estado da contemplação pura, e quem não é capaz desta será sacrificado com ignomínia vergonhosa ao vazio da VONTADE desocupada, ao tormento do tédio. Na presença de semelhante cercania temos uma medida do nosso valor intelectual. Um bom critério deste é, em geral, o grau da nossa capacidade de suportar ou amar a solidão. A descrita cercania fornece, portanto, um exemplo do sublime em grau baixo, na medida em que nela, ao estado de puro conhecer, em sua calma e plena suficiência, mescla-se como contraste uma lembrança da dependência e pobreza do esforço de uma VONTADE necessitada de constante atividade. — Esse é o tipo de sublime que celebrizou as pradarias ilimitadas no interior da América do Norte. [MVR1: §39]

Se agora também imaginarmos essa região desnudada de plantas e mostrando apenas rochedos escarpados, então, mediante a completa ausência do orgânico necessário à nossa subsistência, a VONTADE já se angustia: o ermo assume um caráter amedrontador; nossa disposição se torna mais trágica: a elevação ao puro conhecer ocorre com abandono decisivo do interesse da VONTADE, e, enquanto permanecemos no estado do puro conhecer, entra em cena de maneira bem distinta o sentimento do sublime. [MVR1: §39]

A impressão é ainda mais poderosa quando temos diante dos olhos a luta revoltosa das forças da natureza em larga escala, quando, nessa cercania, uma catarata a cair impede com seu estrépito que ouçamos a própria voz; ou quando nos postamos diante do amplo e tempestuoso mar: montanhas d água sobem e descem, a rebentação golpeia violentamente os penhascos, espumas saltam no ar, a tempestade uiva, o mar grita, relâmpagos faíscam das nuvens negras e trovões explodem em barulho maior que o da tempestade e do mar. Então, no imperturbável espectador dessa cena, a duplicidade de sua consciência atinge o mais elevado grau: ele se sente de uma vez só como indivíduo, aparência efêmera da VONTADE que o menor golpe daquelas forças pode esmagar, indefeso contra a natureza violenta, dependente, entregue ao acaso, um nada que desaparece em face de potências monstruosas, e também se sente como sereno e eterno sujeito do conhecer, o qual, como condição do objeto, é o sustentáculo exatamente de todo esse mundo, a luta temerária da natureza sendo apenas sua representação, ele mesmo repousando na tranquila apreensão das ideias, livre e alheio a todo querer e necessidade. É a plena impressão do sublime, aqui ocasionada pela visão de uma potência incomparavelmente superior ao indivíduo e que o ameaça com o aniquilamento. [MVR1: §39]

Quando nos perdemos na consideração da grandeza infinita do mundo no espaço e no tempo, quando meditamos nos séculos passados e vindouros, ou também quando consideramos o céu noturno estrelado, tendo inumeráveis mundos efetivamente diante dos olhos, e a incomensurabilidade do cosmo se impõe à consciência — então sentimo-nos reduzidos a nada, sentimo-nos como indivíduo, como corpo vivo, como aparência transitória da VONTADE, uma gota no oceano, condenados a desaparecer, a dissolvermo-nos no nada. Mas eis que se eleva simultaneamente contra tal fantasma de nossa nulidade, contra aquela impossibilidade mentirosa, a consciência imediata de que todos esses mundos existem apenas em nossa representação, apenas como modificações do eterno sujeito do puro conhecer, o qual nos sentimos assim que esquecemos a individualidade; esse sujeito do conhecer é o sustentáculo necessário e condicionante de todos os mundos e de todos os tempos. A grandeza do mundo, antes intranquilizadora, repousa agora em nós: nossa dependência dela é suprimida por sua dependência de nós. — Tudo isso, contudo, não entra em cena imediatamente na reflexão, mas se mostra como uma consciência apenas sentida de que, em certo sentido, somos unos com o mundo e, por conseguinte, não somos oprimidos por sua incomensurabilidade, mas somos elevados. É a consciência sentida daquilo que os Upanishads   dos Vedas já exprimiram repetidas vezes de maneira variada, em especial no dito antes citado: Hae omnes creaturae in totum ego sum, et praeter me aliud ens non est. Trata-se de elevação para além do indivíduo, sentimento do sublime. [MVR1: §39]

41. O curso de nossa consideração exigiu que incluíssemos a elucidação do sublime ali onde a do belo foi efetuada apenas em sua metade, ou seja, só no tocante ao lado subjetivo. Pois é apenas uma modificação especial deste lado o que diferencia o sublime do belo, a saber, se o estado do puro conhecer destituído de VONTADE, pressuposto e exigido em toda contemplação estética, apareceu por si mesmo sem resistência, mediante o simples desaparecer da VONTADE da consciência, na medida em que o objeto convida e atrai para isso, ou se semelhante estado foi alcançado por elevação livre e consciente por sobre a VONTADE, em referência à qual o objeto empírico contemplado tem uma relação até mesmo desfavorável, hostil, e que suprimiria a contemplação, caso nos detivéssemos nele; — essa é a diferença entre o belo e o sublime. Quanto ao objeto, no entanto, belo e sublime não são essencialmente diferentes: pois tanto num caso quanto noutro o objeto da consideração estética não é a coisa isolada, mas a ideia que nela se esforça por ser revelada, isto é, a objetidade adequada da VONTADE num grau determinado: o correlato necessário da ideia e, tanto quanto esta, independente do princípio de razão, é o puro sujeito do conhecer, assim como o correlato da coisa isolada é o indivíduo que conhece, estes últimos residindo no domínio do princípio de razão. [MVR1: §41]

Quando nomeamos um objeto BELO, expressamos que ele é objeto de nossa consideração estética, e isso envolve dois fatores: primeiro, a sua visão nos torna OBJETIVOS, isto é, na sua contemplação não estamos conscientes de nós mesmos como indivíduos, mas como puro sujeito do conhecer destituído de VONTADE; segundo, conhecemos no objeto não a coisa isolada, mas uma ideia, e isso só pode ocorrer caso a nossa consideração do objeto não seja entregue ao princípio de razão, não siga a relação com algo exterior, mas repouse no objeto mesmo. Pois a ideia e o puro sujeito do conhecer sempre entram em cena na consciência simultaneamente como correlatos necessários; com a entrada em cena deles desaparece também concomitantemente toda diferença temporal, pois os dois são por inteiro alheios ao princípio de razão em todas as suas figuras e residem fora das relações estabelecidas por este princípio: eles são comparáveis ao arco-íris e ao Sol, que não têm participação alguma na sucessão de gotas que caem incessantemente. Por conseguinte, se, por exemplo, conheço esteticamente uma árvore, ou seja, com olhos artísticos, portanto não ela, mas a sua ideia, é sem significação se a árvore intuída é exatamente esta ou o seu ancestral vicejante há milhares de anos; do mesmo modo, é indiferente se o espectador é este ou aquele outro indivíduo que viveu numa época e num lugar diferentes; pois, juntamente com o princípio de razão, foram suprimidos tanto a coisa individual quanto o indivíduo que conhece, restando somente a ideia e o puro sujeito do conhecer, os quais, juntos, constituem a objetidade adequada da VONTADE neste grau. E a ideia está isenta não apenas do tempo, mas também do espaço: ela não é propriamente uma figura espacial que oscila diante de mim; ao contrário, é a expressão, a significação pura, o ser mais íntimo dessa figura, que se desvela e fala para mim; ideia que pode ser integralmente a mesma, apesar da grande diversidade de relações espaciais da figura. [MVR1: §41]

43. A matéria nela mesma não pode ser exposição de uma ideia, pois, como vimos no primeiro livro, ela é por inteiro causalidade: seu ser é o puro fazer-efeito. A causalidade, entretanto, é figuração do princípio de razão: o conhecimento da ideia, porém, exclui radicalmente o conteúdo deste princípio. Também vimos no segundo livro que a matéria é o substrato comum de todos os aparecimentos isolados das ideias, consequentemente, apresenta-se como o elo entre a ideia e a aparência. Por conseguinte, seja por uma razão ou outra, a matéria por si mesma não pode expor ideia alguma. O que se comprova a posteriori pelo fato de não ser possível representação intuitiva alguma da matéria enquanto tal, mas apenas um conceito abstrato dela: nas representações intuitivas expõem-se apenas as formas e qualidades sustentadas pela matéria e nas quais as ideias se manifestam. Isso corresponde ao fato de a causalidade não ser por si mesma intuitivamente exponível: mas só uma determinada conexão causal o é. — Por outro lado, todo APARECIMENTO de uma ideia, na medida em que esta entrou na forma do princípio de razão, ou no principium individuationis, tem de expor-se na matéria como qualidade desta. Dessa forma, como dito, a matéria é o elo de ligação entre a ideia e o principium individuationis, que é a forma de conhecimento do indivíduo, ou o princípio de razão. — Platão observa muito corretamente que, ao lado da ideia e da sua aparência, que compreendem juntas todas as coisas do mundo, há ainda a matéria como um terceiro termo diferente de ambas. O indivíduo, como aparência da ideia, é sempre matéria. Cada qualidade desta também é sempre aparência de uma ideia, e, como tal, passível de uma consideração estética, isto é, conhecimento da ideia que nela se expõe. Isso vale até mesmo para as qualidades mais gerais da matéria, sem as quais ela nunca existe, e que constituem a objetidade mais tênue da VONTADE. Tais qualidades são: gravidade, coesão, rigidez, fluidez, reação contra a luz etc. [MVR1: §43]

Um grau muito mais elevado é exposto pela pintura e escultura de animais. Destas últimas temos remanescentes antigos e significativos: por exemplo, cavalos em Veneza no Monte cavallo, nos relevos de Elgin, também em Florença em bronze e mármore e, ainda em Florença, o antigo javali, os lobos uivantes; também os leões do arsenal de Veneza; no Vaticano há uma sala inteira repleta de esculturas de animais, a maior parte antigas etc. Nessas exposições o lado objetivo da satisfação estética obtém uma preponderância decisiva sobre o lado subjetivo. A calma do sujeito que conhece essas ideias e que silenciou a própria VONTADE está presente como em cada consideração estética, porém, seu efeito não é sentido, pois nos ocupam a inquietação e a veemência da VONTADE exposta. Trata-se daquele mesmo querer que constitui o nosso ser e que aqui aparece diante dos olhos em figuras nas quais seu aparecimento não é dominado, não é silenciado pela clareza de consciência como em nós, mas expõe-se em traços bem mais intensos e com uma nitidez que toca o grotesco e o monstruoso, e tudo isso sem dissimulação, de maneira ingênua, franca, evidente, justamente nisso repousando o nosso interesse pelos animais. O característico das espécies já aparece nas plantas; mostra-se, no entanto, só nas formas: já no que se refere aos animais o característico é muito mais significativo e exprime-se não somente em figuras, mas em ações, posições, gestos, embora sempre apenas como caráter da espécie, não do indivíduo. — Esse conhecimento das ideias de graus mais elevados, que recebemos na pintura por intermediação alheia, também podemos recebê-lo imediatamente pela intuição puramente contemplativa das plantas e observação dos animais, estes últimos, em verdade, em seu estado livre, natural, espontâneo. A consideração objetiva de suas variadas e maravilhosas figuras e de seu agir e comportamento é uma lição instrutiva a partir do grande livro da natureza, é uma decifração da verdadeira Signatura rerum  : vemos neles os diversos graus e maneiras de manifestação da VONTADE, única e mesma em todos os seres, e que em toda parte sempre quer o mesmo, objetivando-se exatamente como vida, como existência, numa sucessão e variedade tão sem fim de figuras que as mesmas são acomodações para diferentes condições exteriores, comparáveis a muitas variações em torno de um mesmo tema. Caso tivéssemos de fornecer à reflexão do espectador também a informação sobre a essência íntima de todos esses seres, usaríamos antes aquela fórmula sânscrita, com tanta frequência empregada nos livros sagrados dos hindus, chamada mahãvãkya, isto é, a grande palavra, que soa “tat tvam asi”, ou seja, “esse vivente és tu”. [MVR1: §44]

45. A ideia na qual a VONTADE atinge o grau mais elevado de sua objetivação, expondo-se imediatamente para a intuição, é, por fim, a grande tarefa da pintura histórica e da escultura. O lado objetivo da alegria no belo é aqui por inteiro predominante e o lado subjetivo entrou no plano de fundo. Ademais, observe-se que no grau imediatamente inferior à pintura histórica, na pintura de animais, o característico é inteiramente uno com o belo: o leão, o lobo, o cavalo, o carneiro, o touro mais característico é sempre o mais belo. O fundamento disso é que os animais possuem apenas o caráter da espécie, não o caráter individual. Porém, na exposição do ser humano, separam-se o caráter da espécie e o caráter do indivíduo: o primeiro, então, se chama beleza, enquanto o segundo conserva o nome “caráter” ou “expressão”. Com isso entra em cena uma dificuldade nova, a de expor os dois e perfeitamente, e ao mesmo tempo, num mesmo indivíduo. [MVR1: §45]

A beleza e a graça continuam sendo o tema principal da escultura. O caráter espiritual propriamente dito, aparecendo no afeto, na paixão, no jogo alternado do conhecimento com a VONTADE, exponível unicamente pela expressão fisionômica e pelos gestos, é de preferência pertença da PINTURA. E, embora olhos e o colorido, que residem fora do âmbito da escultura, contribuam bastante para a beleza, são ainda mais essenciais ao caráter. Ademais, a beleza desdobra-se plenamente à consideração se observada de vários pontos de vista; ao contrário, a expressão e o caráter podem ser apreendidos perfeitamente mesmo se considerados de UM ponto de vista. [MVR1: §45]

48. Ao lado da beleza e da graça, a PINTURA HISTÓRICA tem ainda o caráter por objeto privilegiado, e com isso deve-se entender em geral a exposição da VONTADE no grau mais elevado de sua objetivação, no qual o indivíduo, como acentuação de um lado particular da ideia de humanidade, possui significação própria, que se dá a conhecer não apenas mediante a simples figura, mas por ações de todo tipo e modificações do conhecer e do querer que as ocasionam e acompanham, visíveis no rosto e nos gestos. Na medida em que a ideia de humanidade é exponível nessa envergadura, o desdobramento de seu caráter multifacetado tem de ser trazido à luz em indivíduos plenos de significação, os quais, por sua vez, só podem se tomar visíveis em sua significação através de cenas variadas, acontecimentos e ações. A pintura histórica resolve essa sua tarefa infinita ao trazer diante dos olhos cenas da vida de todo tipo, de grande ou pequena significação. Nenhum indivíduo ou ação pode ser sem significado: em todos e por intermédio de todos desdobra-se gradativamente a ideia de humanidade. Eis por que nenhum evento da vida humana deve ser excluído da pintura. Em consequência, é-se muito injusto com os maravilhosos pintores da escola neerlandesa ao apreciar apenas suas habilidades técnicas, desprezando-os no resto, alegando-se que, na maioria das vezes, só expõem objetos da vida cotidiana, enquanto, ao contrário, considera-se como significativos somente eventos da história universal ou bíblica. É preciso antes de tudo diferenciar a significação interior da significação exterior de uma ação: as duas são completamente diferentes e vão separadas uma da outra. A significação exterior da ação é a importância dela em relação às suas consequências para e no mundo efetivo; portanto, segundo o princípio de razão. A significação interior da ação é a profundidade de intelecção que ela permite na ideia de humanidade, na medida em que traz a lume os lados dessa ideia que raramente aparecem, na medida em que, colocando individualidades em circunstâncias propícias à expressão de suas características, torna possível o desdobramento claro e decisivo destas. Apenas a significação interior vale na arte: a exterior vale na história. Ambas são completamente independentes uma da outra, podem aparecer juntas, mas também sozinhas. Uma ação altamente significativa para a história pode ser extremamente trivial e comum em sua significação interior; ao contrário, uma cena da vida cotidiana pode ser de grande significação interior se nela aparecem indivíduos humanos com suas ações e querer, numa luz clara e nítida, até seus recônditos mais secretos. Também pode ocorrer que, em meio à significação exterior bastante díspar, a significação interior seja a mesma; por exemplo, vale a mesma coisa em termos de significação interior se ministros disputam, sobre um mapa, países e povos, ou se camponeses querem, numa estalagem, fazer valer seus direitos nos jogos de carta e dado; do mesmo modo, é indiferente se o xadrez é jogado com peças de ouro ou de madeira. Ademais, as cenas e os eventos que constituem a vida de tantos milhões de pessoas, seus feitos e esforços, suas necessidades e alegrias, já são de importância suficiente para se tornarem objeto da arte e têm de fornecer, por meio de sua variedade, estofo suficiente para o desdobramento da ideia multifacetada de humanidade. Até mesmo a fugacidade dos momentos que a arte fixou em tais obras desperta uma leve e específica comoção: pois fixar o mundo fugaz em imagens duradouras de eventos particulares, que fazem as vezes do todo, é uma realização da arte da pintura pela qual esta parece trazer o tempo mesmo ao repouso, na medida em que eleva o indivíduo à ideia de sua espécie. Por fim, os objetos históricos da pintura, significativos exteriormente, possuem muitas vezes a desvantagem de precisamente o significativo deles não ser exponível intuitivamente, mas tem de ser acrescido pelo pensamento. Desse ponto de vista, o sentido nominal de uma imagem tem de ser em geral diferenciado do seu sentido real: o primeiro é o sentido exterior, acrescido apenas mediante o conceito; o segundo é o lado da ideia de humanidade manifesto para a intuição pela imagem. Por exemplo, Moisés encontrado pela princesa do Egito pode ser o sentido nominal de uma imagem, um momento de extrema importância para a história; ao contrário, o seu sentido real, o efetivamente dado à intuição, é uma criança abandonada num berço flutuante, um incidente que provavelmente já ocorreu muitas vezes. Neste caso apenas as vestes é que farão o conhecedor identificar aquele determinado caso histórico; no entanto, as vestes valem exclusivamente em função do sentido nominal, mas são indiferentes em relação ao sentido real: pois o sentido real diz respeito apenas aos seres humanos enquanto tais, não às formas arbitrárias. Por conseguinte, temas tomados de empréstimo à história não têm vantagem alguma em face de temas da mera possibilidade, que não devem ser nomeados individualmente, mas no geral: pois nos acontecimentos históricos o significativo não é o individual, não é o evento isolado enquanto tal, mas o universal, o lado da ideia de humanidade que neles se expressa. Por outro lado, os objetos históricos determinados não devem ser rejeitados: apenas ocorre aí que a visão artística propriamente dita deles, tanto no pintor quanto no espectador, nunca se dirige para o indivíduo particular, o que constitui exatamente o seu elemento histórico, mas para o universal que aí se expressa, à ideia. Deve-se, também, escolher somente objetos históricos cujo tema principal seja de fato exponível e não tenha de ser simplesmente pensado por acréscimo: do contrário, o sentido nominal se distancia muito do real, ou seja, o que é simplesmente pensado na imagem se torna o principal e comete um atentado contra o intuído. Assim como no palco não é admissível que o principal transcorra detrás da cena, num quadro isso seria um erro ainda maior. Eventos históricos fazem efeito de maneira decisivamente desvantajosa só quando limitam o pintor a um domínio escolhido arbitrariamente, em vista de fins outros que os artísticos; é este o caso em especial quando um domínio assim escolhido é pobre em objetos significativos, dignos de serem pintados, como, por exemplo, a história de um povo pequeno, isolado, caprichoso, hierárquico, obscuro, como o judeu, desprezado pelas grandes nações contemporâneas do Oriente e do Ocidente. — Assim como entre nós e todas as antigas nações existem as emigrações, semelhantemente ao fato de, entre a presente superfície da Terra e aquela superfície onde as organizações se conservaram como fósseis, intercalar-se a mudança sofrida pelo fundo dos mares; assim também é em geral uma grande infelicidade que o povo cuja antiga cultura deveria servir de base para a nossa não seja o indiano nem o grego, ou mesmo o romano, mas justamente esse povo judeu; o que foi nefasto em especial para os pintores geniais da Itália, nos séculos XV e XVI, restritos arbitrariamente a uma esfera limitada de temas, na maioria das vezes mesquinharias de todo tipo: pois o Novo Testamento  , em sua parte histórica, é quase sempre mais desfavorável para a pintura que o Antigo, e a história subsequente dos mártires e Padres da Igreja é um tema mais infeliz ainda. Entretanto, tem-se de diferenciar bastante entre os quadros cujo objeto são os elementos históricos ou mitológicos do judaísmo e do cristianismo e aqueles nos quais o espírito propriamente ético do cristianismo é manifesto à intuição mediante a exposição de pessoas plenas desse espírito. Tais exposições são de fato as realizações mais elevadas e dignas de admiração da arte pictórica, levadas a bom termo apenas pelos grandes mestres, sobretudo Rafael e Correggio, este em especial nos seus primeiros quadros. Pinturas desse tipo não são propriamente para computar entre as históricas, já que na maioria das vezes não expõem acontecimentos nem ações, mas são simplesmente agrupamentos de santos, o salvador mesmo, amiúde ainda criança, com sua mãe, anjos etc. Em seus rostos, especialmente nos olhos, vemos a expressão, o reflexo do modo mais perfeito de conhecimento, a saber, aquele que não é direcionado às coisas isoladas, mas às ideias, portanto que apreendeu perfeitamente a essência inteira do mundo e da vida, conhecimento esse que, atuando retroativamente sobre a VONTADE, e ao contrário do outro orientado para as coisas isoladas, não fornece MOTIVOS à VONTADE, mas se torna um QUIETIVO de todo querer e do qual se originam a resignação perfeita — que é o espírito mais íntimo tanto do cristianismo quanto da sabedoria indiana —, a renúncia a todo querer, a viragem, a supressão da VONTADE, e, com esta, da essência inteira do mundo, portanto a redenção. Assim, aqueles mestres imortais da arte expressaram intuitivamente em suas obras a sabedoria suprema. Aqui se encontra o ápice de toda arte, a qual seguiu a VONTADE em sua objetidade adequada, as ideias, em todos os seus graus, começando pelo mais baixo, onde as causas a movimentam, em seguida onde os estímulos e por fim onde os motivos a movimentam de modo o mais variado, desdobrando a sua essência. Agora a arte culmina com a exposição da autossupressão livre da VONTADE mediante o grande quietivo que se lhe apresenta a partir do mais perfeito conhecimento de sua própria essência. [MVR1: §48]

Queremos agora considerar mais de perto a essência da canção propriamente dita, e, para isso, temos de tomar como exemplo modelos puros e primorosos desse gênero, não aquelas composições que já se aproximam de outro gênero, como da romança, da elegia, do hino, do epigrama etc.; notaremos assim que a essência propriamente dita da canção é a seguinte. — Trata-se do sujeito do querer, a VONTADE própria, que preenche a consciência de quem canta, amiúde como querer desprendido, satisfeito, mais frequentemente como paixão — sempre enquanto afeto — obstada, estado de ânimo excitado. Ao lado disso e simultaneamente, a visão da natureza circundante faz o cantor tornar-se consciente de si como sujeito do conhecimento puro destituído de VONTADE, cuja calma espiritual imperturbável aparece agora em contraste com o ímpeto do querer sempre obstado, sempre carente; a sensação desse contraste, desse jogo de alternativas, é propriamente o que se exprime em toda canção e constitui em geral o estado lírico. Nesse estado, por assim dizer, entra em cena o puro conhecer para nos redimir do querer e de seus ímpetos: nós seguimos; mas apenas por instantes: o querer, a lembrança dos nossos fins pessoais, sempre nos afasta de novo da contemplação calma; mas também a próxima e bela cercania, na qual o conhecimento puro destituído de VONTADE se oferece, sempre nos libera de novo do querer. Com isso, na canção e na disposição lírica, o querer e a intuição pura da cercania que se oferece encontram-se milagrosamente mesclados um com o outro: as relações entre os dois são buscadas e imaginadas; a disposição subjetiva, a afecção da VONTADE colore a cercania intuída em reflexo, cercania que, por sua vez, também colore a disposição subjetiva: a canção autêntica é a impressão desse inteiro estado de ânimo, tão mesclado e dividido dessa forma. — Para tornar concebível em exemplos esse desdobramento abstrato de um estado, que todavia está bem longe de qualquer abstração, mencionemos qualquer uma das canções imortais de Goethe  : especialmente ilustrativas, em vista de tal fim, cito algumas: Lamento do pastor”, “Bem-vinda e adeus”, “À Lua”, “No lago”, “Sentimento de outono”, também as canções propriamente ditas do Wunderhorn constituem excelentes exemplos, sobretudo aquela que assim começa: “Ó Bremen, tenho agora de te abandonar”. — Como uma paródia cômica corretamente executada do caráter lírico, deve-se mencionar uma notável canção de Voss, na qual descreve a sensação de um pedreiro embriagado caindo de uma torre e que faz durante a queda a observação deveras estranha ao seu estado de que o relógio da torre marca onze e meia. — Quem compartilha comigo a visão aqui exposta sobre o estado lírico também admitirá que o mesmo é propriamente o conhecimento intuitivo e poético daquele princípio estabelecido em meu ensaio sobre o princípio de razão, já mencionado neste livro, a saber, o conhecimento da identidade do sujeito do conhecer com o sujeito do querer, a qual pode ser denominada milagre, de tal maneira que o efeito poético da canção se baseia, em última instância, sobre a verdade daquele princípio. — No decorrer da vida, os mencionados dois sujeitos, ou, para falar popularmente, a cabeça e o coração, distanciam-se progressivamente: sempre cada vez mais as pessoas separam a sua sensação subjetiva do seu conhecimento objetivo. Na criança os dois ainda se encontram completamente mesclados: ela mal consegue diferenciar-se de seu ambiente, confundindo-se com ele. No jovem toda percepção desperta em primeiro lugar sensação e disposição, sim, confunde-se com estas, como belamente o expressa BYRON: I live not in myself, but I become / Portion of that around me; and to me / High mountains are a feeling. Justamente por isso o jovem se prende tanto ao lado intuitivo e exterior das coisas; justamente por isso se inclina à poesia lírica e, só quando se torna adulto, à dramática. Podemos pensar o ancião no máximo como poeta épico, semelhante a Ossian e Homero  , pois narrar pertence ao caráter de quem é idoso. [MVR1: §51]

A objetivação adequada da VONTADE são as ideias platônicas; estimular o conhecimento destas pela exposição de coisas isoladas que as obras de arte ainda sempre são é o fim de todas as outras artes. Todas, portanto, objetivam a VONTADE apenas mediatamente, a saber, por meio de ideias: ora, como o nosso mundo nada é senão o aparecimento das ideias na pluralidade, por meio de sua entrada no principium individuationis, segue-se que a música, visto que ultrapassa as ideias e também é completamente independente do mundo aparente, ignorando-o por inteiro, poderia em certa medida existir ainda que o mundo não existisse — algo que não se pode dizer das outras artes. De fato, a música é uma IMEDIATA objetivação e cópia de toda a VONTADE, como o mundo mesmo o é, sim, como as ideias o são, cuja aparição multifacetada constitui o mundo das coisas singulares. A música, portanto, não é de modo algum, como as outras artes, cópia de ideias, mas CÓPIA DA VONTADE MESMA, da qual as ideias também são a objetidade: justamente por isso o efeito da música é tão mais poderoso e penetrante que o das outras artes, já que estas falam apenas de sombras, enquanto aquela fala da essência. Ora, como é a mesma VONTADE que se objetiva tanto nas ideias quanto na música, embora de maneiras completamente diferentes, deve haver um paralelismo entre elas, e, mesmo se não há absolutamente uma similaridade direta, deve haver uma analogia entre a música e as ideias cujos aparecimentos na pluralidade e na imperfeição é o mundo visível. A demonstração dessa analogia facilitará, como ilustração, o entendimento da presente explanação, dificultada pela obscuridade do seu objeto. [MVR1: §52]

Entretanto, nunca se deve esquecer, na exposição de todas essas analogias, que a música não tem nenhuma relação direta com elas, mas apenas uma relação media ta; pois a música nunca expressa a aparência, mas unicamente a essência íntima, o em si de toda aparência, a VONTADE mesma. A música exprime, portanto, não esta ou aquela alegria particular e determinada, esta ou aquela aflição, ou dor, ou espanto, ou júbilo, ou regozijo, ou tranquilidade de ânimo, mas eles MESMOS, isto é, a Alegria, a Aflição, a Dor, o Espanto, o Júbilo, o Regozijo, a Tranquilidade de Ânimo, em certa medida in abstracto, o essencial deles, sem acessórios, portanto também sem os seus motivos. E, no entanto, a compreendemos perfeitamente nessa quintessência purificada. Daí advém o fato de nossa fantasia ser tão facilmente estimulada pela arte dos sons, tentando assim figurar em carne e osso aquele mundo espiritual invisível, vivaz e ágil, a falar tão imediatamente a nós, logo, tenta corporificá-lo num exemplo analógico. Essa é a origem do canto com palavras e da ópera; — vê-se justamente por aí que as palavras daquele e o libreto desta nunca devem abandonar a sua posição subordinada para se tornarem a coisa principal, fazendo da música mero meio de sua expressão, o que se constitui num grande equívoco e numa absurdez perversa. Pois em toda parte a música exprime apenas a quintessência da vida e dos seus eventos, nunca estes mesmos, cujas diferenças jamais a influenciam. É justamente essa universalidade própria da música, ao lado de sua determinidade mais precisa, que lhe confere o supremo valor como panaceia de todos os nossos sofrimentos. Nesse sentido, quando a música procura apegar-se em demasia às palavras e amoldar-se aos eventos, esforça-se por falar uma linguagem que não é a sua. De semelhante erro ninguém melhor se livrou do que ROSSINI: por isso sua música fala tão clara e puramente a sua linguagem PRÓPRIA, visto que quase não precisa de palavras e, por conseguinte, provoca todo o seu efeito mesmo se executada só com instrumentos. [MVR1: §52]

Em conformidade com todo o exposto, podemos ver o mundo aparente, ou natureza, e a música como duas expressões distintas da mesma coisa, a qual é a única intermediadora da analogia de ambos, e cujo conhecimento é exigido para reconhecer tal analogia. A música, portanto, caso vista como expressão do mundo, é uma linguagem universal no mais supremo grau, que está até mesmo para a universalidade dos conceitos como aproximadamente estes estão para as coisas particulares. Sua universalidade, entretanto, não é de maneira alguma a universalidade vazia da abstração, mas de um tipo totalmente outro, ligada a uma determinidade mais distinta e persistente. Ela se assemelha, assim, às figuras geométricas e aos números, que, como formas universais de todos os objetos possíveis da experiência, aplicáveis a todos a priori, não são, no entanto, abstratos, mas passíveis de intuição e perfeitamente determinados. Todos os esforços possíveis, estímulos, exteriorizações da VONTADE, todas as ocorrências no interior do ser humano, as quais a razão atira no vasto e negativo conceito de sentimento, são exprimíveis pelo número infinito das possíveis melodias, porém sempre na universalidade da mera forma sem matéria, sempre apenas segundo o Em si, não segundo a aparência, por assim dizer a alma mais interior desta, sem o corpo. Essa íntima referência da música à essência verdadeira de todas as coisas explica o fato de, quando soa uma música que combina com alguma cena, ação, acontecimento, ambiente, ela como que nos revela o sentido mais secreto dos mesmos, entrando em cena como o comentário mais claro e correto deles; de maneira similar, quando alguém se entrega por inteiro à impressão de uma sinfonia, é como se visse desfilar diante de si todos os eventos possíveis da vida e do mundo: contudo, se depois medita, não pode fornecer semelhança alguma entre aquela peça musical e as coisas que passavam diante de si. Pois a música, como foi dito, é diferente de todas as outras artes por ser não cópia daquilo que aparece, ou, mais exatamente, da objetidade adequada da VONTADE, mas cópia imediata da VONTADE e, portanto, expõe para todo físico o metafísico, para toda aparência a coisa em si. Em consequência, poder-se-ia denominar o mundo tanto música corporificada quanto VONTADE corporificada: daí se compreende que a música realça de imediato em cada pintura, sim, em cada cena da vida real e do mundo a irrupção de uma significação mais elevada, e tanto mais quanto mais análoga é sua melodia ao espírito íntimo da aparência dada. Daí ser possível sobrepor a música a uma poesia que se deve cantar, ou a uma exposição intuitiva como pantomima, ou às duas como uma ópera. Essas imagens isoladas da vida humana, submetidas à linguagem universal da música, nunca correspondem ou são ligadas a ela com necessidade infalível, mas estão para ela apenas como um exemplo escolhido está para um conceito geral — expõem na determinidade do real o que a música expressa na universalidade da mera forma. Pois em certo sentido as melodias são, semelhantemente aos conceitos universais, uma abstração da realidade efetiva. Esta, portanto o mundo das coisas isoladas, de fato fornece o intuitivo, o particular e individual, o caso isolado, tanto para a universalidade do conceito quanto para a das melodias, universalidades que, em certo sentido, são opostas uma à outra, em virtude de os conceitos conterem tão somente as formas primeiramente abstraídas da intuição, algo assim como a casca exterior, retirada das coisas, logo, são abstrações no sentido integral do termo; já a música, por sua vez, fornece o núcleo interior que precede todas as figuras, fornece o coração das coisas. Essa relação pode ser muito bem expressa na linguagem dos escolásticos, caso se diga: os conceitos são os universalia post rem, a música, entretanto, fornece os universalia ante rem, e a realidade os universalia in re. O sentido universal de uma melodia que acompanha um texto poético poderia convir a outros exemplos de textos poéticos escolhidos arbitrariamente, os quais também corresponderiam ao universal que nela se expressa: por isso a mesma composição serve a muitas estrofes, daí também o vaudeville. Que, entretanto, seja em geral possível a relação entre uma composição e uma exposição dramática, explica-se, como já disse, pelo fato de as duas serem expressões diversas da mesma essência íntima do mundo. Quando, num caso isolado, tal relação de fato está presente, portanto o compositor soube expressar na linguagem universal da música os estímulos da VONTADE constitutivos do núcleo de um evento, então a melodia da canção, a música da ópera é plenamente expressiva. Entretanto, a analogia encontrada pelo compositor entre aqueles dois tem de provir do conhecimento imediato da essência do mundo, inconsciente para a sua razão, é não pode, com intencionalidade consciente, ser imitação intermediada por conceitos; do contrário, a música não expressa a essência íntima, a VONTADE mesma, mas apenas imita de maneira inadequada a sua aparência. Isso o faz toda música imitativa propriamente dita: por exemplo, As estações de Haydn, também muitas passagens de sua Criação, em que aparências do mundo intuitivo são imediatamente imitadas; também é o caso de todas as peças de batalha, algo que deve ser por completo rejeitado. [MVR1: §52]

O imo inefável de toda música, em virtude do qual ela faz desfilar diante de nós um paraíso tão familiar e no entanto eternamente distante, tão compreensível e no entanto tão inexplicável, baseia-se no fato de reproduzir todas as agitações do nosso ser mais íntimo, porém sem a realidade e distante dos seus tormentos. De maneira similar, a seriedade que lhe é essencial, a excluir por completo o risível do seu domínio próprio e imediato, explica-se pelo fato de seu objeto não ser a representação, exclusivamente em relação à qual o engano e o risível são possíveis, mas seu objeto é diretamente à VONTADE, e esta é essencialmente o mais sério, do qual tudo depende. — Quão plena de sentido e de significação é a linguagem musical testemunham-no até mesmo os sinais de repetição, junto com o da capo, que seriam insuportáveis nas obras literárias; na música, entretanto, são bastante apropriados e benéficos, pois, para apreendê-la completamente, tem-se de ouvi-la duas vezes. [MVR1: §52]

Ainda teria muito a acrescentar sobre a forma como a música é percebida, a saber, única e exclusivamente por meio do tempo, com total exclusão do espaço, também sem influência do conhecimento da causalidade, portanto do entendimento: pois os tons provocam já como efeito a sua impressão estética, sem que retomemos à sua causa, como é o caso da intuição. — Entretanto, não quero mais prolongar as atuais considerações. Neste terceiro livro talvez já me tenha estendido sobre muitas coisas, ou descido demasiado ao detalhe. Todavia, meu objetivo tornou tal procedimento indispensável e serei tanto mais escusado quanto a importância e o valor dessa arte, raramente reconhecidos de maneira suficiente, tornarem-se patentes, tendo-se em conta que, de nossa perspectiva, todo o mundo visível é apenas a objetivação, o espelho da VONTADE que a acompanha para o seu autoconhecimento, sim, como logo veremos, para a possibilidade de sua redenção. Concomitantemente, caso se considere em separado o mundo como representação, abstraído do querer, sendo permitido apenas ao primeiro tomar conta da consciência, então O que se tem é o lado mais aprazível, único inocente, da vida; — devemos considerar a arte como a grande elevação, o desenvolvimento mais perfeito de tudo isso, pois realiza em essência o mesmo que o mundo visível, porém mais concentrada e acabadamente, com intenção e clarividência e, portanto, no sentido pleno do termo, pode ser chamada de florescência da vida. Ora, se todo o mundo como representação é a visibilidade da VONTADE, a arte é o clareamento dessa visibilidade, a câmera obscura que mostra os objetos mais puramente, permitindo-nos melhor abarcá-los e compreendê-los: é o teatro dentro do teatro, a peça dentro da peça em Hamlet. [MVR1: §52]

Para a eficácia dos motivos é preciso não apenas a sua presença, mas também o seu conhecimento, pois, de acordo com uma expressão muito boa dos escolásticos, por nós já citada, causa finalis movet non secundum suum esse reale, sed secundum esse cognitum. Nesse sentido, por exemplo, para que a proporção existente numa dada pessoa entre egoísmo e compaixão entre em cena, não é suficiente que essa pessoa possua riqueza e veja a miséria alheia; ela também tem de saber o que é permitido fazer com a riqueza, tanto em seu favor como para os outros; ademais, o sofrimento alheio tem não apenas de expor-se a ela, mas ela também tem de saber o que é o sofrimento e o que é o prazer. Talvez não tivesse tanta consciência de tudo isso numa primeira ocasião quanto teve numa segunda; e se numa ocasião semelhante age de maneira diferente, é porque as circunstâncias foram de fato outras, para a parte que depende do seu conhecimento, embora parecessem as mesmas. — Contudo, se de um lado o desconhecimento das circunstâncias reais pode retirar-lhes a eficácia, de outro as circunstâncias totalmente imaginárias podem fazer efeito igual ao das reais, não só no caso de uma ilusão singular, mas também total e duradouramente. Por exemplo, se um homem está firmemente convencido de que todo ato beneficente lhe será cem vezes recompensado na outra vida, tal convicção faz efeito igual ao de uma letra de câmbio segura e de longa data, podendo então doar por egoísmo aquilo de que, noutra perspectiva, apossar-se-ia por egoísmo. Mudar ele não mudou: velle non discitur. Ora, em virtude dessa grande influência do conhecimento sobre o agir, apesar de a VONTADE ser inalterável, ocorre de o caráter desenvolver-se só gradativamente e, assim, suas diversas feições entrarem em cena. Eis por que o caráter se mostra diferente em cada idade da vida e, a uma juventude arrebatada, selvagem, pode seguir-se uma idade madura, ordenada e judiciosa. Em especial o traço mau do caráter entrará em cena com cada vez mais poder no decorrer do tempo; contudo, às vezes, também as paixões às quais a pessoa se abandonava na juventude são mais tarde voluntariamente arrefecidas, justamente porque só agora os motivos opostos se apresentaram ao conhecimento. Em consequência, no começo somos todos inocentes e isto apenas significa que nem nós nem os outros conhecemos o mau de nossa própria natureza: este aparece apenas com os motivos; e só no decorrer do tempo é que os motivos se apresentam no conhecimento. Ao fim nos conhecemos de maneira completamente diferente do que a priori nos considerávamos e então amiúde nos assustamos conosco mesmos. [MVR1: §55]

Após ter ficado evidente para nós, em função dos presentes argumentos, a imutabilidade do caráter empírico, simples desdobramento do extratemporal caráter inteligível, e a necessidade das ações resultantes do confronto do caráter com os motivos, cabe agora descartar uma consequência daí facilmente inferível em favor das inclinações reprováveis. Noutros termos, já que nosso caráter deve ser visto como o desdobramento temporal de um ato extra temporal, portanto indivisível e imutável da VONTADE, ou desdobramento de um caráter inteligível, de modo que todo essencial, isto é, o conteúdo ético de nossa conduta de vida, é determinado de maneira inalterável e, em conformidade com isso, tem de exprimir-se em sua aparência, justamente o caráter empírico — enquanto somente o inessencial da aparência, a figura exterior do nosso decurso de vida, depende das formas sob as quais apresentam-se os motivos —, poder-se-ia disso tudo inferir que seria esforço vão trabalhar numa melhora do próprio caráter ou lutar contra o poder das más inclinações, sendo preferível submeter-se ao fatídico, entregando-se a toda inclinação, mesmo as más. — Porém aqui tem-se precisamente o mesmo caso da teoria do destino inexorável com as consequências dela extraídas, a saber, a Razão indolente, cuja correta refutação, atribuída a Crisipo, é exposta por Cícero no livro De fato. [MVR1: §55]

É o suficiente sobre o CARÁTER ADQUIRIDO, que é importante não tanto para a ética como para a vida no mundo, cuja discussão, entretanto, deve ser justaposta àquela sobre o caráter inteligível e o caráter empírico, como uma terceira espécie que tivemos de considerar detalhadamente, a fim de tornar claro como a VONTADE, em todas as suas aparências, está submetida à necessidade, enquanto em si mesma é livre, sim, pode ser chamada onipotente. [MVR1: §55]

Antes de tudo desejo que o leitor aqui recorde aquela consideração com a qual concluímos o livro segundo, ocasionada pela questão ali surgida acerca do fim e alvo da VONTADE. Em vez de uma resposta, apresentou-se diante de nossos olhos como a VONTADE em todos os graus de seu aparecimento, dos mais baixos ao mais elevado, carece por completo de um fim e alvo últimos; ela sempre está se esforçando porque o esforço é sua única essência, e nenhum alvo alcançado põe um fim a esse esforço, pelo que ela não é capaz de nenhuma satisfação final, só obstáculos podendo detê-la, porém em si mesma indo ao infinito. Vimos isso no mais simples de todos os fenômenos naturais, a gravidade, que não cessa de esforçar-se e impelir-se a um ponto central sem extensão, cujo alcançamento seria a aniquilação sua e da matéria; não cessaria nem mesmo se o universo inteiro se contraísse numa massa única. Também a mesma coisa vemos nos outros fenômenos naturais simples: o sólido esforça-se à fluidez por derretimento ou dissolução, apenas nos quais suas forças químicas se tornam livres: rigidez é a prisão destas, na qual são retidas pelo frio. O fluido esforça-se pela forma gasosa, para a qual passa assim que se liberta de toda pressão. Corpo algum é sem afinidade, isto é, sem esforço, ou sem aspiração e apetite, como diria Jakob Böhme  . A eletricidade propaga sua auto-discórdia ao infinito, apesar de a massa do globo terrestre absorver o efeito. O galvanismo, durante o tempo em que a pilha vive, é também um ato incessantemente repetido e sem alvo de auto-discórdia e conciliação. A existência da planta é da mesma forma um esforço interminável nunca satisfeito, um impulso incessante através de formas ascendentes cada vez mais elevadas, até que o ponto final, a semente, torne-se de novo o ponto de partida: e isso se repete ao infinito: em parte alguma encontrando um fim, ou uma satisfação, ou um repouso. Ao mesmo tempo, em todos os lugares as diversas forças naturais e formas orgânicas disputam entre si a matéria, na qual querem aparecer, na medida em que cada uma possui tão somente aquilo que usurpou da outra, e, com isso, perpetua-se uma luta contínua de vida e morte, que gera a resistência pela qual o esforço constitutivo da essência mais íntima das coisas é em toda parte travado; ele anseia em vão, sem poder desfazer-se de sua essência, atormentando-se até o perecimento desta aparência, quando então outras aparências avidamente se apossam do lugar e da matéria desta. [MVR1: §56]

Há muito reconhecemos nesse esforço constitutivo do núcleo, do em si de toda coisa, aquilo que em nós mesmos se chama VONTADE e aqui se manifesta da maneira mais distinta na luz plena da consciência. Nomeamos SOFRIMENTO a sua travação por um obstáculo, posto entre ela e o seu fim passageiro; ao contrário, nomeamos SATISFAÇÃO, bem-estar, felicidade o alcançamento do seu fim. Podemos também transferir tais denominações àquelas aparências de graus mais débeis, porém idênticas em essência, do mundo destituído de conhecimento. Vemo-los assim envoltos em constante sofrimento, sem felicidade duradoura. Pois todo esforço nasce da carência, do descontentamento com o próprio estado e é, portanto, sofrimento pelo tempo em que não for satisfeito; nenhuma satisfação, todavia, é duradoura, mas antes sempre é um ponto de partida de um novo esforço, o qual, por sua vez, vemos travado em toda parte de diferentes maneiras, em toda parte lutando, e assim, portanto, sempre como sofrimento: não há nenhum fim último do esforço, portanto não há nenhuma medida e fim do sofrimento. [MVR1: §56]

Em vista do exposto, queremos considerar o destino secreto e essencial da VONTADE na EXISTÊNCIA HUMANA. Todos irão facilmente reencontrar O MESMO na vida dos animais, apenas expresso em variados graus mais baixos e mais fracos; e assim nos convenceremos suficientemente de como, em essência, incluindo-se também o mundo animal que padece, TODA VIDA É SOFRIMENTO. [MVR1: §56]

Portanto, entre querer e conseguir, flui sem cessar toda a vida humana. O desejo, por sua própria natureza, é dor: a satisfação logo provoca saciedade: o fim fora apenas aparente: a posse elimina o estímulo: porém o desejo, a necessidade aparece em nova figura: quando não, segue-se o langor, o vazio, o tédio, contra os quais a luta é tão atormentadora quanto contra a necessidade. — Quando desejo e satisfação alternam-se em intervalos não muito curtos nem muito longos, o sofrimento ocasionado por eles é diminuído ao mais baixo grau, fazendo o decurso de vida o mais feliz possível. Aquilo que se poderia nomear o lado mais belo e a pura alegria da vida, precisamente porque nos arranca da existência real e nos transforma em espectadores desinteressados diante dela, é o puro conhecimento que permanece alheio a todo querer; é a fruição do belo, a alegria autêntica na arte; mas mesmo isso requer dispositivos raros e cabe apenas a pouquíssimos, sendo, mesmo para estes, um sonho passageiro: ademais, justamente as elevadas faculdades espirituais desses poucos os tornam suscetíveis a sofrimentos bem maiores que aqueles que os obtusos jamais podem sentir, e os colocam, dessa forma, solitários entre seres marcadamente diferentes, pelo que, ao fim, as coisas se equilibram. Para a maioria das pessoas as fruições puramente intelectuais são inacessíveis; elas são quase incapazes de alegria no puro conhecimento: estão completamente entregues ao querer. Se, portanto, algo lhes granjeia a simpatia e deve ser INTERESSANTE, tem de algum modo de lhes estimular a VONTADE, mesmo que só numa relação distante, situada só nos limites da possibilidade; VONTADE que jamais pode ficar fora de jogo, porque a existência dessas pessoas está mais no querer do que no conhecer: ação e reação são seu único elemento. Exteriorizações ingênuas dessa índole podem ser vistas em minudências cotidianas, como, por exemplo, escrever seus nomes em lugares conhecidos que visitam, com o fito de reagir, fazer efeito sobre o lugar, pois este não faz efeito sobre elas: também não podem com facilidade considerar um animal exótico, raro, mas têm de excitá-lo, cutucá-lo, provocá-lo com brincadeiras, para simplesmente experimentar ação e reação; essa necessidade de estimulação volitiva se mostra em especial na invenção e prática dos jogos de carta, que, no sentido mais próprio do termo, são a expressão do lado deplorável da humanidade. Contudo, não importa o que a natureza ou a sorte tenham feito; não importa o que alguém é ou o que alguém possui; a dor essencial à vida nunca se deixa eliminar: Pelides autem ejulavit, intuitus in coelum latum. / E de novo: Jovis quidem filius eram Saturnii; verum aerumnam Habebam infinitam. [MVR1: §57]

Que toda felicidade é de natureza negativa, não positiva, e que justamente por isso não pode haver satisfação nem contentamento duradouros, mas, aqui, sempre somos apenas liberados de uma dor ou carência, aos quais têm de se seguir uma nova dor, ou o languor, anelo vazio, tédio — tudo isso também encontra sua confirmação, naquele fiel espelho da essência do mundo e da vida, a saber, na arte, em especial na poesia. Todo poema épico ou dramático só pode expor luta, esforço, combate; nunca a felicidade permanente e consumada. Os poetas conduzem seus heróis por milhares de dificuldades e perigos até o fim almejado; porém, assim que este é alcançado, de imediato deixam a cortina cair, pois a única coisa ainda a ser mostrada seria que o fim glorioso no qual o herói esperava encontrar a felicidade foi em realidade um ludíbrio, de modo que após atingi-lo não se encontra num estado melhor que o anterior. De fato, como a felicidade autêntica e permanente é impossível, ela não pode ser tema da arte. Decerto o objetivo do idílio é a descrição de semelhante felicidade: mas também se vê que o idílio enquanto tal não pode sustentar-se. Nas mãos do poeta sempre se tornará épico, e em realidade um épico insignificante, composto de pequenos sofrimentos, pequenas alegrias, pequenos esforços — caso mais comum; ou se tornará simples poesia descritiva, narrando a beleza da natureza, em outras palavras, o puro conhecer propriamente dito, destituído de VONTADE que em verdade é a única felicidade pura não precedida de sofrimento nem de necessidade, muito menos seguida necessariamente de arrependimento, sofrer, vácuo, saciedade: todavia, essa felicidade não pode preencher a vida em sua totalidade, mas apenas momentos dela. — Ora, aquilo que vemos na poesia encontramos de novo na música, em cuja melodia reconhecemos expressamente e de forma universal a história mais íntima da VONTADE consciente de si mesma, a vida mais secreta, anelo, sofrimento e alegria, o fluxo e refluxo do coração humano. A melodia é sempre um desvio da tônica por milhares de vias tortuosas e surpreendentes, até a dissonância mais dolorosa, para ao fim reencontrar o tom fundamental, que expressa a satisfação e o repouso da VONTADE, depois do qual, entretanto, nada mais pode ser feito e cuja continuação produziria uma monotonia insípida e arrastada, correspondente ao tédio. [MVR1: §58]

Os genitais, mais do que qualquer outro membro externo do corpo, estão submetidos meramente à VONTADE e de modo algum ao conhecimento: sim, a VONTADE mostra-se aqui quase tão independente do conhecimento quanto nas outras partes que, por ocasião de simples estímulo, servem à vida vegetativa, à reprodução e nas quais a VONTADE faz efeito cegamente como o faz na natureza destituída de conhecimento. Pois a procriação é apenas a reprodução que transpassa a um novo indivíduo, sendo, por assim dizer, a reprodução elevada à segunda potência, como a morte é somente a excreção elevada à segunda potência. — Em conformidade com tudo isso, os genitais são o verdadeiro FOCO da VONTADE; consequentemente, são o polo oposto do cérebro, este representante do conhecimento, vale dizer, do outro lado do mundo, o mundo como representação. Os genitais são o princípio conservador vital, assegurando vida infinita no tempo; com semelhante qualidade foram venerados entre os gregos no falo e entre os hindus no lingam, os quais, portanto, são o símbolo da afirmação da VONTADE. O conhecimento, ao contrário, fornece a possibilidade de supressão do querer, de redenção pela liberdade, de superação e aniquilamento do mundo. [MVR1: §60]

Injustiça por violência não é tão IGNOMINIOSA para o praticante quanto injustiça por ASTÚCIA; porque a primeira evidencia força física, que, em todas as circunstâncias, impõe-se à raça humana, enquanto a segunda, por recorrer ao desvio, denuncia fraqueza, rebaixando ao mesmo tempo o praticante tanto em termos físicos quanto morais; ademais, mentira e engano só podem obter sucesso se quem os pratica exteriorizar ao mesmo tempo aversão e desprezo por eles, a fim de obter confiança: seu triunfo, portanto, repousa em se lhe atribuir uma honestidade que não possui. — A profunda aversão que em toda parte despertam a astúcia, a perfídia e a traição assenta-se no fato de a confiança e a honestidade serem o laço que ainda une exteriormente numa unidade a VONTADE fragmentada na pluralidade dos indivíduos, e, assim, põem barreiras às consequências do egoísmo proveniente dessa dispersão. Perfídia e traição rompem precisamente esse laço externo e, dessa forma, dão às consequências do egoísmo espaço ilimitado de atuação. [MVR1: §62]

Kant faz a afirmação fundamentalmente falsa de que exterior ao Estado não há direito algum de propriedade. Só que, em conformidade com a nossa dedução recém-feita, há sim propriedade no Estado de natureza, lastreada em direito perfeitamente natural, isto é, moral, o qual não pode ser violado sem injustiça, podendo pois ser defendido sem injustiça. Por outro lado, e isto também é certo, fora do Estado não há DIREITO PENAL. Todo direito de punir é estabelecido exclusivamente pela lei positiva que, ANTES do delito mesmo, determinou uma punição para ele e cuja ameaça, como contramotivo, deve sobrepor-se a todo possível motivo que conduz ao delito. Essa lei positiva deve ser vista como reconhecida e sancionada por todos os cidadãos do Estado. Ela, portanto, funda-se sobre um contrato comum, cujo cumprimento os membros do Estado estão obrigados em todas as circunstâncias, portanto deve-se infligir punição de um lado, ou, de outro, recebê-la; por conseguinte, a aceitação de uma punição é algo que pode ser imposto com direito. Daí se segue que o imediato OBJETIVO DA PUNIÇÃO num caso particular é CUMPRIR A LEI COMO UM CONTRATO. Por sua vez, o único objetivo da LEI é IMPEDIR o menosprezo dos direitos alheios, pois, para que cada um seja protegido do sofrimento da injustiça, unem-se todos em Estado, renunciando à prática da injustiça e assumindo o fardo da manutenção dele. Nesse sentido, a lei e o cumprimento dela, ou seja, a punição, são dirigidos essencialmente ao FUTURO, não ao PASSADO. Isso diferencia PUNIÇÃO de VINGANÇA, já que esta última é motivada simplesmente pelo que aconteceu, portanto pelo passado enquanto tal. Toda retaliação da injustiça por via do infligir uma dor sem objetivo algum relacionado ao futuro é vingança e não pode ter outro objetivo senão, pela visão do sofrimento causado a outrem, a pessoa consolar a si mesma do próprio sofrimento. Mas isso é maldade, crueldade, injustificáveis eticamente. A injustiça que alguém praticou contra mim de modo algum me autoriza a praticar-lhe injustiça. Retaliação do mau com o mau e sem ulterior finalidade não é moralmente nem de qualquer outra forma justificável, porque inexiste um fundamento da razão para tal e a jus talionis estabelecida como um princípio independente e último do direito penal carece de sentido. Por conseguinte, a teoria kantiana da punição, concebida como retaliação pela VONTADE de retaliação, é uma visão totalmente infundada, perversa. No entanto, seus vestígios sempre fazem-se presente nos escritos dos jurisconsultos, na forma de perífrases imponentes, verborragia oca, como aquela de que pela punição o delito é expiado ou neutralizado ou suprimido, e coisas semelhantes. Todavia, nenhum ser humano pode arvorar-se o direito de erigir-se em puro juiz moral e vingador, para assim punir os atos criminosos alheios, infligindo-lhe dores, ou seja, impondo-lhe uma expiação por seus atos. Tal pretensão seria das mais descabidas; daí justamente a passagem bíblica: “Minha é a vingança, diz o Senhor, e a mim cabe retaliar”. Claro está que o ser humano tem o direito de zelar pela segurança da sociedade: mas isso só pode acontecer por meio da interdição de todas aquelas ações indicadas pela palavra “criminosa”, prevenindo-as por contramotivos, que são as ameaças de punição; ameaças estas eficazes só mediante a sua execução, quando, a despeito delas, o caso se apresenta. Como o objetivo da punição, ou mais precisamente da lei penal, é impedir o crime, e se trata de uma verdade por si mesma evidente e universalmente reconhecida, esta foi até mesmo expressa na antiga fórmula inglesa de acusação, ainda usada em casos criminais pelo conselho da Coroa e que termina com as seguintes palavras: if this be proved, you, the said N.N., ought to be punished with pains of law, to deter others from the like crimes, in all time coming. — O que, portanto, distingue a punição da vingança é que a primeira tem por objetivo o futuro e só pode alcançá-lo ao ser aplicada EM CUMPRIMENTO À LEI, pois só assim proclama a si mesma como inexorável em qualquer caso futuro e, dessa forma, obtém para a lei o poder intimidativo, precisamente nisto consistindo o objetivo da lei. — Aqui talvez um kantiano infalivelmente replicasse que, segundo semelhante visão, o criminoso punido seria usado “meramente como meio”. Esta sentença repetida tão infatigavelmente por todos os kantianos, “que se tem de tratar as pessoas sempre como fim, não como meio”, certamente soa imponente e é bastante adequada para os que gostam de ter uma fórmula que os isenta de todo pensamento extra; contudo, considerada sob uma luz mais clara, essa sentença é extremamente vaga, indeterminada e atinge seu intento de maneira completamente indireta, e a cada caso de sua aplicação exige antes explanação específica, determinação e modificação; contudo, caso se a considere em termos gerais, é insuficiente, diz pouco, além de ser problemática. O assassino condenado à morte pela lei certamente tem de ser usado agora segundo o pleno direito como simples MEIO, visto que a segurança pública, fim principal do Estado, é perturbada pelo criminoso, sim, é suprimida se a lei não for cumprida: em vista disso, ele, sua vida, sua pessoa, tem de agora ser o MEIO para o cumprimento da lei e, com isso, para o restabelecimento da segurança pública, sendo inteiramente justo servir-se dele como um meio em vista da consumação do contrato de Estado, o qual ele aceitou na medida em que era cidadão; e a fim de gozar a segurança de sua vida, de sua liberdade, de sua propriedade, deu como penhor sua vida e propriedade em favor da segurança de todos, e esse penhor é agora executado. [MVR1: §62]

64. Mas, a partir da nossa exposição não mítica, porém filosófica, da justiça eterna, queremos agora passar à consideração, que lhe é aparentada, do significado ético da ação e consciência moral, que não passa do mero conhecimento sentido desse significado. — Antes, no entanto, quero aqui chamar a atenção para duas características da natureza humana que podem contribuir para clarear como cada um de nós, ao menos com sentimento obscuro, está consciente da essência íntima da justiça eterna, e da unidade e identidade da VONTADE em todas as suas aparências, que é a base da justiça eterna. No seu todo independente do objetivo por nós demonstrado da punição praticada pelo Estado, algo que fundamenta o direito penal, constata-se que não só à parte injuriada, na maioria das vezes possuída pelo desejo de vingança, mas também ao espectador completamente indiferente advém a satisfação em ver, após um mau ato cometido, que quem causa dor a outrem sofre exatamente a mesma quantidade de dor. Parece-me que aqui não ocorre outra coisa senão justamente o anúncio na consciência da justiça eterna, que, entretanto, é em seguida mal compreendida e falseada pela mente turvada, enredada no principiam individuationis e que comete uma anfibologia de conceitos ao exigir da aparência o que só corresponde à coisa em si, ao passar-lhe despercebida a extensão em que o ofensor e o ofendido são um só, e é a mesma essência que, desconhecendo a si mesma em sua própria aparência, suporta tanto o tormento quanto a culpa; antes, essa mente exige voltar a ver o tormento no mesmo indivíduo que carrega a culpa. Eis por que a maioria também exigirá que uma pessoa dotada de um elevadíssimo grau de maldade, apesar de este ser encontrado em muitas outras pessoas, mas não acompanhado de qualidades parelhas com as dela, dentre as quais pode-se mencionar a que a faz superior por uma força espiritual incomum, pessoa esta que, por exemplo, é um conquistador de mundos, que infligiu sofrimentos inomináveis a milhões de outros — a maioria também exigirá, ia dizer, que esta pessoa expie com igual medida de dor em algum momento e em algum lugar todo aquele sofrimento provocado nos outros, justamente porque desconhece como o torturador e o torturado são em si um; e a mesma VONTADE pela qual o torturador existe e vive é também aquela que aparece no torturado, e justamente naquele atinge a manifestação mais distinta de sua essência; a VONTADE sofre igualmente tanto no oprimido quanto no opressor, e em verdade neste último em graus ainda maiores, à medida que a consciência tem maior clareza e distinção e a VONTADE mais veemência. — Porém, já a ética cristã dá testemunho de que o conhecimento profundo do qual procede toda virtude e toda nobreza não fomenta aquela mentalidade que exige retaliação, ao proibir absolutamente toda retaliação do mau com o mau, fazendo assim com que a justiça eterna se cumpra num domínio diferente da aparência, o da coisa em si. [MVR1: §64]

A explanação do conceito de VERDADEIRO já foi dada no ensaio Sobre o princípio de razão. O conteúdo do conceito de BELO recebeu pela primeira vez sua explanação apropriada durante todo o nosso terceiro livro. Queremos agora reconduzir o conceito de BOM à sua significação própria, algo que pode ser feito sem muitos empecilhos. Este conceito é essencialmente relativo e indica a ADEQUAÇÃO DE UM OBJETO COM ALGUM ESFORÇO DETERMINADO DA VONTADE. Portanto, tudo o que é favorável à VONTADE em alguma de suas exteriorizações e satisfaz seus fins é pensado no conceito BOM, por mais diferentes que essas coisas possam ser noutros aspectos. Eis por que dizemos boa comida, bom caminho, bom tempo, boas armas, bom augúrio etc., em síntese, chamamos de bom tudo o que é exatamente como queremos que seja; assim, algo pode ser bom para uma pessoa embora seja exatamente o contrário para outra. O conceito de bom divide-se em duas subespécies, a saber, a da satisfação imediata e momentânea da VONTADE em cada caso, e a da satisfação apenas mediata da VONTADE em relação ao futuro: noutros termos, o agradável e o útil. — Quando discutimos sobre seres não cognoscentes, o conceito oposto é expresso pela palavra MAL, mais rara e abstratamente pela palavra RUIM, que portanto indica algo não favorável ao esforço da VONTADE em cada caso. Como todos os demais seres que podem entrar em relação com a VONTADE, também se chamam de BONS aqueles humanos favoráveis aos nossos fins almejados, que os fomentam e lhe são simpáticos, e isso sempre na mesma acepção, retendo-se o aspecto relativo, como o encontrado por exemplo na expressão “isto me é bom, mas aquilo não”. Aqueles cujo caráter os leva em geral a não obstarem os esforços da VONTADE alheia, mas antes os fomentam, que portanto são continuamente prestativos, generosos, amigáveis, caridosos, foram sempre chamados indivíduos humanos BONS devido à relação de sua conduta com a VONTADE dos outros em geral. O conceito contrário é designado em alemão — desde há cem anos também em francês —, em se tratando de seres cognoscentes, por outra palavra diferente da empregada quando se trata de seres não cognoscentes, vale dizer, MAU, méchant; enquanto em quase todas as outras línguas inexiste essa diferença e malus, cattivo, bad são termos usados tanto para os humanos quanto para as coisas inanimadas que se opõem aos fins de uma determinada VONTADE individual. Portanto, tendo partido totalmente do aspecto passivo de bom, apenas mais tarde a consideração pôde ter sido aplicada ao aspecto ativo, e assim investigou-se a conduta do indivíduo humano chamado BOM não mais em relação aos outros, mas a si mesmo; em especial pode-se ter procurado a explanação para o respeito puramente objetivo produzido em outros por tal conduta, bem como para a satisfação característica consigo mesmo que ela manifestamente desperta, pois ele a sustenta, mesmo se a expensas de outros tipos de sacrifício; assim como, ao contrário, pode-se ter procurado explanar a dor íntima que acompanha a disposição má, independentemente das vantagens exteriores trazidas para quem a alimenta. Daí originaram-se os sistemas éticos, tanto os filosóficos quanto os apoiados em doutrinas religiosas. Ambos tentaram continuamente fazer a ligação entre felicidade e virtude; os filosóficos pelo princípio de contradição ou também pelo de razão: felicidade, portanto, como sendo idêntica ou consequência da virtude, e isso sempre de maneira sofística; os apoiados em doutrinas religiosas mediante a afirmação de outros mundos diferentes daquele conhecido pela experiência. [MVR1: §65]

Decerto os dogmas podem ter uma forte influência sobre a CONDUTA, sobre os atos exteriores, assim como o têm o hábito e o exemplo; mas com isso a disposição de caráter não mudou. Todo conhecimento abstrato fornece apenas motivos: estes, por sua vez, como mostrado acima, podem apenas mudar a direção da VONTADE, não ela mesma. Todo conhecimento comunicável só pode fazer efeito sobre a VONTADE exclusivamente como motivo: por mais que os dogmas guiem a VONTADE, o que o ser humano verdadeiramente e em geral quer sempre permanece o mesmo: ele simplesmente recebeu outros pensamentos sobre as vias para alcançar esse fim, e motivos imaginários podem guiá-lo como se fossem reais. Eis por que é indiferente em relação ao valor ético de uma pessoa se ela faz grandes doações a pessoas carentes na firme convicção de ser reembolsada dez vezes mais numa vida futura, ou se emprega a mesma soma num investimento que mais tarde lhe renderá com certeza juros seguros e substanciais; um ser humano que, em nome da sua ortodoxia, entrega o herético às chamas da fogueira é tão assassino quanto o bandido que mata para roubar; sim, consideradas as condições internas, quem massacra os turcos na Terra Prometida é semelhante ao queimado de heréticos, se de fato o faz porque acredita com isso obter um lugar no céu. Pois tais religiosos querem cuidar apenas de si mesmos, do seu egoísmo, exatamente como o bandido, do qual se diferenciam somente pela absurdez dos meios. — De fora, como já dissemos, a VONTADE só pode ser atingida por motivos; estes, entretanto, só mudam a maneira como ela se exterioriza, jamais ela mesma. Velle non discitur. [MVR1: §66]

Contudo, em se tratando dos bons atos cujo praticante apeia-se sobre dogmas, sempre tem-se de distinguir se tais dogmas são realmente o motivo para a conduta ou se não passam, como disse acima, de uma informação ilusória com a qual tenta satisfazer a própria razão acerca de um bom ato oriundo de fonte inteiramente outra e levado a bom termo por ser um humano BOM, sem todavia conseguir explicá-lo apropriadamente, pois não é filósofo, entretanto gostaria de pensar alguma coisa a respeito. Mas a diferença é muito difícil de encontrar, visto que reside no íntimo de sua disposição. Eis por que quase nunca podemos julgar com acerto moral os atos de outrem e raras vezes os nossos. — Os atos e as maneiras de agir de um indivíduo e de um povo podem ser bastante modificados por dogmas, pelo exemplo e pelo hábito. Porém, em si, todos os atos são meras imagens vazias; só a disposição de caráter que conduz a eles fornece-lhes sentido moral. Este, por sua vez, pode em realidade ser o mesmo, apesar da diversidade exterior das aparências. Com o mesmo grau igual de maldade, uma pessoa pode morrer na guilhotina, outra pacificamente no regaço dos seus parentes. Pode ser o mesmo grau de maldade o que se expressa em UM povo nos traços crus do assassinato e do canibalismo, em OUTRO fina e delicadamente in miniature nas intrigas da corte, nas opressões e sutis maquinações de todo tipo: mas a essência permanece a mesma. É até possível pensar que um Estado perfeito, ou mesmo um dogma de recompensas e punições após a morte em que se acredite firmemente, previna todo crime: em termos políticos muito seria aí ganho, porém, em termos morais, nada; antes, apenas se turvaria a revelação da imagem especular da VONTADE através da vida. [MVR1: §66]

Vimos que a justiça voluntária tem sua origem mais íntima num certo grau de visão que transpassa o principium individuationis; enquanto o injusto, ao contrário, permanece completamente envolto neste princípio. Essa “visão que transpassa” dá-se não apenas no grau exigido pela justiça, mas também em graus mais elevados, os quais impulsionam à benevolência, à beneficência positiva, à caridade: e isso é algo que pode acontecer não importa o quão vigorosa e enérgica é em si mesma a VONTADE que aparece num tal indivíduo. Nele o conhecimento sempre poderá conduzir à equanimidade, ao ensiná-lo a resistir à tentação da injustiça; pode até mesmo produzir graus de bondade, sim, de resignação. Por consequência, o ser humano bom de modo algum deve ser considerado como uma aparência originariamente mais fraca da VONTADE que a do ser humano mau; na realidade, em quem é bom, o conhecimento domina o ímpeto cego da VONTADE. Certamente existem indivíduos só aparentemente bondosos devido à fraqueza da VONTADE neles manifestada: mas o que eles são logo se mostra na sua incapacidade de uma consistente auto-abnegação para a prática de um ato justo ou bom. [MVR1: §66]

Ora, quanto mais veemente a VONTADE, tanto mais flagrante é a aparência do seu conflito: logo, tanto mais intenso é o sofrimento. Um mundo que fosse a aparência de uma VONTADE incomparavelmente mais veemente que a atual exibiria sofrimentos tão mais intensos que, em verdade, seria um INFERNO. [MVR1: §68]

Ademais, é uma doutrina originária e evangélica do cristianismo a que Agostinho, com a aprovação dos mestres da Igreja, defendeu contra as rasteirices dos pelagianos, e que LUTERO procurou restabelecer e purificar de erros, tarefa esta que se tornou o objetivo principal dos seus esforços, como o declara expressamente em seu livro De servo arbítrio: refiro-me à doutrina de que a VONTADE NÃO É LIVRE, mas está originariamente propensa ao que é mau; por isso as obras da VONTADE são sempre pecaminosas e imperfeitas e jamais podem satisfazer à justiça; por fim, tais obras nunca podem nos salvar: só a fé o pode; esta, entretanto, não nasce de resolução ou de pretenso livre-arbítrio, e sim do EFEITO DA GRAÇA, sem a nossa participação, como algo que chega de fora para nós. — Não somente os dogmas antes mencionados, mas também este último dogma genuinamente evangélico, encontram-se entre aqueles que nos dias de hoje uma opinião tosca e raquítica rejeita como absurdo ou desfigura. Em realidade, a despeito de Agostinho e Lutero, tal opinião adequa-se ao senso comum do pelagianismo, que em verdade é o racionalismo dos dias atuais, e que trata como ultrapassados precisamente aqueles dogmas profundos, essenciais e próprios do cristianismo, preferindo, por outro lado, considerar como assunto principal apenas os dogmas de origem e tradição judaica, ligados ao cristianismo apenas por razões históricas. — Nós, entretanto, reconhecemos na doutrina acima mencionada a verdade que coincide inteiramente com o resultado das nossas considerações. Noutros termos, vemos que a autêntica virtude e a santidade de disposição têm sua primeira origem não no arbítrio ponderado, mas no conhecimento: exatamente como desenvolvemos a partir do nosso pensamento capital. [MVR1: §70]

Kant, decerto, não chegou ao conhecimento de que a aparência é o mundo como representação e a coisa em si é a VONTADE. Todavia mostrou que o mundo aparente é condicionado tanto pelo sujeito quanto pelo objeto e, isolando as formas mais gerais de sua aparência, isto é, da representação, demonstrou que conhecemos tais formas e as abrangemos segundo a sua legalidade inteira não apenas partindo do objeto, mas também partindo do sujeito, porque as mesmas são propriamente, entre objeto e sujeito, a fronteira comum a ambos; e concluiu que, ao seguirmos tal fronteira, não penetramos no interior do objeto nem do sujeito, por conseguinte, nunca conhecemos a essência do mundo, a coisa em si. [MVR1: Apêndice: Crítica da Filosofia Kantiana]

Kant, no entanto, não deduziu a coisa em si de modo correto, como logo a seguir mostrarei, mas por meio de uma inconsequência, pela qual teve de pagar com o sofrer de frequentes e irresistíveis ataques a essa parte capital de seu ensinamento. Ele não reconheceu diretamente na VONTADE a coisa em si, porém deu um passo grande e desbravador em direção a este conhecimento, na medida em que expôs a inegável significação moral da ação humana como completamente diferente, e não dependente, das leis da aparência, nem explanável segundo estas, mas como algo que toca imediatamente a coisa em si: este é o segundo ponto de vista capital em relação a seu mérito. [MVR1: Apêndice: Crítica da Filosofia Kantiana]

Também a ética foi tratada por aquela filosofia realista segundo as leis da aparência, que ela tomava por absolutas, válidas inclusive para a coisa em si; com isso a ética era fundada ora sobre doutrinas da felicidade, ora sobre a VONTADE do criador do mundo, por fim também sobre o conceito de perfeição, o qual, em e por si, é totalmente vazio e destituído de conteúdo, pois designa uma mera relação que adquire significação só a partir das coisas às quais é aplicado, pois” ser perfeito” nada mais quer dizer senão “corresponder a algum conceito pressuposto e dado”, conceito portanto que tem de ser estabelecido anteriormente e sem o qual a perfeição é uma incógnita indefinida, consequentemente, se enunciada sozinha, nada diz. Nesse sentido, caso se queira fazer do conceito de “humanidade” um pressuposto tácito e, de acordo com isso, colocar como princípio moral o empenho por uma humanidade mais perfeita, com isso se diz apenas: “Os seres humanos devem ser como eles devem ser” — e com isso se é tão sábio quanto antes. De fato, “perfeito” é quase só sinônimo de “numericamente perfeito”, na medida em que diz: em um caso ou em um indivíduo dado todos os predicados contidos no conceito de sua espécie aparecem como seu suporte, portanto estão efetivamente presentes. Por conseguinte, o conceito de “perfeição”, quando usado absolutamente e in abstracto, é uma palavra vazia de pensamento, como também o é a conversa sobre “o ser perfeitíssimo” e semelhantes. Tudo isso é mera verborragia. Contudo, no século XVI esse conceito de perfeição e imperfeição tornou-se moeda corrente; sim, era o gonzo em torno do qual girava quase todo discurso moral e teológico. Estava na ponta da língua de todo mundo, até que, por fim, foi praticado um verdadeiro excesso. Vemos inclusive os melhores escritores do tempo, por exemplo Lessing, enredados da maneira mais deplorável possível nas perfeições e imperfeições e debatendo-se com elas. Aqui qualquer pessoa que pensa tinha de sentir, ao menos obscuramente, que esse conceito é desprovido de todo conteúdo positivo, pois, semelhante a um sinal algébrico, indica uma mera relação in abstracto. — Kant, como já dito, apartou totalmente da aparência e de suas leis o grande, inegável significado ético das ações e mostrou este significado ético como concernente imediatamente à coisa em si, à essência mais íntima do mundo, enquanto a aparência, isto é, tempo, espaço e tudo o que os preenche, e neles se ordena segundo a lei de causalidade, deve ser visto como um sonho inconsistente e inessencial. [MVR1: Apêndice: Crítica da Filosofia Kantiana]

Com a decisiva visão idealista fundamental expressa tão distintamente na primeira edição da Crítica da razão pura, encontra-se todavia em inegável contradição o modo como Kant introduz a COISA EM SI; e, sem dúvida, essa é a principal razão para ele, na segunda edição, suprimir a citada passagem principal idealista e autodefinir-se como alguém diretamente opositor do idealismo berkeleyano, com o que, entretanto, tão somente incorporou inconsequências à sua obra, sem poder remediar o principal defeito dela. Este é, como é bem conhecido, a introdução da COISA EM SI pelo modo como escolheu, cuja inadmissibilidade foi demonstrada em detalhes por G. E. Schulze em Enesidemo e logo reconhecida como o ponto fraco do seu sistema. A questão pode ser esclarecida em bem poucas palavras. Kant fundamentou a pressuposição da coisa em si, embora encoberta por torções conceituais variadas, sobre uma conclusão conforme a lei de causalidade, a saber, que a intuição empírica, ou mais corretamente a SENSAÇÃO em nossos órgãos dos sentidos, da qual ela procede, tem de possuir uma causa externa. Entretanto, de acordo com sua própria e acertada descoberta, a lei de causalidade é por nós conhecida a priori, conseguintemente uma função do nosso intelecto, portanto de origem SUBJETIVA; além disso, a própria sensação dos sentidos, sobre a qual aplicamos a lei de causalidade, é também inegavelmente SUBJETIVA; por fim, até mesmo o espaço, no qual, por meio dessa aplicação, situamos a causa da sensação como objeto, é uma forma de nosso intelecto dada a priori, por conseguinte é da mesma maneira SUBJETIVA. Portanto, toda a intuição empírica permanece por inteiro assentada em fundação SUBJETIVA, como um simples processo em nós; e nada por completo diferente e independente disso pode ser trazido como uma COISA EM SI, ou exibido como um pressuposto necessário. De fato, a intuição empírica é e permanece nossa mera representação — é o mundo como representação. Só podemos alcançar a essência em si deste mundo tomando um caminho bem diferente, por mim trilhado, mediante consulta à consciência de si, a qual anuncia a VONTADE como o em si de nossa própria aparência: mas, então, a coisa em si torna-se algo toto genere diferente da representação e de seus elementos, como já O mostrei. [MVR1: Apêndice: Crítica da Filosofia Kantiana]

Volto agora ao grande erro de Kant, já tocado acima, a saber, o fato de ele não ter separado de modo apropriado o conhecimento intuitivo do conhecimento abstrato, nascendo daí uma irremediável confusão, que agora temos de considerar detalhadamente. Caso tivesse separado rigorosamente as representações intuitivas dos conceitos, estes pensados meramente in abstracto, tê-los-ia conservado à parte e sempre teria sabido, em cada situação, com qual dos dois estava lidando. Porém este não foi o caso. E a censura a isso ainda não se tornou pública, portanto talvez seja inesperada. Seu “objeto” da experiência, sobre o qual fala constantemente, o objeto propriamente dito das categorias, não é a representação intuitiva, mas também não é o conceito abstrato, é diferente de ambos e, no entanto, é os dois ao mesmo tempo, vale dizer, um completo disparate. Por mais inacreditável que possa parecer, faltou-lhe clareza de consciência ou boa VONTADE para pôr-se de acordo consigo mesmo e assim explanar distintamente a si e aos demais se o seu “objeto da experiência, isto é, do conhecimento dado pela aplicação das categorias” é a representação intuitiva no espaço e rio tempo ou meramente o conceito abstrato. Por mais estranho que seja, paira diante dele constantemente um híbrido entre os dois, daí advindo a infeliz confusão que tenho agora de trazer à luz e para cujo fim tenho de atravessar toda a doutrina dos elementos em geral. [MVR1: Apêndice: Crítica da Filosofia Kantiana]

Após Kant ter introduzido erros tão grandes nas primeiras linhas básicas de uma teoria da faculdade de representação, chegou a uma série de assertivas bastante complicadas. A elas pertence em primeiro lugar a unidade sintética da apercepção: uma coisa muito estranha, muito estranhamente apresentada. “O EU PENSO tem de poder acompanhar todas as minhas representações.” Tem de — poder: esta é uma: enunciação problemático-apodítica, ou, traduzindo-se, uma proposição que tira com uma mão aquilo que dá com a outra. E qual é o sentido desta proposição, a equilibrar-se numa corda bamba? — Que todo representar é um pensamento? — Não. Isto seria terrível, pois então só haveria conceitos abstratos, nada de intuição pura, destituída de reflexão e de VONTADE, como a do belo, a mais profunda apreensão da essência verdadeira das coisas, isto é, de suas ideias platônicas. Além disso, os animais teriam de ser capazes de pensar, ou então não representariam uma vez sequer. — Ou a proposição talvez deva significar: nenhum objeto sem sujeito? Mas isso seria uma forma muito ruim de expressar-se e chegaria tarde demais. Ao sumarizarmos as afirmações de Kant, notamos que aquilo que ele entende por unidade sintética da apercepção é, por assim dizer, o centro inextenso da esfera de todas as nossas representações, cujos raios convergem para ela. É aquilo que denominei sujeito do conhecer, o correlato de todas as representações, e é, ao mesmo tempo, aquilo que, no capítulo 22 do segundo tomo, descrevi elucidei em detalhes como o foco no qual convergem os raios da atividade do cérebro. Remeto o leitor a este capítulo, para não me repetir. [MVR1: Apêndice: Crítica da Filosofia Kantiana]

Juízos categóricos têm como princípio metalógico as leis do pensamento de identidade e de contradição. Mas o FUNDAMENTO da conexão das esferas conceituais que atribui VERDADE ao juízo, que é justamente apenas esta conexão, pode ser de espécie muito diferente: como resultado disso, a verdade do juízo é, então, lógica, ou empírica, ou metafísica, ou metalógica, como foi exposto no meu ensaio introdutório, §§ 30-33, e aqui não precisa ser repetido. Por aí se vê como os tipos de conhecimento imediato podem ser bem diferentes, todos eles expondo-se in abstracto mediante a ligação das esferas de dois conceitos como sujeito e predicado, e como não se pode de maneira alguma estabelecer uma única função do entendimento como correspondente a ela, produzindo-a. Por exemplo, os juízos: “a água ferve”, “o seno mede o ângulo”, “a VONTADE decide”, “ocupação distrai”, “a distinção é difícil” expressam por meio da mesma forma lógica as mais variadas espécies de relação, do que mais uma vez obtemos a confirmação do quão equivocado é começar adotando o ponto de vista do conhecimento abstrato para dele analisar o conhecimento imediato, intuitivo. — De um conhecimento propriamente dito do entendimento, em meu sentido, nasce ademais o juízo categórico só lá onde, através deste, exprime-se uma causalidade; esse também é o caso de todos os juízos que indicam uma qualidade física; pois, quando digo “este corpo é pesado, duro, fluido, verde, alcalino, orgânico e assim por diante”, isso sempre indica seu fazer-efeito, portanto um conhecimento que é possível apenas pelo entendimento puro. Ora, após tal conhecimento, como muitos diferentes dele, foi expressado in abstracto por meio de sujeito e predicado, transmitiram-se de volta essas meras relações conceituais ao conhecimento intuitivo e supôs-se que o sujeito e o predicado do juízo teriam de ter um correlato próprio e especial na intuição, vale dizer, substância e acidente. Porém mais adiante tornarei evidente que o conceito de substância não tem nenhum outro verdadeiro conteúdo senão o do conceito de matéria. Acidentes, entretanto, são sinônimos de tipos de efeito, de modo que o suposto conhecimento de substância e acidente é sempre ainda o conhecimento de causa e efeito do entendimento puro. Agora, como, por seu turno, surge propriamente a representação da matéria, isso já foi discutido em parte em nosso primeiro livro, § 4, e ainda mais claramente no ensaio Sobre o princípio de razão, na conclusão do § 2 I; em parte, ainda, o veremos com mais detalhes na investigação do princípio de permanência da substância. [MVR1: Apêndice: Crítica da Filosofia Kantiana]

A solução da terceira antinomia, cujo objeto é a ideia de liberdade, merece uma consideração especial, na medida em que, para nós, é notável que Kant seja obrigado, precisamente aqui, em conexão com a ideia de LIBERDADE, a falar detalhadamente da COISA EM SI, que até então fora vista apenas no pano de fundo. Isso nos é bastante compreensível após termos reconhecido a coisa em si como a VONTADE. Em geral este é o ponto em que a filosofia de Kant conduz à minha, ou em que esta brota daquela como um galho do tronco. Os leitores se convencerão disso quando lerem com atenção na Crítica da razão pura, e depois ainda compararem com esta passagem a introdução à Crítica da faculdade de juízo, em que é até mesmo dito: “O conceito de liberdade pode tornar representável uma coisa em si em seu objeto,” mas não na intuição; ao contrário, o conceito de natureza pode tornar de fato representável seu objeto na intuição, mas não como coisa em si.” Em especial, porém, leia-se o § 53 dos Prolegômenos, sobre a solução das antinomias e, em seguida, responda-se honestamente a questão de se tudo que é ali dito não soa como um enigma para o qual a minha doutrina é a palavra-chave. Kant não foi até o fim com seu pensamento: eu apenas levei a bom termo o seu trabalho. Em conformidade com tudo isso, aquilo que Kant fala só das aparências humanas, eu o transmiti a todas as aparências em geral, as quais se diferenciam das humanas só segundo o grau, ou seja, a essência em si delas é algo absolutamente livre, quer dizer, é uma VONTADE. O quão fecunda é esta intelecção, unida com a doutrina de Kant da idealidade do espaço, do tempo e da causalidade, isso se segue da minha obra. [MVR1: Apêndice: Crítica da Filosofia Kantiana]

Não introduzi sub-repticiamente a coisa em si nem a inferi segundo leis que a excluem, na medida em que estas já pertencem à sua aparência, nem cheguei a ela por caminhos tortuosos; ao contrário, demonstrei-a diretamente ali onde está imediatamente, a saber, na VONTADE que se manifesta imediatamente a cada um como em si de sua própria aparência. [MVR1: Apêndice: Crítica da Filosofia Kantiana]

Além do mais, o objetivo visado, a solução da terceira antinomia pela decisão de que os dois lados, cada um em sentido diferente, têm razão, não foi alcançado. Pois tanto a tese quanto a antítese de maneira alguma falam da coisa em si, mas pura e simplesmente da aparência, do mundo objetivo, do mundo como representação. É este, e absolutamente nada mais, o que a tese, mediante o sofisma mostrado, quer demonstrar que conteria causas incondicionadas, e é também em relação a este mundo que a antítese nega, com razão, que contenha causas incondicionadas. Por isso toda a exposição da liberdade transcendental da VONTADE na medida em que é coisa em si, dada aqui como justificativa da tese, por mais excelente que seja, é, todavia, propriamente dizendo, apenas uma transição para outro gênero Pois a exposta liberdade transcendental da VONTADE não é de modo algum a causalidade incondicionada de uma causa, afirmada pela tese, porque uma causa tem de ser essencialmente aparência, não algo toto genere diferente e que se encontra além de toda aparência. [MVR1: Apêndice: Crítica da Filosofia Kantiana]

A refutação da prova COSMO LÓGICA é uma aplicação a um caso dado da doutrina da crítica até ali exposta, e nada há a dizer contra. — A prova FÍSICO- TEOLÓGICA é uma mera amplificação da prova cosmológica que aquela pressupõe e encontra sua refutação detalhada só na Crítica da faculdade de juízo. Em referência a isso remeto aqui o meu leitor à rubrica “Anatomia comparada” no meu escrito sobre a Sobre a VONTADE na natureza. KANT, como disse, ocupa-se em sua crítica destas provas tendo em mente tão somente a teologia especulativa e limita-se à escola. Se, por outro lado, também tivesse em vista a vida e a teologia popular, teria acrescentado às três provas ainda uma quarta, que para a grande massa é propriamente a única eficaz e que, do modo mais condizente à terminologia de Kant, poderia ser denominada prova KERAUNOLÓGICA. É aquela que se baseia no sentimento de necessidade e ajuda, de impotência e dependência do ser humano em face das forças da natureza, infinitamente superiores, insondáveis e muitas vezes ameaçadoras; ao que ainda se associa a inclinação natural do ser humano a personificar tudo, e, por fim, a esperança em conseguir algo por súplicas e oferendas. Em cada empreendimento humano há algo que não está em nosso poder e não pode entrar em nosso cálculo: o desejo de ganhar isto para si é a origem dos deuses. Primus in orbe   Deos fecit timor é uma antiga e verdadeira sentença de Petrônio. Sobretudo HUME   critica essa prova e ele se apresenta em todos os aspectos, nos escritos acima mencionados, como precursor de Kant. — Ora, aqueles a quem Kant colocou em permanente embaraço através de sua crítica da teologia especulativa foram os professores de filosofia. Recebendo seus soldos de governos cristãos, não podiam renunciar aos principais artigos de fé. [MVR1: Apêndice: Crítica da Filosofia Kantiana]

Até KANT havia realmente um dilema estabelecido entre materialismo e teísmo, vale dizer, entre a assunção de que um acaso cego, ou uma inteligência ordenadora de fora segundo fins e conceitos, tinha produzido o mundo, neque dabatur tertium. Por isso ateísmo e materialismo eram a mesma coisa: daí a dúvida se poderia existir um ateu, isto é, uma pessoa que pudesse realmente confiar ao acaso cego a tão extraordinária ordenação finalista da natureza, em especial a orgânica: veja-se por exemplo os Essays de Bacon, On atheism. Na opinião da grande massa e dos ingleses, que nestas questões pertencem inteiramente à grande massa, a questão ainda se encontra no mesmo estágio, inclusive em relação aos seus eruditos mais famosos. Apenas se veja a Ostéologie comparte de R. Owen, nas quais ainda está diante do velho dilema entre, de um lado, Demócrito e Epicuro e, de outro, uma inteligência em que la connaissance d un être tel que l homme a existé avant que l homme fit son apparition. Toda finalidade tem de provir de uma INTELIGÊNCIA: duvidar disso nunca lhe ocorreu, mesmo em sonho. De fato, na preleção lida em 5 de setembro de 1853 na Académie des Sciences sobre esse prefácio, um pouco modificado, diz com infantil ingenuidade: La téléologie, ou la théologie scientifique, eis aí para ele imediatamente uma única e mesma coisa! Se algo na natureza é conforme fins, é uma obra da intenção, da ponderação, da inteligência. Ora, que tem a ver com tal inglês e com a Académie des Sciences a Crítica da faculdade de juízo ou até mesmo meu livro Sobre a VONTADE na natureza. Com sua tamanha profundidade não conseguem esses senhores olhar para baixo. Tais illustres confreres desprezam de fato a metafísica e a philosophie allemande. Atêm-se à filosofia de velhas senhoras que tricotam. A validade daquela premissa maior disjuntiva, daquele dilema entre materialismo e teísmo, assenta-se na asserção de que o mundo existente diante de nós é o das coisas em si, por conseguinte não existiria outra ordem de coisas senão a empírica. Porém, depois que o mundo e a sua ordenação tornou-se, via Kant, mera aparência, cujas leis encontram-se principalmente nas formas de nosso intelecto, a existência e a essência das coisas e do mundo não precisam mais ser explanadas conforme analogia das mudanças percebidas ou efetuadas por nós NO mundo, nem aquilo que apreendemos como meio e fim teria nascido em consequência de tal conhecimento. Portanto, Kant, privando o teísmo de seu fundamento mediante a importante distinção entre aparência e coisa em si, abriu, por outro Banco, o caminho para explanações completamente diversas e mais profundas sobre a existência. [MVR1: Apêndice: Crítica da Filosofia Kantiana]

O conteúdo do “dever” absoluto, lei fundamental da razão prática, é, pois, o famoso: “Age de tal maneira que a máxima de tua VONTADE possa sempre valer ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal”. — Semelhante princípio fornece, a quem demanda um regulativo para a própria VONTADE, a tarefa de procurar um princípio para a VONTADE de todos. — Surge, em seguida, a questão de como se pode encontrar semelhante regulativo. Obviamente devo, para descobrir a regra de minha conduta, levar em conta não apenas a mim mesmo, mas ainda o conjunto de todos os indivíduos. Com isso, em vez de meu bem-estar, o bem-estar de todos sem distinção se torna o meu fim. No entanto, este permanece sempre bem-estar. Descubro, então, que todos só podem sentir-se igualmente bem se cada um fizer do egoísmo alheio o limite do próprio egoísmo. Daí se segue naturalmente que não devo injuriar ninguém, porque, se este princípio for assumido como universal, também não serei injuriado. Este, porém, é o único fundamento pelo qual eu, ainda não tendo um princípio moral, mas apenas procurando um, posso desejá-lo como lei universal. Mas, manifestamente, dessa forma, o desejo pelo bem-estar, noutras palavras, o egoísmo, permanece a fonte do princípio ético. Como base da ciência do Estado isso seria excelente, mas como base da ética é sem valor. Pois quem almeja estabelecer um regulativo para a VONTADE de todos — exatamente o que é proposto por aquele princípio moral — precisa ele mesmo necessariamente de um regulativo, do contrário tudo lhe seria indiferente. Esse regulativo, todavia, só pode ser o próprio egoísmo. Apenas sobre este a conduta de outrem exerce influência, por conseguinte, apenas por meio dele, levando-o em consideração, pode alguém ter uma VONTADE concernindo à conduta de outrem e assim esta não lhe ser indiferente. Kant mesmo, muito ingenuamente, dá isto a conhecer,a Crítica da razão prática, em que assim expõe a procura da máxima da VONTADE: “Se cada um olhasse a necessidade do outro com total indiferença e TU PERTENCESSES a uma tal ordem de coisas, terias nisto consentido?” — Quam temere in nosmet legem sancimus iniquam! seria o regulativo do consentimento requerido. Igualmente na Fundamentação da metafísica dos costumes: “Uma VONTADE que resolvesse não prestar assistência a ninguém na necessidade entraria em contradição consigo mesma, pois podem ocorrer casos nos quais NECESSITA DO AMOR E DA AJUDA DOS OUTROS”, e assim por diante. Este princípio da ética que, por consequência, examinado mais de perto, nada é senão uma expressão indireta e floreada do antigo e simples princípio quod tibi fieri non vis, alteri ne feceris, refere-se primária e imediatamente ao passivo, ao sofrimento, e só assim, por meio disso, ao agir. Por conseguinte, como dissemos, é muito útil como fio condutor para a instituição do ESTADO, o qual é dirigido à prevenção do SOFRER INJUSTIÇA e gostaria de proporcionar a cada um e a todos a maior soma de bem-estar; contudo, na ética — em que o objeto de investigação é o AGIR enquanto AGIR em sua significação imediata para o AGENTE, não a sua consequência, o sofrimento, ou a sua referência a outros — aquela consideração não é de modo algum admissível, na medida em que, no fundo, cai outra vez no princípio de felicidade, portanto no egoísmo. [MVR1: Apêndice: Crítica da Filosofia Kantiana]

Na crítica da faculdade de juízo TELEOLÓGICA pode-se, devido à simplicidade do assunto, reconhecer mais do que em qualquer outra parte o raro talento kantiano em girar um pensamento daqui para acolá, expressá-lo de diversas formas, até que surja um livro. Todo O livro quer dizer apenas uma coisa: embora os corpos organizados necessariamente apareçam a nós como se fossem compostos segundo um conceito prévio de finalidade, de modo algum temos a autorização de assumir isto objetivamente. Pois nosso intelecto, ao qual as coisas são dadas de fora, e que portanto jamais conhece o interior delas mediante o qual nascem e existem, mas só o seu lado exterior, não pode tornar apreensível uma certa índole própria aos produtos orgânicos da natureza, a não ser por analogia, na medida em que os compara com as obras humanas produzidas intencionalmente, cuja índole é determinada por um conceito de finalidade. Essa analogia é suficiente para nos tornar compreensível a concordância de todas as suas partes com o todo e assim serve como fio condutor para sua investigação, mas de maneira alguma a analogia pode ser tomada como fundamento de explanação da origem e da existência de tais corpos. A necessidade de assim os conceber é de origem subjetiva. — É aproximadamente assim que eu resumiria o ensinamento de Kant. No principal ele já o expos na Crítica da razão pura. No entanto, também no reconhecimento DESTA verdade encontramos em David   Hume o merecidamente célebre precursor de Kant: também Hume já havia contestado severamente aquela assertiva na segunda parte de seu Dialogues Concerning Natural Religion. A diferença entre a crítica humeana e a kantiana referente àquela assertiva consiste principalmente no fato de Hume a criticar como uma hipótese apoiada na experiência, enquanto Kant, ao contrário, como apriorística. Ambos têm razão e suas exposições se complementam. Sim, o essencial do ensinamento kantiano sobre o tema já encontramos expresso no comentário de Simplício   à física de Aristóteles Error iis ortus est ex eo, quod credebant, omnia, quae propter finem aliquem fierent, ex proposito et ratiocinio fieri, dum videbant, naturae opera non ita. Kant tem plena razão no assunto: também era necessário que, após ter sido mostrado que o conceito de causa e efeito não se aplica ao todo da natureza em geral segundo sua existência, também fosse mostrado que, conforme sua índole, a natureza não pode ser pensada como efeito de uma causa guiada por motivos. Caso se pense na grande plausibilidade da prova físico-teológica, que até mesmo VOLTAIRE considerava irrefutável, era da maior importância mostrar que o subjetivo de nossa apreensão, para o qual Kant reivindicou espaço, tempo e causalidade, estende-se também ao nosso julgamento dos corpos naturais e, por conseguinte, a necessidade que sentimos em pensá-los como surgidos premeditadamente segundo conceitos de finalidade, logo, por uma via ONDE A REPRESENTAÇÃO DOS MESMOS TERIA PRECEDIDO SUA EXISTÊNCIA, é de origem tão subjetiva quanto a intuição do espaço a expor-se objetivamente, a qual, entretanto, não pode valer como verdade objetiva. A discussão kantiana do assunto, tirante a prolixidade e repetição cansativas, é admirável. Com razão afirma que jamais chegaremos a explicar a índole dos corpos orgânicos a partir de simples causas mecânicas, entre as quais entende o efeito não intencional e regular de todas as forças universais da natureza. Contudo, ainda uma lacuna se encontra ali. Kant nega essa possibilidade de explicação só no que tange à finalidade e à intencional idade aparente dos corpos ORGÂNICOS. Nós, entretanto, achamos que também onde isso não tem lugar, os fundamentos de explanação não podem ser transferidos de UM domínio da natureza para outro, mas, tão logo entramos em um novo domínio, eles nos abandonam e, no lugar deles, entram em cena novas leis fundamentais, cuja explanação não se pode de maneira alguma esperar daquelas pertencentes ao domínio anterior. Assim, no domínio do mecânico propriamente dito regem as leis de gravidade, coesão, rigidez, fluidez, elasticidade, as quais em si existem como exteriorizações de forças não mais explicáveis, mas constituem elas mesmas os princípios de toda ulterior explicação, que consiste meramente numa remissão a elas. Caso deixemos esse domínio e passemos às aparências do quimismo, eletricidade, magnetismo, cristalização, aqueles princípios não são mais utilizáveis, sim, aquelas leis não valem mais. Essas forças são dominadas por outras, e as aparências entram em contradição direta com elas, segundo novas leis fundamentais, que, precisamente como as primeiras, são originárias e inexplicáveis, isto é, não mais remissíveis a leis mais universais. Assim, por exemplo, jamais conseguiremos explicar, segundo as leis do mecanismo propriamente dito, a solução de um sal na água, para não mencionar as aparências mais complicados da química. No segundo livro do presente escrito tudo isso foi exposto detalhadamente. Uma elucidação desse tipo, ao que me parece, teria sido de grande serventia na crítica da faculdade de juízo teleológica, e teria espalhado muita luz sobre o ali dito. Semelhante elucidação teria sido especialmente favorável à excelente indicação kantiana de que um conhecimento mais profundo da essência em si, cuja aparência são as coisas na natureza, indicaria, tanto no fazer-efeito mecânico, conforme leis, quanto no fazer-efeito aparentemente intencional da natureza, um único e mesmo princípio último, o qual poderia servir como fundamento comum para a explicação de ambos. Espero ter fornecido tal princípio mediante o estabelecimento da VONTADE como a coisa em si propriamente dita; em geral, de acordo com isso, em nosso segundo livro e em seus suplementos, mas sobretudo no meu escrito Sobre a VONTADE na natureza, talvez tenha-se tornado mais clara e profunda. a intelecção na essência íntima da aparente finalidade e na harmonia e consonância de toda a natureza. Eis por que nada mais tenho a falar aqui sobre o assunto. [MVR1: Apêndice: Crítica da Filosofia Kantiana]