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Schopenhauer (MVR1): aparência da vontade

quinta-feira 25 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

  

O sujeito que conhece é indivíduo exatamente em sua referência especial a um corpo que, considerado fora de tal referência, é apenas uma representação igual a qualquer outra. No entanto, a referência em virtude da qual o sujeito que conhece é INDIVÍDUO se dá exclusivamente entre ele e uma única de suas representações; daí, portanto, não estar consciente dessa única representação apenas como uma mera representação, mas ao mesmo tempo de modo inteiramente outro, vale dizer, como uma vontade. Contudo, caso abstraia aquela referência, aquele conhecimento duplo e completamente heterogêneo de uma única e mesma coisa, então aquela coisa única, o corpo, é uma representação como qualquer outra. Por conseguinte, o indivíduo que conhece, para orientar-se neste ponto, ou tem de assumir que o distintivo daquela representação se encontra meramente no fato de seu conhecimento estar nessa dupla referência apenas para com tal única representação, e que apenas nesse ÚNICO objeto intuitivo se abre ao mesmo tempo para ele uma intelecção de dois tipos, sem que isto se explique pela diferença desse objeto em face de todos os demais, mas apenas pela diferença da relação de seu conhecimento com esse único objeto e pela relação de seu conhecimento com os demais objetos; ou tem de assumir que semelhante único objeto é essencialmente diferente de todos os outros e só ele é ao mesmo tempo vontade e representação, já os objetos restantes, ao contrário, são meras representações, vale dizer, meros fantasmas e com isso tem de assumir que seu corpo é o único indivíduo real no mundo, isto é, a única APARÊNCIA DA VONTADE e o único objeto imediato do sujeito. — Ora, que os outros objetos, considerados como meras REPRESENTAÇÕES, são iguais ao seu corpo, isto é, preenchem como este o espaço e também fazem efeito nele, eis aí algo demonstrável com certeza pela lei de causalidade, válida a priori para as representações, e que não admite efeito algum sem causa: contudo, abstraindo-se o fato de que se pode inferir do efeito somente uma causa em geral, não uma causa igual, ainda estamos no domínio da mera representação, para a qual exclusivamente vale a lei de causalidade e que nunca nos leva além daquela. Se, entretanto, os objetos conhecidos pelo indivíduo simplesmente como representação ainda são, semelhantemente ao seu corpo, aparências de uma vontade — eis aí, como dissemos no livro precedente, o sentido propriamente dito da questão acerca da realidade do mundo exterior: negá-lo é justamente o sentido do EGOÍSMO TEÓRICO, que considera todas as aparências, exceto o próprio indivíduo, como fantasmas; o mesmo faz o egoísmo prático em termos práticos, ou seja, trata apenas a própria pessoa como de fato real, todas as outras sendo consideradas e tratadas como meros fantasmas. O egoísmo teórico, em realidade, nunca é refutado por demonstrações: na filosofia, contudo, foi empregado apenas como sofisma cético, ou seja, como encenação. Enquanto convicção séria, ao contrário, só pode ser encontrado nos manicômios; e, como tal, precisa não tanto de uma refutação, mas de uma cura. Por conseguinte, não nos deteremos nele, mas o olharemos exclusivamente como a última fortaleza do ceticismo, que sempre é polêmico. Portanto, se o conhecimento, sempre ligado à individualidade e justamente por isso tendo nela a sua limitação, traz consigo necessariamente que cada um pode SER apenas uma coisa, porém pode CONHECER tudo o mais, limitação esta que justamente cria a necessidade da filosofia, então nós, que procuramos pela filosofia ampliar os limites do nosso conhecimento, veremos aquele argumento cético que nos foi aqui contraposto como um pequeno forte de fronteira, que não se pode assaltar, mas do qual a guarnição nunca sai, podendo-se por conseguinte passar por ele e dar-lhe as costas sem perigo. [MVR1: §19]

A natureza sem fundamento da vontade também foi efetivamente reconhecida ali onde ela se manifesta da maneira mais nítida como vontade do ser humano, tendo sido neste caso denominada livre e independente. Porém, para além da natureza sem fundamento da vontade esqueceu-se da necessidade à qual a sua aparência está submetida e explicaram-se os atos humanos como livres, coisa que eles não são, já que cada ação isolada se segue com estrita necessidade a partir do efeito provocado pelo motivo sobre o caráter. Toda necessidade, como já dito, é relação de consequência a fundamento e nada mais. O princípio de razão é a forma universal de toda aparência; e a ação do ser humano, como qualquer outra aparência, tem de estar submetida ao princípio de razão. Entretanto, por ser a vontade conhecida imediatamente, em si mesma, na consciência de si, também se encontra nessa consciência a consciência da liberdade. Contudo, esquece-se que o indivíduo, a pessoa, não é vontade como coisa em si, mas como APARÊNCIA DA VONTADE, e enquanto tal já é determinado e surge na forma da aparência, o princípio de razão. Daí advém o fato notável de que cada um considera a priori a si mesmo como inteiramente livre, até mesmo em suas ações isoladas, e pensa que poderia a todo instante começar outro decurso de vida, o que equivaleria a tornar-se outrem. No entanto, só a posteriori, por meio da experiência, percebe, para sua surpresa, que não é livre, mas está submetido à necessidade; percebe que, apesar de todos os propósitos e reflexões, não muda sua conduta e desde o início até o fim de sua vida tem de conduzir o mesmo caráter por ele próprio às vezes execrado e, por assim dizer, desempenhar até o fim o papel que lhe coube. Não posso aqui prosseguir no desenvolvimento dessa consideração, pois ela, enquanto ética, pertence a outro lugar do presente escrito. Gostaria no momento apenas de indicar que, embora à vontade em si seja sem fundamento, a sua APARÊNCIA, entretanto, está submetida à lei de necessidade, isto é, ao princípio de razão; insisto em tal ponto para que a necessidade com que as aparências da natureza se seguem umas às outras não seja obstáculo para reconhecer nelas as manifestações da vontade. [MVR1: §23]

Até agora se considerou como APARÊNCIA DA VONTADE apenas aquelas mudanças que não têm outro fundamento senão o motivo, ou seja, uma representação; daí ter-se atribuído na natureza somente ao ser humano uma vontade e, quando muito, aos animais; pois o conhecer, o representar, como mostrei em outro lugar, é com certeza o autêntico e exclusivo caráter da animalidade. Todavia, que a vontade também atue lá onde não é guiada por conhecimento algum, podemos vê-lo sobretudo no instinto e no impulso industrioso dos animais. Aqui não se leva em conta que estes tenham representações e conhecimento, pois o fim para o qual agem, como se fosse um motivo conhecido, permanece-lhes inteiramente desconhecido; eis por que sua ação acontece aqui sem motivo, sem ser conduzida pela representação, mostrando-nos da maneira mais nítida como a vontade também é ativa sem nenhum conhecimento. O pássaro de um ano não tem representação alguma dos ovos para o qual constrói um ninho; nem a jovem aranha tem da presa para a qual tece uma teia; nem a formiga-leão da formiga para a qual prepara um buraco pela primeira vez; a larva do escaravelho abre na madeira o buraco onde sofrerá sua metamorfose e de tal modo que o buraco será duas vezes maior no caso de a larva tornar-se um besouro macho, em vez de fêmea, pois no primeiro caso deve haver lugar suficiente para as suas antenas, da qual ainda não possui representação alguma. Nas ações desses animais, bem como em outras, a vontade é sem dúvida ativa: porém se trata de uma atividade cega, que até é acompanhada de conhecimento, mas não é guiada por ele. Se obtivermos de uma vez por todas a intelecção do fato de que a representação enquanto motivo não é de modo algum condição necessária e essencial para a atividade da vontade, facilmente reconheceremos a atuação da vontade em casos menos evidentes. Assim, por exemplo, a casa do caracol não será atribuída a uma vontade que é estranha ao caracol e guiada pelo conhecimento, do mesmo modo que não atribuiremos a existência da casa por nós mesmos construída a uma vontade estranha; porém, as duas casas serão consideradas como obras da vontade que se objetiva nas duas aparências, contudo em nós atuando conforme motivos, no caracol, no entanto, atuando cegamente como impulso formativo direcionado para fora. Em nós, a mesma vontade também atua cegamente e de diversas maneiras: em todas as funções do corpo não guiadas por conhecimento, em todos os seus processos vitais e vegetativos: digestão, circulação sanguínea, secreção, crescimento, reprodução. Não só as ações do corpo, mas ele mesmo, como mostrado anteriormente, é no todo APARÊNCIA DA VONTADE; noutros termos, vontade objetivada, concreta. Portanto, tudo o que nele ocorre tem de ocorrer mediante vontade, embora aqui a vontade não seja conduzida por conhecimento, não seja determinada por motivos, mas atue cegamente segundo causas, nesse caso chamadas ESTÍMULOS. [MVR1: §23]

25. Sabemos que a PLURALIDADE em geral é necessariamente condicionada por tempo e espaço e só é pensável nestes, os quais, nesse sentido, denominamos principium individuationis. Todavia, reconhecemos tempo e espaço como formas do princípio de razão, no qual está expresso todo o nosso conhecimento a priori, que, contudo, como explicado antes, justamente como tal diz respeito apenas à cognoscibilidade das coisas, não a elas mesmas, ou seja, é apenas forma de nosso conhecimento, não propriedade da coisa em si, que, enquanto tal, é livre de todas as formas do conhecimento, mesmo a mais universal, o ser-objeto para o sujeito; noutros termos, a coisa em si é completamente diferente da representação. Se a coisa em si, como acredito ter demonstrado de modo claro e suficiente, é a VONTADE, então esta, considerada nela mesma e apartada de sua aparência, permanece exterior ao tempo e ao espaço; por conseguinte não conhece pluralidade alguma, portanto é UNA; mas, como já disse, una não no sentido de que um indivíduo ou um conceito é uno; mas como algo que é alheio àquilo que possibilita a pluralidade, o principium individuationis. Por consequência, a pluralidade das coisas no espaço e no tempo, que em conjunto são sua OBJETIDADE, não concerne à vontade, e ela, apesar dessa pluralidade, permanece indivisa. Não é como se houvesse uma parte menor da vontade na pedra e uma maior no ser humano pois a relação entre parte e todo pertence exclusivamente ao espaço e perde todo o seu sentido quando nos despimos dessa forma de intuição. Mais e menos concernem somente à aparência, isto é, à visibilidade, à objetivação: esta possui um grau maior na planta que na pedra, um grau maior no animal que na planta, sim, o aparecimento da vontade na visibilidade, sua objetivação, possui tantas infinitas gradações como a existente entre a mais débil luz crepuscular e a mais brilhante luz solar, entre o som mais elevado e o eco mais distante. Depois voltaremos à consideração desses graus de visibilidade pertencentes à objetivação da vontade, ao reflexo de sua essência. Ora, assim como as gradações de sua objetivação não lhe dizem respeito imediatamente, diz-lhe menos respeito ainda a pluralidade das aparências nesses diferentes graus; por outras palavras, a multidão de indivíduos de todo tipo ou as exteriorizações isoladas de cada força não lhe concernem, pois essa pluralidade é condicionada imediatamente por tempo e espaço, nos quais a vontade mesma nunca entra em cena. A vontade manifesta-se no todo e completamente tanto em UM quanto em milhões de carvalhos: o número deles, sua multiplicação no espaço e no tempo, não possui significação alguma em referência a ela, mas só em referência à pluralidade dos indivíduos que conhecem no espaço e no tempo e aí mesmo são multiplicados e disperses. Tal pluralidade atinge apenas a APARÊNCIA DA VONTADE, não ela mesma. Por isso também se poderia afirmar que, se per impossibile um único ser, mesmo o mais ínfimo, fosse completamente aniquilado, com ele teria de sucumbir o mundo inteiro. Tomado desse sentimento o grande místico Angelus Silesius   diz: Sei que sem mim Deus não pode viver um instante sequer / Se eu for aniquilado, também o seu espírito se esvaece. [MVR1: §25]

Talvez não fosse supérfluo tornar ainda mais distinto mediante um exemplo como a lei de causalidade tem significação só em referência ao tempo, ao espaço e à matéria, que consiste na união de ambos. A lei de causalidade determina os limites conforme os quais as aparências das forças naturais se distribuem na posse pela matéria, enquanto as forças naturais e originárias, elas mesmas, como objetivações imediatas da vontade, que como coisa em si não está submetida ao princípio de razão, encontram-se fora daquelas formas; apenas internamente a essas formas é que uma explanação etiológica tem significação e validade: justamente por isso a explanação etiológica nunca pode conduzir à essência íntima da natureza. — Nesse sentido, pense-se numa máquina construída de acordo com as leis da mecânica. Peças de ferro desencadeiam por sua gravidade o início do movimento; rodas de cobre resistem com sua rigidez, impelem-se e levantam-se mutuamente e às alavancas, em virtude de sua impenetrabilidade, e assim por diante. Aqui, gravidade, rigidez e impenetrabilidade são forças originárias, inexplicáveis: a mecânica fornece apenas as condições e a maneira pelas quais essas forças exteriorizam-se e aparecem, dominando determinada matéria, determinado tempo e lugar. Agora vamos supor que um poderoso ímã faz efeito sobre o ferro das peças, dominando a gravidade; o movimento da máquina para e a matéria é de súbito o palco de uma força natural completamente diferente, o magnetismo, sobre o qual a explanação etiológica nada mais informa que as condições de seu aparecimento. Ou, ainda, suponha-se que colocamos os discos de cobre da máquina sobre placas de zinco e entre elas introduzimos uma solução ácida; de imediato a mesma matéria da máquina sucumbe a outra força originária, o galvanismo, que a domina segundo suas leis, manifestando-se através de suas aparências, sobre as quais a etiologia só nos pode informar as circunstâncias e as leis em que se mostram. Em seguida, aumentemos a temperatura e adicionemos oxigênio puro: toda a máquina arde: noutros termos, de novo uma força natural completamente diferente, o quimismo, exerce neste tempo e neste lugar seus direitos incontestáveis sobre a matéria, manifestando-se como ideia, ou seja, como grau determinado de objetivação da vontade. — O óxido metálico resultante dessa queima combina-se com um ácido: sal e cristais são formados: tem-se, assim, o aparecimento de outra ideia, que por sua vez é também no todo infundada, embora o seu aparecimento dependa daquelas condições que a etiologia pode relatar. Os cristais desintegram-se, misturam-se com outros estofos, uma vegetação ergue-se deles: nova APARÊNCIA DA VONTADE: — e assim pode-se acompanhar, ao infinito, a mesma e permanente matéria, e ver como ora esta ora aquela força natural adquire direito sobre ela e o exerce inexoravelmente em vista de irromper e manifestar a sua essência. A determinação desse direito — o ponto no tempo e no espaço em que ele é válido — é dada pela lei de causalidade; mas a explanação baseada nesta lei não vai além disso. A força mesma é APARÊNCIA DA VONTADE e, enquanto tal, não está submetida às figuras do princípio de razão, ou seja, é sem fundamento. A força encontra-se fora de todo tempo, é onipresente e, por assim dizer, parece constantemente esperar a entrada em cena das circunstâncias nas quais possa irromper e apoderar-se de uma determinada matéria, reprimindo nela a força que até então a dominava. O tempo existe apenas para a aparência dessa força e é sem significação para a força mesma. Por milênios dormitam numa dada matéria as forças químicas, até que o contato de reagentes as libera e as faz aparecer: o tempo, porém, existe somente para esta aparência, não para a força mesma. Por milênios o galvanismo dormita no cobre e no zinco, os quais repousam tranquilos ao lado da prata, que arde em chamas logo após os três metais entrarem em contato sob requeridas condições. Até mesmo no reino orgânico uma semente seca pode conservar por três mil anos a sua força latente, a qual, quando finalmente aparecem circunstâncias favoráveis, cresce como planta. [MVR1: §26]

Como o conhecimento genial, ou conhecimento da ideia, é aquele que não segue o princípio de razão e, por sua vez, o conhecimento que segue este princípio confere prudência e racionalidade na vida e possibilita a ciência, segue-se que os indivíduos geniais estão sujeitos a carências ligadas à negligência desta última forma de conhecimento. Aqui, todavia, deve-se fazer uma restrição: o que digo só vale na medida em que tais indivíduos se encontram realmente imersos no modo de conhecimento genial, o que de maneira alguma ocorre em todos os momentos de suas vidas, pois a grande, embora espontânea, tensão exigida para a apreensão, livre de vontade, das ideias tem de necessariamente ser de novo abandonada e há grandes espaços intermédios nos quais o indivíduo de gênio, tanto no que diz respeito aos méritos quanto às carências, em muito se aproxima do indivíduo comum. Eis por que sempre se considerou o fazer-efeito da pessoa de gênio como uma inspiração, sim, como o próprio nome indica, como o fazer-efeito de um ser supra-humano diferente do próprio indivíduo e que apenas periodicamente se apossa dele. A aversão do gênio em direcionar a sua atenção ao conteúdo do princípio de razão mostra-se primeiro, em relação ao fundamento do ser, como aversão à matemática, cuja consideração segue as formas mais gerais da aparência, isto é, segue espaço e tempo, que são apenas figuras do princípio de razão; disso resulta uma consideração completamente contrária àquela que procura só o conteúdo da aparência, ou seja, a ideia que nela se expressa livre de todas as relações. Ademais, o tratamento lógico da matemática contraria o gênio, já que este tratamento obscurece a intelecção propriamente dita, sem satisfazer, mas apenas dando uma simples cadeia de conclusões conforme o princípio de razão do conhecer, absorvendo dentre todas as faculdades do espírito principalmente a memória, para sempre ter em mente todos os primeiros princípios que servem como premissas. A experiência também confirmou que grandes gênios da arte não tinham talento para a matemática: nunca uma pessoa foi eminente ao mesmo tempo em ambas. Alfieri, inclusive, conta que jamais conseguiu compreender nem a quarta proposição de Euclides  . Goethe   foi bastante repreendido pelos adversários obscurantistas de sua doutrina das cores devido ao seu desconhecimento da matemática: aqui, naturalmente, por não se tratar de cálculos e medidas segundo dados hipotéticos, mas de conhecimento imediato, via entendimento, da causa e do efeito, essa repreensão foi feita em lugar tão indevido e conduzida tão ao revés que esses senhores revelaram, bem como por seus demais ditos de Midas, sua carência completa de faculdade de juízo. Que ainda hoje, quase meio século após a publicação da doutrina das cores de Goethe, as falácias newtonianas ainda permaneçam intocadas nas cátedras professorais, até mesmo na Alemanha, e as pessoas continuem a falar seriamente das sete cores homogêneas e dos seus diferentes índices de refração, eis algo para ser um dia computado entre as grandes curiosidades intelectuais da humanidade em geral e da Alemanha em particular. —A partir do mesmo motivo acima mencionado, explica-se também o fato igualmente conhecido de que matemáticos distintos têm pouca receptividade às obras da bela arte, algo que se expressa de maneira particularmente ingênua na conhecida anedota acerca de um matemático francês que, após ter lido Ifigênia, de Racine, perguntou: quest-ce que cela prouve? — A apreensão sagaz das relações conforme a lei de causalidade e de motivação torna propriamente alguém prudente; o conhecimento do gênio, no entanto, não está orientado para tais relações; por isso um prudente, enquanto for prudente, não é genial, e um gênio, enquanto for gênio, não é prudente. — Por fim, o conhecimento intuitivo, em cujo domínio encontra-se a ideia absolutamente, está, em geral, numa oposição direta ao conhecimento racional ou abstrato conduzido pelo princípio de razão do conhecer. Todos sabem que é raro encontrar grande genialidade de par com racionalidade proeminente, mas antes, ao contrário, indivíduos geniais muitas vezes estão submetidos a afetos veementes e paixões irracionais. O fundamento disso, todavia, não é a fraqueza da razão, mas em parte reside na energia incomum de todo a APARÊNCIA DA VONTADE que é o indivíduo genial e que se exterioriza pela grande veemência de todos os seus atos volitivos; em parte também reside no fato de, no gênio, o conhecimento intuitivo ser preponderante, em relação ao abstrato, via sentidos e entendimento; daí a decidida orientação ao que é intuitivo, sendo a impressão deste conhecimento tão enérgica que ofusca os conceitos incolores, o agir não sendo mais orientado por esses conceitos, mas por aquela impressão, tornando-se assim irracional: devido a isso, a impressão do presente é bastante poderosa sobre o gênio, arrasta-o para o irrefletido, o afeto, a paixão. Daí também o fato de o gênio — já que, via de regra, o seu conhecimento subtraiu-se em parte ao serviço da vontade — não pensar quando trava um diálogo tanto na pessoa com quem fala quanto no tema em discussão, que tão vivamente o envolve: eis por que, também, ele julga e narra de maneira extremamente objetiva aquilo que diz respeito aos seus próprios interesses, sem ocultar o que seria prudente ocultar etc. Finalmente, inclinam-se a monólogos e podem em geral mostrar muitas fraquezas que de fato beiram a loucura. Que a genialidade e a loucura têm um lado que fazem fronteira, sim, confundem-se, eis aí algo que foi frequentemente notado e até mesmo o entusiasmo poético foi denominado uma espécie de loucura: amabilis insânia é como a denomina Horácio. Na introdução a Oberon, Wieland fala de uma “doce loucura”. Mesmo Aristóteles, segundo Sêneca, disse: Nullum magnum ingenium sim mixtura dementiae juit. Platão expressou isso no antes mencionado mito da caverna escura, dizendo: aqueles que intuíram fora da caverna a verdadeira luz do Sol e as coisas que verdadeiramente são as ideias não mais conseguem ver no interior da caverna, pois seus olhos foram desacostumados à escuridão, e, portanto, não reconhecem as sombras lá de baixo; assim, por conta dos seus enganos, são objeto de escárnio daqueles que nunca se afastaram da caverna e dessas sombras. O filósofo também diz claramente no Fedro   que sem certa loucura não pode haver poeta autêntico; em verdade, todo aquele que conheceu as ideias eternas nas coisas efêmeras aparece como louco. Também Cícero afirma: Negat, sine furore, Democritus  , quemquam poetam magnum esse posse; quod idem dicit Piato. Por fim, Pope diz: Great wits to madness sure are near allied, / And thin partitions do their bounds divide. [MVR1: §36]

Assim como o ser humano é ímpeto tempestuoso e obscuro do querer, e ao mesmo tempo sujeito eterno, livre, sereno do puro conhecer, assim também, em conformidade com essa oposição, o Sol é fonte de LUZ, a condição do modo mais perfeito de conhecimento e, precisamente por isso, o que há de mais aprazível nas coisas, e simultaneamente ele é fonte de CALOR, a primeira condição de qualquer vida, isto é, de toda APARÊNCIA DA VONTADE em graus mais elevados. Assim, o que o calor é para a vontade, a luz é para o conhecimento. A luz é justamente por isso o maior diamante na coroa da beleza, e tem a mais decisiva influência no conhecimento de todo objeto belo: sua presença em geral é condição indispensável; seu posicionamento favorável incrementa até mesmo a beleza do que há de mais belo. Sobretudo o belo na arquitetura é incrementado pelo favorecimento da luz, com a qual inclusive a coisa mais insignificante se torna um belo objeto. — Ora, em meio ao inverno rigoroso, a toda natureza congelada, ao vermos os raios do Sol nascente refletirem-se na massa pétrea, iluminando-a sem aquecê-la, com o que apenas o modo mais puro de conhecimento é favorecido, não a vontade, a consideração do belo efeito da luz sobre essa massa nos coloca, como toda beleza, no estado do puro conhecer; aqui, entretanto, mediante a breve lembrança da ausência de aquecimento por aqueles raios, portanto do princípio vivificador, já é preciso certa elevação sobre o interesse da vontade, um pequeno esforço é exigido para permanecer no puro conhecimento, com desvio de todo querer, justamente por aí ocorrendo uma transição “ do sentimento do belo para o do sublime. Trata-se do matiz mais tênue do sublime no belo, este último a emergir aqui apenas em grau muito baixo. Um grau ainda quase tão baixo é o que se segue. [MVR1: §39]

Também se pode receber essa impressão do sublime matemático de uma maneira completamente imediata através de um espaço que, em comparação com a abóbada celeste, é pequeno, porém, por ser perceptível imediata e completamente, faz efeito sobre nós com sua inteira grandeza em todas as três dimensões, tornando a medida do nosso corpo quase que infinitamente pequena. Isso nunca pode ser ocasionado por um espaço vazio para a percepção, logo, por um espaço aberto, mas somente por um espaço imediatamente perceptível porque delimitado em todas as suas dimensões, portanto uma cúpula enorme e bastante alta, como a da catedral de São Pedro em Roma, ou a de São Paulo   em Londres. O sentimento do sublime nasce aqui pela percepção do nada desvanecedor do nosso próprio corpo em face de uma grandeza que, por seu turno, encontra-se apenas em nossa representação, e cujo sustentáculo somos nós como sujeito que conhece; por conseguinte, como em toda parte, o sentimento do sublime nasce aqui do contraste da insignificância e dependência do nosso si mesmo como indivíduo, APARÊNCIA DA VONTADE, com a consciência do nosso si mesmo como puro sujeito do conhecer. Mesmo a abóbada do céu estrelado, quando considerada sem reflexão, não atua diferentemente das abóbadas feitas de pedra, e assim apenas com a sua grandeza aparente, não com a sua grandeza real. — Muitos objetos de nossa contemplação despertam a impressão do sublime pelo fato de, tanto em virtude de sua grandeza espacial quanto de sua avançada antiguidade, portanto de sua duração temporal, fazerem que nos sintamos diante deles reduzidos a nada, não obstante deleitarmo-nos com a sua visão: desse tipo são as altíssimas montanhas, as pirâmides do Egito, as ruínas colossais da remota antiguidade. [MVR1: §39]

BELEZA HUMANA é uma expressão objetiva que significa a objetivação mais perfeita da vontade no grau mais elevado de sua cognoscibilidade: portanto, a ideia de ser humano em geral, plenamente expressa na forma intuída. Contudo, por mais que neste caso apareça o lado objetivo do belo, o lado subjetivo sempre permanece seu companheiro inseparável. Nenhum objeto atrai tão rapidamente para a intuição estética quanto o belo rosto e figura humanos, cuja visão nos arrebata instantaneamente com uma satisfação inexprimível e nos eleva por sobre nós mesmos e sobre tudo o que nos atormenta; o que só é possível exatamente porque essa cognoscibilidade mais clara e pura da vontade também nos coloca de maneira mais fácil e rápida no estado do puro conhecer, no qual nossa personalidade e querer, com seu continuado tormento, desaparecem, e isso pelo tempo em que a pura alegria estética mantiver-se: por isso Goethe diz: “Quem contempla a beleza humana não pode padecer de mal algum: sente-se em harmonia consigo mesmo e com o mundo”. — Que a natureza obtenha êxito em produzir uma bela figura humana, temos de explicá-lo pelo fato de que a vontade, ao objetivar-se nesse grau mais elevado num indivíduo, vence todas as adversidades, superando todos os obstáculos e resistências que os aparecimentos mais baixos da vontade opõem a este indivíduo, como, por exemplo, as forças naturais que se exteriorizam em toda a matéria; forças estas que primeiro têm de ser venci das e delas retirada a matéria que lhes pertencia. Ademais, a APARÊNCIA DA VONTADE nos graus mais elevados tem sempre a diversidade em sua forma: a árvore é tão somente um agregado sistemático de um sem-número de fibras repetidas e crescidas: essa composição de partes diversas torna-se cada vez mais complexa quanto mais avançamos, e o corpo humano é um sistema altamente complexo de partes por inteiro diferentes, cada uma das quais possuindo vida subordinada ao todo, porém própria, vita própria: que todas essas partes estejam convenientemente subordinadas entre si e ao todo, que conspirem de forma harmônica para a exposição dele e nada atrofiem nem hipertrofiem: eis aí as condições raras cujo resultado é a beleza, o caráter da espécie perfeitamente cunhado. Assim a natureza. E a arte? — Foi dito que esta se realiza por meio da imitação da natureza. — Como, entretanto, deverá o artista reconhecer sua obra excelsa e imitá-la, separando-a do que há de imperfeito, a não ser que antecipe o belo ANTES DA EXPERIÊNCIA? Alguma vez a natureza produziu um ser humano perfeitamente belo em todas as suas partes? — Foi dito que o artista tem de estudar muitas partes belas e esparsas entre os seres humanos e delas compor um belo todo: eis aí um disparate! Pois se pergunte mais uma vez: como o artista pode reconhecer que precisamente algumas dessas formas isoladas são belas e outras não? — Também vemos até onde chegaram na beleza os antigos pintores alemães imitando a natureza. Apenas se considere as suas figuras nuas. — Conhecimento algum do belo é possível de maneira puramente a posteriori e a partir da mera experiência: tal conhecimento é sempre em parte a priori, embora inteiramente diferente das formas do princípio de razão das quais estamos conscientes a priori. Estas dizem respeito à forma universal da aparência enquanto tal, na medida em que tal forma fundamenta a possibilidade do conhecimento em geral, o COMO universal e sem exceção de tudo o que aparece, daí surgindo a matemática e as ciências puras da natureza. Ao contrário, o outro modo de conhecimento a priori, que torna possível a exposição do belo, não diz respeito à forma do que aparece, mas ao seu conteúdo, não diz respeito ao seu COMO, mas ao seu QUÊ. O fato de todos reconhecerem a beleza caso a vejam, sendo que no caso do artista autêntico isso ocorre com tal nitidez que ele a mostra como nunca antes vira, e, por conseguinte, supera a natureza com sua exposição — tudo isso só é possível porque a vontade, cuja objetivação adequada em seu grau mais elevado deve aqui ser descoberta e julgada, SOMOS NÓS MESMOS. De fato, só dessa maneira temos uma antecipação daquilo que a natureza se esforçava por expor; antecipação esta que, no autêntico gênio, é acompanhada de tal grau de clarividência que ele reconhece nas coisas isoladas a ideia, como que ENTENDE A NATUREZA EM SUAS MEIAS PALAVRAS e, então, exprime puramente o que elas apenas balbuciam; ele imprime no mármore duro a beleza da forma em que a natureza fracassou em milhares de tentativas, coloca-a diante dela e lhe brada: “Eis o que querias dizer!”, para em seguida ouvir a concordância do conhecedor: “Era isso mesmo!”. Só assim os gregos geniais puderam descobrir o tipo arquetípico da figura humana e estabelecê-lo como cânone da escultura, também apenas devido à mesma antecipação é possível a todos reconhecer o belo lá onde a natureza o conseguiu efetiva e isoladamente. Semelhante antecipação é o IDEAL: é a ideia, na medida em que esta, pelo menos em parte, é conhecida a priori e, enquanto tal, complementando o que é dado a posteriori pela natureza, torna-se prática para a arte. A possibilidade de tal antecipação a priori do belo pelo artista, bem como seu reconhecimento a posteriori pelo espectador, reside no fato de ambos serem o mesmo Em si da natureza, a vontade que se objetiva. Pois, como disse Empédocles  , apenas pelo igual é o igual reconhecido: apenas a natureza pode entender a si mesma: apenas a natureza pode sondar a si mesma: mas também apenas pelo espírito é o espírito compreendido. [MVR1: §45]

Como a vontade é a coisa em si, o conteúdo íntimo, o essencial do mundo; e a vida, o mundo visível, a aparência, é seu espelho; segue-se daí que este mundo acompanhará a vontade tão inseparavelmente quanto a sombra acompanha o corpo: onde existe vontade existirá vida, mundo. Portanto, à Vontade de vida a vida é certa e, pelo tempo em que estivermos preenchidos de Vontade de vida, não precisamos temer por nossa existência, nem pela visão da morte. Decerto vemos o indivíduo nascer e perecer; entretanto, o indivíduo é apenas aparência, existe apenas para o conhecimento pertencente ao princípio de razão, o principium individuatiorris: da perspectiva deste conhecimento, o indivíduo ganha a sua vida como uma dádiva, surge do nada, e depois sofre a perda dessa dádiva através da morte, voltando ao nada. Todavia, como queremos considerar filosoficamente a vida, a saber, conforme suas ideias, notaremos que nem a vontade, a coisa em si em todas as aparências, nem o sujeito do conhecimento, o espectador de todas as aparências, são afetados de alguma maneira por nascimento e morte. Nascimento e morte pertencem exclusivamente à APARÊNCIA DA VONTADE, logo, à vida, à qual é essencial expor-se em indivíduos que chegam à existência e desaparecem; estes são aparências fugidias Daquilo que, apesar de aparecer na forma do tempo, em si mesmo não conhece tempo algum, porém tem de expor-se exatamente dessa maneira para assim objetivar a sua essência propriamente dita. Portanto, nascimento e morte pertencem igualmente à vida e equilibram-se como condições recíprocas, ou, caso se prefira a expressão, como pelos de todo aparecimento da vida. A mais sábia de todas as mitologias, a indiana, exprime isso dando ao Deus que simboliza a destruição e a morte, Siva, o atributo do colar de caveiras e, ao mesmo tempo, o lingam, símbolo da procriação, que aparece como contrapartida da morte. Dessa forma indica-se que procriação e morte são correlatas essenciais que reciprocamente se neutralizam e cancelam. — O mesmo sentimento levava os gregos e romanos a adornar seus preciosos sarcófagos, como ainda hoje em dia os vemos, com festas, danças, núpcias, caçadas, lutas de animais, bacanais, portanto com representações do ímpeto violento para a vida, tratado não apenas nesses divertimentos, mas também em grupos voluptuosos, indo até mesmo ao ponto de exibirem o intercurso sexual entre sátiros e cabras. Manifestamente o intento era, por ocasião da morte do indivíduo que era chorado, apontar com grande ênfase a vida imortal da natureza e, assim, embora sem conhecimento abstrato, aludir ao fato de que toda a natureza é o aparecimento e portanto a consumação da Vontade de vida. A forma desse aparecimento é tempo, espaço e causalidade, e, por intermédio destes, a individuação, a qual implica que o indivíduo tem de nascer e perecer, coisa que afeta tão pouco a Vontade de vida quanto o todo da natureza é ofendido pela morte do indivíduo. Pois não é este, mas exclusivamente a espécie, que merece os cuidados da natureza, a qual, com toda seriedade, obra por sua conservação e caprichosamente se preocupa com ela mediante o excedente bizarro de sêmens e grande poder do impulso de fecundação. O indivíduo, ao contrário, não tem valor algum para a natureza, nem pode ter, pois o reino da natureza é o tempo infinito, o espaço infinito e, nestes, o número infinito de possíveis indivíduos; eis por que ela sempre está disposta a deixar o ser individual desaparecer, o qual, portanto, sucumbe não apenas em milhares de maneiras diferentes por meio dos acasos mais insignificantes, mas originariamente já é determinado a isso e levado a desaparecer pela própria natureza desde o instante em que serviu à conservação da espécie. A natureza diz aí bem ingenuamente esta grande verdade: apenas as ideias, não os indivíduos, têm realidade propriamente dita, isto é, apenas as ideias são a objetidade perfeita da vontade. Ora, como o ser humano é a natureza mesma, e decerto no grau mais elevado de sua consciência de si, e, ademais, a natureza é apenas a Vontade de vida objetivada, segue-se que o ser humano que apreendeu e permaneceu nesse ponto de vista pode sim, e com justeza, consolar a si mesmo em face da própria morte e da de seus amigos, quando olha retrospectivamente a vida imortal da natureza, pois sabe que esta é ele mesmo. Conseguintemente, é dessa maneira que Siva, com o lingam, deve ser entendido, bem como aqueles antigos sarcófagos, que com seus quadros da vida mais ardente exclamam ao espectador choroso: Natura non contristatur. [MVR1: §54]

Que procriação e morte devam ser consideradas como algo inerente à vida e essencial à APARÊNCIA DA VONTADE advém do fato de procriação e morte apresentarem-se apenas como expressões altamente potenciadas Daquilo que dá consistência ao restante da vida, que nada mais é, em toda parte, senão uma alteração contínua da matéria em meio à permanência fixa da forma: justamente aí se tendo a transitoriedade dos seres individuais em meio à imortalidade da espécie. Ora, entre a contínua nutrição e reprodução ordinárias, e a procriação, de um lado, e a contínua excreção e a morte, de outro, existe apenas uma diferença de grau. O primeiro caso se mostra do modo mais simples e distinto na planta; esta é por completo apenas a repetição do mesmo impulso em fibras elementares agrupadas em folhas e ramos; é um agregado sistemático de plantas homogêneas que se sustentam umas às outras, cujo único impulso é a constante reprodução: em vista da satisfação completa dele, ela ascende gradativamente, por metamorfose, até a floração e o fruto, compêndio de sua existência e de seu esforço, em que alcança, pelo caminho mais curto, aquilo que é seu único alvo; doravante, de um só golpe, consuma em milhares de vezes o que até então só realizava no caso particular: a repetição de si mesma. Seu impulso até o fruto está para este como o escrito está para a impressão do livro. Manifestamente ternos a mesma coisa nos animais. O processo de nutrição é uma procriação contínua, e o processo de procriação é uma nutrição altamente potenciada; a volúpia no ato de procriar é o contentamento mais elevadamente potenciado do sentimento de vida. Por outro lado, a excreção, a constante exalação e a eliminação de matéria são o mesmo que a morte, numa potência mais elevada. Ora, assim como estamos a cada momento contentes em conservar a forma sem lamentar a matéria perdida, assim também ternos de nos comportar quando na morte ocorre o mesmo, pois aqui se dá numa potência mais elevada e no todo o mesmo que se dá no indivíduo a cada dia e a cada hora ao expelir seus excrementos: do mesmo modo que somos indiferentes num caso, não devemos tremer no outro. Desse ponto de vista, portanto, é tão absurdo desejar a perduração de nossa individualidade, que é substituída por outros indivíduos, quanto desejar a conservação da matéria do próprio corpo, que é continuamente renovada com nova matéria: parece-nos também tão tolo embalsamar cadáveres quanto o seria conservar cuidadosamente nossos excrementos. No que concerne à consciência individual ligada ao corpo individual, a primeira é diária e por completo interrompida pelo sono. O profundo sono, que muitas vezes faz lentamente sua transição para a morte, como no caso do congelamento que leva à morte, difere desta não pelo presente de sua duração, mas apenas pelo futuro, ou seja, em relação ao despertar. A morte é um sono no qual a individualidade é esquecida: toda outra coisa desperta de novo, ou, antes, permaneceu desperta. [MVR1: §54]

Entretanto, trouxemos agora à consciência distinta que, embora a aparência individual da vontade principie e finde temporalmente, a vontade mesma, como coisa em si, em nada é afetada, muito menos o correlato de todo objeto, o sujeito que conhece e nunca é conhecido; e que à Vontade de vida a vida é certa: — porém, aqui não se deve pensar nas doutrinas da existência continuada. Pois à vontade, considerada como coisa em si, assim como ao puro sujeito do conhecer, eterno olho cósmico, cabe tão pouco uma permanência quanto um perecimento, pois estas são determinações válidas exclusivamente no tempo, enquanto a vontade e o puro sujeito do conhecer encontram-se exteriores ao tempo. Daí se segue que o egoísmo do indivíduo pode, da nossa visão exposta, tão pouco haurir alimento e consolo para seu desejo de afirmar-se por um tempo infinito quanto o poderia a partir do conhecimento de que, após a sua morte, o mundo exterior restante permanece no tempo, o que é apenas a expressão da mesma visão, porém considerada de maneira objetiva, portanto, temporalmente. De fato, só como aparência uma pessoa é transitória; ao contrário, como coisa em si, é destituída de tempo, portanto sem fim; mas também só como aparência uma pessoa é diferente das outras coisas do mundo; como coisa em si ela é a vontade que aparece em tudo, e a morte remove a ilusão que separa a sua consciência da dos demais: e isto é a existência continuada. Ora, não ser atingido pela morte, algo válido exclusivamente para o indivíduo como coisa em si, coincide, para a aparência, com a existência continuada do mundo exterior que resta. Daí o fato de que a consciência íntima e apenas sentida Daquilo que acabamos de elevar a conhecimento claro evita, como foi dito, o envenenamento da vida do ser racional pelo pensamento sobre a morte, já que tal consciência é a base daquele ânimo vital que conserva cada vivente e o capacita a continuar vivendo serenamente, como se não existisse morte, ao menos pelo tempo em que tem em mira a vida e nesta se engaja; todavia, nada impede que, quando a morte entra em cena para o indivíduo num caso particular e real, ou apenas fantasiado, ele tenha então de encará-la nos olhos, sendo assim assaltado pelo medo da morte, tentando de todas as maneiras escapar dela. Pois, pelo tempo em que seu conhecimento dirige-se à vida enquanto tal, é apto a reconhecer a imortalidade; contudo, quando a morte lhe aparece diante dos olhos, conhece-a como aquilo que é, ou seja, o fim, no tempo, da aparência temporal isolada. Assim, o que tememos na morte de maneira alguma é a dor, pois esta reside manifestamente do lado de cá; ademais, muitas vezes nos refugiamos da dor justamente na morte, e, inversamente, às vezes enfrentamos a dor mais terrível só para escapar da morte por mais alguns instantes, apesar de esta poder ser rápida e fácil. Portanto, distinguimos entre dor e morte como dois males inteiramente diferentes: o que de fato tememos na morte é o desaparecimento do indivíduo, como ela sonoramente proclama ser; ora, como o indivíduo é a Vontade de vida mesma numa objetivação singular, todo o ser do indivíduo insurge-se contra a morte. — No entanto, ali onde o sentimento nos deixa sem ajuda, e numa tal amplitude, a razão pode entrar em cena e superar em grande parte a impressão adversa dele, ao colocar-nos num ponto de vista superior, de onde temos em mira não o particular, mas o universal. Por isso, um conhecimento filosófico da essência do mundo que chegasse ao ponto de vista no qual estamos agora em nossa consideração mas não fosse mais adiante, inclusive deste ponto de vista poderia superar os terrores da morte, desde que no indivíduo a reflexão tivesse poder sobre o sentimento imediato. Uma pessoa que assimilasse firmemente em seu modo de pensar as verdades até agora referidas e, ao mesmo tempo, não tivesse chegado a conhecer por experiência própria ou por uma intelecção mais ampla que o sofrimento contínuo é essencial a toda vida; e na vida encontrasse satisfação e de bom grado nela se deleitasse, e, ainda, por calma ponderação, desejasse que o decurso de sua vida, tal qual até então foi vivenciado, devesse ser de duração infinda ou de retorno sempre novo; cujo ânimo vital fosse tão grande que, no retorno dos gozos da vida, de boa vontade e com alegria assumisse as suas deficiências e tormentos aos quais está submetida; tal pessoa, ia dizer, situar-se-ia “com firmes, resistentes ossos sobre o arredondado e duradouro solo da Terra” e nada teria a temer: armada com o conhecimento que lhe conferimos, veria com indiferença a morte voando em sua direção nas asas do tempo, considerando-a como uma falsa ilusão, um fantasma impotente, amedrontado r para os fracos, mas sem poder algum sobre ela, que sabe: ela mesma é a vontade, da qual o mundo inteiro é objetivação ou cópia; ela, assim, tem não só uma vida certa, mas também o presente por todo o tempo, presente que é propriamente a forma única da APARÊNCIA DA VONTADE; portanto, nenhum passado ou futuro infinitos, no qual não existiria, pode amedrontá-la, pois considera a estes como uma miragem vazia e um véu de mãyã; por conseguinte, teria tão pouco temor da morte quanto o Sol tem da noite. — No Bhagavad Gitã, Krishna coloca seu noviço, Arjuna, nesse ponto de vista, quando este, tomado pelo desgosto, devido à visão dos exércitos prontos para o combate, perde a coragem e quer evitar a luta, para assim impedir o desaparecimento de tantos milhares: é quando Krishna o conduz a esse ponto de vista, e, assim, a morte daqueles milhares não o pode mais deter: dá então o sinal para a batalha. — Tal ponto de vista é também descrito no Prometeu de Goethe, especialmente quando diz: Aqui estou a formar o humano / Segundo minha imagem, / Uma raça igual a mim, / Para sofrer e chorar, / Ter prazer e alegrar-se, / E para te ignorar, / Como eu. [MVR1: §54]

55. Que a vontade enquanto tal seja LIVRE, segue-se naturalmente de nossa visão, que a considera como a coisa em si, o conteúdo de qualquer aparência. Esta, entretanto, conhecemo-la como inteiramente submetida ao princípio de razão em suas quatro figuras: ora, como sabemos que necessidade é algo absolutamente idêntico a consequência a partir de um fundamento dado, e ambos são conceitos intercambiáveis, infere-se daí que tudo que pertence à aparência, ou seja, o que é objeto para o sujeito que conhece enquanto indivíduo, é por um lado fundamento, por outro consequência, e, nesta última qualidade, algo determinado com absoluta necessidade, e em qualquer outra relação não pode ser nada senão isso. O conteúdo inteiro da natureza, a completude de suas aparências são, portanto, absolutamente necessários, e a necessidade de cada parte, de cada aparência, de cada evento pode ser sempre demonstrada, já que tem de ser possível encontrar o fundamento do qual se segue como consequência. Aqui não há exceção alguma: donde se segue a validade irrestrita do princípio de razão. Por outro lado, entretanto, este mesmo mundo, na totalidade das suas aparências, é para nós objetidade da vontade, que, por não ser ela mesma aparência, representação ou objeto, mas coisa em si, não está submetida ao princípio de razão, a forma de todo objeto; portanto não é determinada como consequência por um fundamento, logo, não conhece necessidade; em outras palavras, é LIVRE. Nesse sentido, o conceito de liberdade é, propriamente dizendo, negativo, pois seu conteúdo é tão somente a negação da necessidade, isto é, da relação da consequência a seu fundamento, em conformidade com o princípio de razão. — Aqui temos perante nós, da maneira mais distinta, o ponto unificador daquela grande oposição, a união da liberdade com a necessidade, tão discutida nos novos tempos, porém nunca, que eu saiba, de modo claro e adequado. Cada coisa como aparência, como objeto, é absolutamente necessária; no entanto, EM SI, essa mesma coisa é vontade e esta é integralmente livre por toda a eternidade. A aparência, o objeto, é necessária e inalteravelmente determinada na cadeia de fundamentos e consequências, a qual não admite interrupção alguma. Mas a existência em geral desse objeto e o modo da sua existência, isto é, a ideia que nele se manifesta, ou, noutros termos, o seu caráter, é aparência imediata da vontade. Ora, em conformidade à liberdade dessa vontade, o objeto poderia não existir, ou originária e essencialmente ser algo inteiramente outro; mas em tal caso toda a cadeia na qual ele é um membro, ela mesma APARÊNCIA DA VONTADE, também seria inteiramente outra: no entanto, uma vez lá e existente, o objeto ingressou na série de fundamentos e consequências e é aí sempre necessariamente determinado, por conseguinte não pode ser outro, isto é, mudar, nem sair da série, isto é, desaparecer. O ser humano também, como qualquer outra parte da natureza, é objetidade da vontade: nesse sentido, tudo o que foi dito anteriormente também vale para ele. Ora, assim como cada coisa na natureza tem suas forças e qualidades que reagem a determinadas influências de determinada maneira e constituem o seu caráter, também o ser humano possui o seu CARÁTER, em virtude do qual os motivos produzem suas ações com necessidade. Nesse modo mesmo de agir manifesta-se seu caráter empírico: por seu turno, neste manifesta-se de novo seu caráter inteligível, à vontade em si da qual ele é aparência determinada. Todavia, o ser humano é a aparência mais perfeita da vontade, como mostrado no livro segundo e, em vista da própria conservação, tem de ser iluminado por um tão elevado grau de conhecimento que, neste, é até mesmo possível, como mostrado no livro terceiro, uma repetição adequada e perfeita da essência do mundo sob a forma da representação, ou seja, é possível a apreensão das ideias, o límpido espelho do mundo. No ser humano, por conseguinte, a vontade pode alcançar a plena consciência de si, o conhecimento distinto e integral da própria essência tal qual esta se espelha em todo o mundo. Em função da existência real desse grau de conhecimento origina-se, como vimos no livro precedente, exatamente a arte. Ao final de toda nossa consideração ainda veremos que por intermédio do mesmo conhecimento, quando a vontade o refere a si mesma, é possível a supressão e autonegação da vontade em sua aparência mais perfeita: assim, a liberdade, do contrário, jamais se mostrando na aparência, pois pertence exclusivamente à coisa em si, pode neste caso entrar em cena na própria aparência, ao suprimir a essência subjacente ao fundamento desta, embora a aparência mesma continue no tempo; surge daí uma contradição da aparência consigo mesma, expondo desse modo os fenômenos da santidade e auto-abnegação. Mas o que foi agora discutido só será completamente compreendido ao final deste livro. — Entrementes, todo o exposto simples mente indica de maneira geral como o ser humano diferencia-se de todas as demais aparências da vontade, devido ao fato de a liberdade, ou seja, a independência do princípio de razão, que cabe de maneira exclusiva à vontade como coisa em si e contradiz a aparência, poder no caso humano possivelmente também entrar em cena nesta, na qual então necessariamente expõe-se como uma contradição da aparência consigo mesma. Nesse sentido, não é apenas a vontade em si que deve ser denominada livre, mas também o ser humano e, assim, diferenciado de todos os demais seres. Mas como isso é compreensível? Eis aí algo que só se tornará distinto na completa sequência do texto; por agora temos de prescindir de sua exposição integral, pois antes de tudo temos de evitar o erro de pensar que o agir de um ser humano singular, determinado, não está submetido a necessidade alguma, ou seja, que a força do motivo é menos certa que a força da causa, ou então que a consequência da conclusão é menos certa a partir das premissas. A liberdade da vontade como coisa em si, excetuando-se o caso acima mencionado, jamais estende-se imediatamente à aparência, nem mesmo onde esta atinge o grau mais elevado de visibilidade, logo, não se estende ao animal dotado de razão e com caráter individual, isto é, a pessoa, que jamais é livre, embora seja a aparência de uma vontade livre: pois a pessoa já é a aparência determinada pelo querer livre e, desde que este entra na forma de todo objeto, o princípio de razão, a pessoa desenvolve de fato a unidade da vontade na pluralidade de suas ações, que, entretanto, devido à unidade extratemporal daquele querer em si, expõe-se com a legalidade de uma força natural. Porém, como é o querer livre que se torna visível na pessoa e em toda a sua conduta, estando para esta como o conceito está para a definição, segue-se que cada ação isolada do ser humano deve ser atribuída à vontade livre e também se apresenta imediatamente enquanto tal à consciência: eis por que cada um de nós, como dito no livro segundo, considera a si mesmo a priori livre, inclusive nas ações particulares, no sentido de em qualquer caso dado ser possível qualquer ação, porém só a posteriori, a partir da experiência e da reflexão sobre ela, reconhece que seu agir foi produzido de modo completamente necessário a partir do confronto do caráter com os motivos. Eis por que toda pessoa tosca, seguindo seu sentimento, defende ardorosamente a plena liberdade das ações individuais, enquanto os grandes pensadores de todas as épocas, inclusive os doutrinadores religiosos mais profundos, a tenham negado. No entanto, a quem ficou claro que a essência inteira do ser humano é vontade e ele mesmo é apenas aparência dessa vontade, aparência que, por seu turno, tem por forma necessária o princípio de razão, cognoscível já a partir do sujeito, figurando, neste caso, como lei de motivação; a tal pessoa, a dúvida sobre a inexorabilidade de cada ação particular, quando o motivo é apresentado ao caráter, parece-lhe como uma dúvida sobre se a soma dos três ângulos do triângulo equivale de fato à de dois retos. — A necessidade do agir individual foi suficientemente demonstrada por Pristley em sua Doctrine of Philosophical Necessity; foi Kant  , todavia, cujo mérito a este respeito é em especial magnânimo, o primeiro a demonstrar a coexistência dessa necessidade com a liberdade da vontade em si, isto é, exterior à aparência, estabelecendo a diferença entre caráter inteligível e empírico: a qual conservo por inteira: conquanto o primeiro é a vontade como coisa em si na medida em que aparece num determinado indivíduo e num determinado grau, e o segundo é esta aparência mesma tal qual ela se expõe temporalmente em modos de ação e já espacialmente na corporização. A fim de tornar mais clara a relação entre caráter inteligível e empírico, a melhor expressão a ser empregada é aquela presente no meu ensaio introdutório sobre o princípio de razão, ou seja, que o caráter inteligível de cada ser humano deve ser considerado como um ato extratemporal, indivisível e imutável da vontade, cuja aparência, desenvolvida e espraiada em tempo, espaço e em todas as formas do princípio de razão, é o caráter empírico como este se expõe conforme a experiência, vale dizer, na conduta e no decurso de vida de alguém. Assim como a árvore inteira é somente a aparência sempre repetida de um único e mesmo impulso exposto da maneira mais simples na fibra, de novo repetido e facilmente reconhecível na composição da folha, do talo, do galho, do tronco, assim também todas as ações singulares de uma pessoa são apenas a exteriorização sempre repetida do seu caráter inteligível, e a indução resultante da soma dessas ações constitui precisamente o seu caráter empírico. — Mas não repetirei aqui de maneira incompleta a magistral exposição de Kant, mas a pressuponho como conhecida. [MVR1: §55]

A defesa de uma liberdade empírica da vontade, de um liberum arbitrium indifferentiae, está intimamente ligada ao fato de ter-se colocado a essência íntima do ser humano numa ALMA, a qual seria originariamente uma entidade QUE CONHECE, sim, propriamente dizendo, uma entidade abstrata QUE PENSA, e só em consequência disto algo QUE QUER; assim, considerou-se a vontade como de natureza secundária, quando em realidade o conhecimento é de natureza secundária. A vontade foi até mesmo considerada como um ato de pensamento e identificada com o juízo, especialmente por Descartes   e Espinosa  . De acordo com isso, todo ser humano teria se tornado o que é somente em consequência de seu CONHECIMENTO: chegaria ao mundo como um zero moral, conheceria as coisas no mundo e decidiria ser este ou aquele, agir desta ou daquela maneira; poderia também, em virtude de novo conhecimento, adotar uma nova conduta, portanto tornar-se outrem. Fora isso, ainda conheceria uma coisa primeiro como BOA e, em consequência, querê-la-ia: em vez de primeiro a QUERER e, em consequência, chamá-la BOA. Porém, de acordo com a totalidade da minha visão fundamental, tudo isso é uma inversão da relação verdadeira. A vontade é o primário e originário; o conhecimento é meramente adicionado como instrumento pertencente à APARÊNCIA DA VONTADE. Conseguintemente, cada pessoa é o que é mediante a sua vontade, e o seu caráter é originário; pois querer é a base do seu ser. Pelo conhecimento adicionado, ela aprende no decorrer da experiência o QUÊ ela é, ou seja, chega a conhecer o seu caráter. Ela se CONHECE, portanto, em consequência e em conformidade à índole da sua vontade; em vez de, segundo a antiga visão, QUERER em consequência e em conformidade ao seu conhecer. De acordo com esta antiga visão, ela precisa apenas ponderar COMO prefere ser, e seria: isto seria a liberdade da vontade; logo, a liberdade da vontade consistiria, propriamente dizendo, no fato de a pessoa ser a sua própria obra, à luz do conhecimento. Eu, contrariamente, digo que o ser humano é a sua própria obra antes de todo conhecimento, e este é meramente adicionado para iluminá-la. Daí não poder decidir ser isto ou aquilo, nem tornar-se outrem, mas É de uma vez por todas, e sucessivamente conhece O QUÊ é. Pela citada tradição, ele QUER o que conhece; em mim ele CONHECE o que quer. [MVR1: §55]

O que, entretanto, apenas com observação mais aguçada e empenho descobrimos na natureza destituída de conhecimento, aparece-nos distintamente na natureza que conhece, na vida do mundo animal, cujo sofrimento incessante é fácil de demonstrar. Queremos, contudo, sem nos determos neste estádio intermédio, dirigirmo-nos para lá onde, iluminado pelo conhecimento mais límpido, tudo aparece da maneira mais distinta, a saber, na vida do ser humano. Pois o sofrimento se torna cada vez mais manifesto à medida que a APARÊNCIA DA VONTADE se torna cada vez mais perfeita. Na planta ainda não há sensibilidade alguma, portanto nenhuma dor: certo grau bem baixo de sofrimento encontra-se nos animais menos complexos, os infusórios e radiados: mesmo nos insetos a capacidade de sentir e sofrer é ainda limitada: só com o sistema nervoso completo dos vertebrados é que a referida capacidade aparece em grau elevado e cada vez mais quanto mais a inteligência se desenvolve. Portanto, à proporção que o conhecimento atinge a distinção e que a consciência se eleva, aumenta o tormento, que, conseguintemente, alcança seu grau supremo no ser humano, e tanto mais quanto mais ele conhece distintamente, sim, quanto mais inteligente é: o ser humano no qual o gênio vive é quem mais sofre. Nesse sentido, ou seja, em relação ao grau de conhecimento em geral, e não ao mero conhecer abstrato, é que compreendo e emprego aqui o dito do Eclesiastes: Qui auget scientiam, auget et dolorem. — Essa proporção exata entre o grau de consciência e o grau de sofrimento foi expressa de modo extremamente belo, em exposição intuitiva e especular, num desenho daquele pintor filosófico, ou filósofo que pinta, TISCHBEIN. A metade superior de um seu desenho representa mulheres cujos filhos estão sendo raptados, mulheres que, em diferentes grupos e posições, expressam variada e profundamente dor materna, angústia, desespero; a parte inferior mostra, em agrupamento e ordenação inteiramente iguais, ovelhas, das quais as crias também são retiradas, de forma que a cada cabeça e a cada posição humana da metade superior do desenho corresponde, na metade inferior, um análogo animal, com o que se vê distintamente em que moldes a dor que é possível na abafada consciência animal se relaciona com o devastador tormento que se torna possível apenas pela distinção do conhecimento, pela claridade de consciência. [MVR1: §56]

Entretanto, o esforço contínuo que constitui a essência de cada APARÊNCIA DA VONTADE adquire nos graus mais elevados de objetivação desta seu primeiro e mais universal fundamento, pois aqui a vontade aparece num corpo vivo com o seu mandamento férreo de alimentação: o que dá força a este mandamento é justamente que o corpo é apenas a vontade de vida mesma, objetivada. O ser humano, como objetivação perfeita da vontade, é, em conformidade com o dito, o mais necessitado de todos os seres: ele é querer concreto e necessidade absoluta, é uma concretização de milhares de necessidades. Com estas, encontramo-la sobre a face da Terra abandonado a si mesmo, incerto sobre tudo, menos em relação à sua carência e miséria: em conformidade com isso, os cuidados pela conservação da existência, em meio a demandas tão severas que se anunciam todos os dias, preenchem via de regra toda a vida do ser humano. A isso logo conecta-se imediatamente a segunda exigência, a da propagação da espécie. Entrementes, ameaçam-no de todos os lados perigos os mais variados, e para escapar deles precisa de contínua vigilância. Com passo cuidadoso, tatear angustiante, segue o seu caminho, enquanto milhares de acasos, milhares de inimigos lhe preparam emboscadas. Assim já caminhava no estado selvagem, assim caminha agora na vida civilizada; não há segurança alguma para ele: Qualibus in tenebris vitae, quantisque periclis / Degitur hocc aevi, quodcunque est! [MVR1: §57]

59. Caso nos tenhamos convencido a priori mediante as mais universais de todas as considerações, através da investigação dos primeiros princípios elementares da vida humana, que esta, em conformidade com sua índole, não é passível de nenhuma verdadeira bem-aventurança, mas em essência é um sofrimento multifacetado e um estado desafortunado em variados aspectos, doravante poderemos despertar muito mais vivamente essa convicção se, procedendo a posteriori, levarmos em conta casos bem determinados, passando em revista, pela fantasia, imagens e exemplos da penúria inominável apresentados na experiência e na história, independentemente de para onde se olhe ou qual aspecto se queira investigar. No entanto o capítulo seria sem fim e nos distanciaria do ponto de vista da universalidade, essencial à filosofia. Ademais, poder-se-ia facilmente tomar tal descrição como mera declamação sobre a miséria humana, como frequentes vezes já foi feito, e assim ficaria sujeita à acusação de unilateralidade por partir de fatos particulares. De semelhante suspeita e censura, por conseguinte, está livre nossa demonstração acerca do sofrimento inevitável, enraizado na essência da vida; demonstração perfeitamente fria e filosófica, pois parte do universal e é conduzida a priori. Decerto a confirmação a posteriori é em toda parte fácil de obter. Cada um que despertou dos primeiros sonhos da juventude e mirou a própria experiência e a alheia, que observou a vida na história passada e na própria época, por fim nas obras dos grandes poetas, certamente reconhecerá o resultado — se a sua faculdade de juízo não for paralisada por preconceito inculcado e irremovível- que este mundo humano é o reino do acaso e do erro, que o governam sem piedade, tanto nas grandes quanto nas pequenas coisas, auxiliados pelo chicote da insensatez e da maldade: eis por que as coisas boas só muito dificilmente abrem seu caminho, o que é nobre e sábio só raramente consegue fazer sua aparição ou encontra eficácia e eco, mas o absurdo e o perverso no domínio do pensamento, o rasteiro e de mau gosto na esfera da arte, o mau e fraudulento na esfera dos atos, realmente afirmam sua supremacia, obstados apenas por pequenas interrupções; ao contrário, o insigne de todo tipo não passa, sempre, de uma exceção, um caso entre milhões: por conseguinte, se isso porventura tiver se anunciado numa obra duradoura, esta permanece subsequentemente isolada após ter sobrevivido ao rancor de seus contemporâneos, sendo preservada como um meteorito vindo de outra ordem de coisas, diferente da aqui existente. — Naquilo que concerne à vida do indivíduo, cada história de vida é uma história de sofrimento: cada decurso de vida é, via de regra, uma série contínua de pequenos e grandes acidentes, ocultados tanto quanto possível pela pessoa, porque sabe que os outros raramente sentirão empatia ou compaixão, mas quase sempre contentamento pela representação dos suplícios dos quais exatamente agora se isentam; — uma pessoa, ao fim de sua vida, se fosse igualmente sincero e clarividente, talvez jamais a desejasse de novo, preferindo antes total não existência. O conteúdo essencial do célebre monólogo em Hamlet, quando resumido, é este: nossa condição é tão miserável que o decididamente preferível seria a completa não existência. Se o suicídio efetivamente nos oferecesse esta última, de tal modo que a alternativa “ser ou não ser” fosse posta no sentido pleno da palavra, então aquele seria incondicionalmente escolhido como um desenlace altamente desejável. No entanto, algo em nós diz que não é bem assim, que não se tem aí o fim das coisas, que a morte não é de maneira alguma uma aniquilação absoluta. — O pai da história, por outro lado, afirma algo ainda não refutado, a saber, jamais existiu um ser humano que não tenha desejado mais de uma vez não viver o dia seguinte. Nesse sentido, talvez a tão lamentada brevidade da vida seja justamente o que ela tem de melhor a oferecer. — Se, finalmente, fossem trazidos aos olhos de uma pessoa as dores e os tormentos horrendos aos quais a sua vida está continuamente exposta, o aspecto cruel desta a assaltaria: e caso se conduzisse o mais obstinado otimista através dos hospitais, enfermarias, mesas cirúrgicas, prisões, câmaras de tortura e senzalas, pelos campos de batalha e pelas praças de execução, e depois lhe abríssemos todas as moradas sombrias onde a miséria se esconde do olhar frio do curioso; se, ao fim, lhe fosse permitida uma mirada na torre da fome de Ungolino, ele certamente também veria de que tipo é este meilleur des mondes possibles. De onde DANTE   extraiu matéria para seu inferno senão deste nosso mundo real? Foi decerto um inferno corretamente descrito. Ao contrário, quando se pôs a tarefa de descrever o céu com suas alegrias, teve diante de si uma insuperável dificuldade, exatamente porque nosso mundo não fornece material algum para tanto. Por isso nada mais lhe restou senão, em vez da alegria do paraíso, repetir-nos os ensinamentos concedidos por seus antepassados, por sua Beatriz, e por diversos santos. A partir disso tudo torna-se suficientemente claro de que tipo é este mundo. Decerto a vida humana, como qualquer mercadoria ruim, é coberta no exterior com um falso verniz: enquanto o sofrimento é sempre ocultado; em contrapartida, todos ostentam o que conseguem dispor de pompa e esplendor; porém, quanto mais a satisfação interior lhes escapa, tanto mais desejam apresentar-se como felizes na opinião dos outros: tão longe vai o desvario, e a opinião dos outros é um objetivo principal dos esforços de cada um, embora a completa nulidade disso já se exprima no fato de que em quase todas as línguas vaidade, vanitas, significa originariamente vazio e nulidade. — Contudo, apesar de todas essas ilusões, os tormentos da vida podem aumentar com tanta facilidade que a morte, noutras circunstâncias a mais temida das coisas, é procurada com apetite. Porém, quando o destino quer mostrar toda a sua malícia, até mesmo esse refúgio é barrado ao sofredor, e este, nas mãos de inimigos raivosos, permanece exposto a lentos e cruéis martírios, sem resgate possível. Debalde o torturado invoca ajuda aos seus deuses: fica abandonado à sua sorte, sem perdão. Mas essa impossibilidade de resgate é, entretanto, precisamente o espelho da natureza indomável de sua vontade, cuja objetidade é a própria pessoa. — Um poder exterior é tão pouco capaz de mudar essa vontade, ou suprimi-la, quanto um poder estranho é capaz de livrá-lo dos tormentos da vida, APARÊNCIA DA VONTADE. O ser humano é sempre remetido a si mesmo também na questão principal. Em vão cria para si deuses, para deles obter, por preces e louvores, aquilo que só a sua própria força de vontade pode produzir. Enquanto o Antigo Testamento   fez do mundo e do ser humano obra de um Deus, o Novo Testamento viu-se compelido a tornar esse ser humano um Deus, a fim de ensinar que a salvação e a redenção da penúria deste mundo só podem provir do mundo mesmo. Para o ser humano, a vontade é e permanece aquilo de que tudo depende. Sannyasis, mártires, santos de todas as crenças e nomes, suportaram voluntariamente de bom grado todos os martírios, visto que neles a Vontade de vida se suprimia; depois, até mesmo a lenta destruição da APARÊNCIA DA VONTADE de vida lhes era bem-vinda. Mas não quero me adiantar à discussão que será feita mais adiante. — De resto, não posso aqui impedir-me da assertiva de que o OTIMISMO, caso não seja o discurso vazio de pessoas cuja testa obtusa é preenchida por meras palavras, apresenta-se como um modo de pensamento não apenas absurdo, mas realmente IMPIEDOSO: um escárnio amargo acerca dos sofrimentos inomináveis da humanidade. — Não se pense que a doutrina da fé cristã seja favorável ao otimismo, ao contrário, nos evangelhos as noções de mundo e mal são quase sempre empregadas como sinônimas. [MVR1: §59]

O conceito de INJUSTIÇA, aqui analisado em sua abstração mais universal, expressa-se in concreto da maneira mais acabada, explícita e palpável no canibalismo: este é o tipo mais claro e evidente de injustiça, a imagem terrível do grande conflito da vontade consigo mesma no mais elevado grau de sua objetivação, o ser humano. Depois dele temos o homicídio, cuja perpetração é instantaneamente seguida com horrível distinção pelo remorso, comprometendo com chaga incurável a calma de espírito pelo resto da vida; em verdade, o nosso horror em face do homicídio cometido e o nosso tremor em face do que vamos cometer correspondem ao apego sem limites à vida, inerente a todo ser vivo como APARÊNCIA DA VONTADE de vida. Em essência igual ao homicídio, diferindo dele apenas segundo o grau, encontra-se a mutilação intencional ou mera lesão do corpo alheio, sim, até qualquer golpe. — Além disso, a injustiça expõe-se na subjugação do outro indivíduo, em forçá-la à escravidão, por fim, em atacar a propriedade alheia, o que, em virtude de a propriedade ser considerada como fruto do próprio trabalho, é algo que se equipara em essência à escravidão, estando para esta como a simples lesão está para o homicídio. [MVR1: §62]

Ora, aquela veemência extrema da vontade já é em e para si, de maneira imediata, uma inesgotável fonte de sofrimento. Primeiro porque todo querer enquanto tal nasce da carência, portanto do sofrimento; segundo porque, através da conexão causal das coisas, a maioria das cobiças tem de permanecer impreenchível e a vontade é mais frequentemente contrariada que satisfeita; em consequência, querer intenso e veemente sempre traz consigo sofrimento intenso e veemente. Pois todo sofrimento nada é senão querer insatisfeito e contrariado: até mesmo a dor do corpo, quando este é ferido ou destruído, é enquanto tal unicamente possível em função de o corpo nada ser senão a vontade mesma tornada objeto. — Dessa maneira, visto que sofrimento intenso e veemente é inseparável de querer intenso e veemente, já a expressão facial de seres humanos extremamente maus estampa a marca do sofrimento interior: mesmo quando alcançam toda felicidade exterior, sempre parecem infelizes, a não ser que sejam arrebatados por júbilo passageiro, ou dissimulem. Desse tormento interior que lhes é inteiramente imediato e essencial procede, por fim, até mesmo a alegria no sofrimento alheio, que não nasce do mero egoísmo mas é desinteressada, e que é propriamente a MALDADE, a qual aumenta até a CRUELDADE. Na crueldade, o sofrimento alheio não é mais meio para atingir os fins da própria vontade, mas fim em si mesmo. A explicação minuciosa deste fenômeno é a seguinte. Como o ser humano é APARÊNCIA DA VONTADE iluminada pelo mais claro conhecimento, ele sempre mede a satisfação real e sentida da sua vontade com a satisfação meramente possível que o conhecimento lhe apresenta. Daí origina-se a inveja: toda privação é infinitamente agravada pelo gozo alheio e dirimida pelo conhecimento de que também outros suportam a mesma privação. Os padecimentos comuns e inseparáveis de toda vida humana, assim como os associados ao clima e ao país, afligem pouco. A recordação de sofrimentos maiores que os nossos pacifica a dor: a visão do sofrimento alheio alivia o nosso. Ora, suponha-se um ser humano preenchido com um ímpeto volitivo veemente ao extremo e que, ardendo em apetites, deseja tudo acumular para saciar a sede de seu egoísmo; como é inevitável, terá de convencer-se pela experiência que toda satisfação é aparente e o objeto alcançado jamais cumpre o que a cobiça prometia, a saber, o apaziguamento final do furioso ímpeto da vontade; mais, que a satisfação de um desejo apenas muda a sua figura, que, agora, o atormenta sob outra forma, sim, ao término, se todos os desejos esgotam-se, resta o ímpeto mesmo da vontade sem nenhum motivo aparente, a dar sinal de si como tormento incurável, horrível desolação e vazio: tudo o que, em se tratando de um grau comum de querer, é sentido apenas numa medida modesta, produzindo também apenas um grau comum de disposição turvada, desperta, porém, na pessoa cuja APARÊNCIA DA VONTADE atinge a crueldade extrema, necessariamente um tormento interior que vai além de toda medida, uma intranquilidade eterna, uma dor incurável; com isso, ela procura indiretamente o alívio do qual não é capaz diretamente, procura mitigar o seu sofrimento na visão do sofrimento alheio, o qual simultaneamente vê como uma expressão do próprio poder. O sofrimento alheio se lhe torna agora fim em si, é um espetáculo que lhe regozija: daí origina-se o fenômeno da crueldade propriamente dita, da sede de sangue, tão frequentemente revelado pela história nos Neros e Domicianos, nos Deis africanos, em Robespierre e outros. [MVR1: §65]

Por mais que o véu de mãyã envolva espessamente os sentidos do indivíduo mau, noutros termos, por mais firmemente que ele se enrede no principium individuationis, de acordo com o qual considera-se um indivíduo absolutamente diferente dos demais seres e deles separado por um amplo abismo, conhecimento ao qual adere com todo o seu vigor, visto que somente esse ponto de vista conforma-se ao seu egoísmo e lhe dá sustento, já que este conhecimento é quase sempre corrompido pela vontade — lateja, entretanto, no mais íntimo de sua consciência o pressentimento de que essa ordem das coisas é simples aparência; em si mesma, entretanto, trata-se de algo bem diferente; e não obstante o tempo e o espaço o separarem dos demais indivíduos e dos incontáveis tormentos que padecem, inclusive através dele, e os apresentar como estrangeiros, ainda assim é a Vontade de vida una e em si, alheia à representação e às formas da representação, que neles todos aparece, porém aqui, desconhecendo-se, aponta contra si as próprias armas e, ao procurar o aumento do bem-estar em uma de suas aparências, precisamente por isso impõe os maiores sofrimentos a outrem. O indivíduo mau é justamente toda essa vontade e por conseguinte não é exclusivamente quem atormenta, mas ao mesmo tempo quem é atormentado, de cujo sofrimento é separado e mantido livre tão somente por um sonho enganoso, cujas formas são o espaço e o tempo; sonho que todavia acaba e quem é mau tem em verdade de pagar o prazer com o tormento, e todo sofrimento que ele conhece apenas como possível afeta-o realmente tanto quanto a Vontade de vida, pois só para o conhecimento do indivíduo, por intermédio do principium individuationis, é que existem como diferentes a possibilidade e a efetividade, o próximo e o distante no tempo e no espaço, mas não em si mesmos. É essa verdade que, miticamente adaptada ao princípio de razão, é expressa no mito da transmigração das almas e assim traduzida na forma da aparência: no entanto, a sua expressão mais pura e livre de quaisquer misturas encontra-se naquele tormento obscuramente sentido e sem consolo chamado peso de consciência. — Porém, este também nasce de um SEGUNDO e imediato conhecimento intimamente associado àquele primeiro, a saber, o da força com a qual a Vontade de vida afirma a si mesma no indivíduo mau, força que vai muito além da sua aparência individual até a completa negação da mesma vontade como ela aparece em outro indivíduo. Consequentemente, o horror íntimo do malvado em relação aos seus próprios atos, o qual ele tenta ocultar de si, contém ao mesmo tempo, junto ao pressentimento da nulidade e mera aparência do principium individuationis e da diferença por este posta entre si e outrem, também o conhecimento da veemência da própria vontade, da violência com a qual se entregou e se apegou à vida, precisamente esta vida observada diante de si em seu lado terrível no tormento provocado em alguém por ele oprimido e com quem, entretanto, é tão firmemente enlaçado que, exatamente dessa forma, o que há de mais horrível sai de si mesmo como um meio para completa afirmação da própria vontade. Reconhece a si como aparência concentrada da Vontade de vida, sente até que ponto está entregue à vida e com isto aos inumeráveis sofrimentos essenciais a esta, já que a vida tem tempo sem fim e espaço sem fim para abolir a diferença entre possibilidade e efetividade, e assim transformar todos os tormentos até agora por ele apenas CONHECIDOS em tormentos SENTIDOS. OS milhões de anos de constante renascimento decerto existem só em conceito, bem como só em conceito existem todo o passado e todo o futuro: o tempo preenchido, a forma da APARÊNCIA DA VONTADE, é apenas o presente, e para o indivíduo o tempo é sempre novo: o indivíduo sempre encontra-se nascido de novo. Pois a vida é inseparável da Vontade de vida e sua única forma é o Agora. A morte é como o pôr do sol, quando o astro rei só aparentemente é tragado pela noite, mas em realidade, ele mesmo fonte de toda luz, brilha sem interrupção, trazendo novos dias a novos mundos, sempre nascendo e sempre se pondo. Começo e fim dizem respeito apenas ao indivíduo, mediante o tempo, a forma desta aparência para a representação. Exterior ao tempo encontra-se só a vontade, a coisa em si de Kant, e sua objetidade adequada, as ideias de Platão. Conseguintemente, o suicídio não fornece salvação alguma: o que cada um QUER em seu íntimo, isto ele deve SER: e o que cada um É, precisamente isto ele QUER. — Portanto, ao lado do conhecimento meramente sentido, da aparência e nulidade das formas da representação que separam os indivíduos, aquilo que dá à consciência moral o seu espinho é o autoconhecimento da própria vontade e de seus graus. O decurso de vida desenha a imagem do caráter empírico, cujo original é o caráter inteligível, e o indivíduo mau horroriza-se justamente com essa imagem, pouco importando se ela é produzida em grandes traços, com o que o mundo expressa a sua repugnância, ou em traços tão diminutos que só o indivíduo mau os vê: porque só a ele concernem imediatamente. O passado, sendo mera aparência, seria indiferente e não poderia angustiar a consciência se o caráter ele mesmo não se sentisse livre de todo tempo e imutável através do tempo, pelo menos enquanto não nega a si mesmo. Eis por que coisas que aconteceram há muito tempo ainda continuam a pesar na consciência. A súplica: “Não me deixeis cair em tentação” significa: “Não me deixeis ver quem sou”. — A violência com que o indivíduo mau afirma a vida é-lhe exibida no sofrimento por ele infligido a outrem, fazendo-lhe mensurar a distância que se encontra da renúncia e negação da vontade, única redenção possível para o mundo e seus tormentos. Vê a extensão com que pertence ao mundo e quão firmemente está atado a ele: o sofrimento CONHECIDO dos outros não o pôde comover: está imerso na vida e no sofrimento SENTIDO. Fica em aberto se isto alguma vez irá quebrar e suplantar a veemência de sua vontade. [MVR1: §65]

Antes, porém, de falarmos do autêntico BOM, em oposição ao MAU que já expusemos, é mister tratarmos, como um grau intermediário entre eles, da simples negação do mau: trata-se da JUSTIÇA. O que é justo e injusto já foi acima abordado exaustivamente: por isso aqui podemos dizer em poucas palavras o seguinte: quem reconhece e aceita voluntariamente o simples limite moral entre o que é injusto e o que é justo, mesmo ali onde o Estado ou outro poder não se imponha, quem, consequentemente, de acordo com a nossa explanação, jamais, na afirmação da própria vontade, vai até a negação da vontade que se expõe em outro indivíduo, — é JUSTO. Portanto não infligirá sofrimento a outrem para aumentar o próprio bem-estar, vale dizer, não cometerá crimes e respeitará o direito e a propriedade alheios. — Vemos assim que para aquele que é justo o principium individuationis não é mais, como para aquele que é mau, uma barreira absoluta; pois, diferentemente do indivíduo mau, não afirma só a própria APARÊNCIA DA VONTADE, negando todas as demais aparências como se fossem simples máscaras com essência totalmente diferente da sua; muito pelo contrário, pelo seu modo de ação, o indivíduo justo mostra que RECONHECE sua essência, a Vontade de vida como coisa em si, também na aparência de outrem dado como mera representação, portanto reencontra a si mesmo nessa aparência em certo grau, ou seja, desiste de praticar a injustiça, isto é, não inflige injúrias. Exatamente nesse grau a sua visão transpassa o véu de mãyã: e iguala a si o ser que lhe é exterior: não o injuria. [MVR1: §66]

Se compararmos a vida a uma via circular de carvão ardente com alguns lugares frios, a qual teríamos de percorrer incessantemente, então a pessoa envolvida pela ilusão encontra consolo no lugar frio em que justamente agora se encontra ou que vê próximo de si, sendo assim encorajada a prosseguir na sua marcha. Porém, o indivíduo cuja visão transpassa o principium individuationis e reconhece a essência em si das coisas, portanto do todo, não é mais suscetível a semelhante consolo: vê a si mesmo em todos os lugares simultaneamente, e se retira. — Sua vontade se vira; ele não mais afirma a própria essência espelhada na aparência, mas a nega. O fenômeno no qual isso é revelado é a transição da virtude à ASCESE. Por outros termos, não mais adianta amar os outros como a si mesmo, por eles fazer tanto como se fosse por si, mas nasce uma repulsa pela essência da qual sua aparência é a expressão, vale dizer, uma repulsa pela Vontade de vida, núcleo e essência de um mundo reconhecido como povoado de penúrias. Renega, por conseguinte, precisamente essa essência que nele aparece expressa já em seu corpo, e seus atos desmentem agora a aparência dessa essência e entram em contradição flagrante com ela. Essencialmente APARÊNCIA DA VONTADE, ele cessa de querer algo, evita atar sua vontade a alguma coisa, procura estabelecer em si a grande indiferença por tudo. — Seu corpo saudável e forte exprime o impulso sexual pelos genitais; porém ele agora nega a vontade e desmente o corpo: não quer satisfação sexual alguma, sob condição alguma. Voluntária e completa castidade é o primeiro passo na ascese ou negação da Vontade de vida. A castidade, assim, nega a afirmação da vontade que vai além da vida individual e anuncia que, com a vida deste corpo também a vontade, da qual o corpo é aparência, se suprime. A natureza, sempre verdadeira e ingênua, assevera que, caso esta máxima se tornasse universal, o gênero humano se extinguiria: ora, após o exposto no segundo livro sobre a ligação de todas as aparências da vontade, acredito poder assumir que, com a aparência mais elevada da vontade, também a mais abaixo dela seria abolida, ou seja, o mundo animal; do mesmo modo que a penumbra também desaparece ao desaparecer a plena luz do dia. Acompanhando a completa supressão do conhecimento, também o resto do mundo desapareceria no nada, pois sem sujeito não há objeto. Gostaria inclusive de citar a seguinte passagem encontrada nos Vedas  : “Assim como neste mundo crianças famintas apertam-se em torno da sua mãe, assim também todos os seres aguardam o sacrifício sagrado”. Sacrifício significa resignação em geral, e o restante da natureza tem de esperar sua redenção do ser humano, que é o sacerdote e a vítima sacrificial ao mesmo tempo. Sim, merece ser mencionado como algo extremamente notável que esse pensamento também foi expresso pelo admirável e vertiginoso Angelus Silesius, no dístico intitulado O ser humano leva tudo a Deus. Humano! Tudo te ama; tudo se acerca de ti: Tudo corre em tua direção, para chegar a Deus. [MVR1: §68]

A ascese também se mostra na pobreza voluntária e intencional, que se origina não somente per accidens, na medida em que a propriedade é doada para aliviar o sofrimento alheio, mas já como um fim em si mesmo, devendo então servir como mortificação contínua da vontade, com o que a satisfação dos desejos, as doçuras da vida, não mais estimulam a vontade, contra a qual o autoconhecimento provocou repugnância. Quem chegou num tal ponto ainda sempre sente, como corpo animado pela vida, aparência concreta da vontade, uma tendência natural ao querer de todo tipo: porém o refreia intencionalmente, ao compelir a si mesmo a nada fazer do que em realidade gostaria de fazer, ao contrário, faz tudo o que não gostaria de fazer, mesmo se isto não tiver nenhum outro fim senão justamente o de servir à mortificação da vontade. Como ele mesmo nega a vontade que aparece em sua pessoa, não reagirá quando outro fizer o mesmo, noutros termos, quando outro praticar injustiça contra si: nesse sentido todo sofrimento exterior trazido por acaso ou maldade, cada injúria, cada ignomínia, cada dano são-lhe bem-vindos: recebe-os alegremente como ocasião para dar a si mesmo a certeza de que não mais afirma a vontade, mas alegremente toma partido de cada inimigo da APARÊNCIA DA VONTADE que é a sua própria pessoa. Por consequência, suporta os danos e sofrimentos com a paciência inesgotável e o ânimo brando; paga o mau com o bom, sem ostentação, e de modo algum permite ao fogo da cólera e da cobiça acenderem-se novamente em si. — Tanto quanto à vontade mesma, ele mortifica a sua visibilidade, a sua objetidade, o corpo: alimenta-o de maneira módica para evitar que seu florescimento exuberante e prosperidade novamente animem e estimulem fortemente a vontade, da qual ele é simples expressão e espelho. Assim, pratica o jejum, sim, pratica a castidade, a autopunição, o autoflagelo, a fim de mediante constantes privações e sofrimentos quebrar e mortificar cada vez mais a vontade, que reconhece e abjura como a fonte do sofrimento da própria existência e do mundo. — Se, ao fim, advém a morte, que extingue esta APARÊNCIA DA VONTADE, cuja essência aqui há muito expirou pela livre negação de si mesma, exceto no fraco resto que aparece na vitalidade do corpo — então essa morte é muito bem-vinda e alegremente recebida como a redenção esperada. Com essa morte não finda, diferentemente dos outros casos, apenas a aparência; mas, a essência mesma que aqui ainda tinha tão só uma existência débil é, em e através da aparência, suprimida; o último e delgado laço é rompido. Para quem assim finda, findou O mundo ao mesmo tempo. [MVR1: §68]

69. Nada mais difere tanto da negação da Vontade de vida exposta suficientemente nos limites do nosso modo de consideração e que constitui o único ato de liberdade da vontade que emerge na aparência, portanto é, como Asmus a define, a conversão transcendental, do que a efetiva supressão da aparência individual da vontade, na efetividade, pelo SUICÍDIO. Este, longe de ser negação da vontade, é um fenômeno que vigorosamente a afirma. Pois a essência da negação da vontade reside não em os sofrimentos, mas em os prazeres, repugnarem. O suicida quer a vida, porém está insatisfeito com as condições sob as quais a vive. Quando destrói a aparência individual, ele de maneira alguma renuncia à Vontade de vida, mas tão somente a viver. Ele ainda quer a vida, quer a existência e a afirmação sem obstáculos do corpo; porém, como a combinação das circunstâncias não o permite, o resultado é um grande sofrimento. A Vontade de vida mesma é encontrada nessa aparência particular tão fortemente travada que não pode desdobrar o seu esforço. Por isso decide-se em acordo com a sua essência em si, que se encontra exterior às figuras do princípio de razão e para a qual toda aparência particular é indiferente; decisão tomada na medida em que a Vontade de vida mesma permanece intocada em meio a todo nascer e perecer, pois é o íntimo vital de todas as coisas. Pois aquela certeza firme, íntima, que permite a todos nós vivermos sem o terror contínuo da morte, vale dizer, a certeza de que à vontade jamais pode faltar a sua aparência, também apoia o ato de suicídio. A Vontade de vida aparece tanto na morte autoimposta quanto no prazer da conservação pessoal e na volúpia da procriação. Essa é a significação íntima da UNIDADE DO TRIMURTI, que cada ser humano é por inteiro, embora no tempo ela destaque ora uma ora outra de suas três cabeças. — O suicídio está para a negação da vontade como a coisa isolada está para a ideia: o suicida nega tão somente o indivíduo, não a espécie. Como à Vontade de vida a vida é sempre certa e a esta o sofrimento é essencial, o suicídio, a destruição arbitrária de uma aparência singular, é uma ação inútil e tola, pois a coisa em si permanece intacta como o arco-íris imóvel em meio à rápida mudança das gotas, que por instantes são o seu sustentáculo. O suicídio é, em realidade, a obra-prima de mâyâ, na forma do mais gritante índice de contradição da Vontade de vida consigo mesma. Reconhecemos essa contradição nas aparências mais elementares da vontade, na luta contínua de todas as exteriorizações das forças naturais e de todos os indivíduos orgânicos por matéria, tempo e espaço; vimos como esse conflito entra em cena aos poucos com distinção terrível nos graus ascendentes de objetivação da vontade; ao fim, no grau mais elevado desta, a ideia de humanidade, esse conflito atinge o grau no qual não apenas os indivíduos que expõem a mesma ideia se exterminam uns aos outros, mas o mesmo indivíduo declara guerra a si, e a veemência com a qual ele quer a vida e se revolta contra a travação da mesma, a saber, o sofrimento, o leva a destruir-se, de tal maneira que a vontade individual, mediante um ato volitivo, suprime o corpo, que é apenas a sua visibilidade, e isso antes que o sofrimento quebre a vontade. Precisamente porque o suicida não pode cessar de querer, cessa de viver, e a vontade afirma-se aqui justamente pela supressão de sua aparência, pois não pode mais afirmar-se de outro modo. Ora, como era exatamente o sofrimento, ao qual o indivíduo quer se furtar, o que, enquanto mortificação da vontade, o poderia conduzir à negação de si mesmo e à redenção, segue-se daí que, neste aspecto, o suicida assemelha-se a um doente que após ter começado uma dolorida operação de cura radical não permite o seu término, preferindo permanecer doente. O sofrimento aproxima-se e, enquanto tal, abre-lhe a possibilidade de negação da vontade, porém ele a rejeita ao destruir a APARÊNCIA DA VONTADE, o corpo, de tal forma que a vontade permanece inquebrantável. — Eis por que todas as éticas, tanto filosóficas quanto religiosas, condenam o suicídio, embora elas mesmas nada possam fornecer senão estranhos argumentos sofísticos. Entretanto, se uma pessoa, a partir de puros motivos morais, devesse guardar-se do suicídio, o sentido mais íntimo deste auto-ultrapassamento seria o seguinte: “Eu não quero evitar o sofrimento, pois este pode contribuir para a supressão da Vontade de vida, cuja aparência é tão cheia de penúria; o conhecimento agora em mim já despertado da essência verdadeira do mundo é fortalecido e torna-se o quietivo final da minha vontade e, assim, me redime para sempre”. [MVR1: §69]

Não os indivíduos considerados segundo o princípio de razão, mas a ideia de humanidade considerada em sua unidade, é o que a doutrina cristã simboliza como a NATUREZA, a AFIRMAÇÃO DA VONTADE DE VIDA, EM ADÃO. O pecado herdado de Adão, isto é, a nossa unidade com ele na ideia, que se expõe no tempo por meio do laço da procriação, faz de todos nós partícipes do sofrimento e da morte eterna: por outro lado, a doutrina cristã simboliza a GRAÇA, a NEGAÇÃO DA VONTADE, a REDENÇÃO, na forma de Deus tornado homem, que, livre de toda pecaminosidade, isto é, de todo querer-viver, não pode ter-se originado da mais decisiva afirmação da vontade, como nós, nem pode ter um corpo como o nosso, que é inteiramente vontade concreta, APARÊNCIA DA VONTADE; mas, nascido da jovem e pura virgem, tem um corpo só aparente. Os docetas, ou seja, certos padres da Igreja, sustentaram esta última tese, defendida em especial por Apeles, contra o qual insurgiu-se Tertuliano  . Mas até mesmo Agostinho comenta a passagem Romanos 8, 3: “Deus filium suum misit in similitudinem carnis peccati”, portanto: “Non enim caro peccati erat, quae non de carnali delectatione nata erat: sed tamen inerat ei similitudo carnis peccati, quia mortalis caro erat”. Ele também ensina na sua obra Opus imperfectum, que o pecado original é pecado e punição ao mesmo tempo: encontra-se já na criança recém-nascida, porém se mostra apenas quando ela cresce. A origem do pecado, contudo, deve ser inferida da vontade do pecador. Tal pecador foi Adão, no entanto todos nós existimos nele: Adão foi infeliz, e nele todos nos tornamos infelizes. — Em realidade, a doutrina do pecado original e a da redenção é a grande verdade que constitui o cerne do cristianismo, o resto sendo, na maioria das vezes, apenas vestimentas e invólucro, ou algo acessório. De acordo com isso, devemos sempre conceber Jesus Cristo no universal, como símbolo ou como personificação da negação da Vontade de vida; não individualmente, seja de acordo com a história mítica nos evangelhos, ou segundo a história provavelmente verdadeira que está no fundamento destes. Pois é difícil ficar completamente satisfeito seja com um caso ou com outro. Trata-se aí somente de um veículo para o povo, que sempre exige algo fático, daquela primeira concepção. — Que em nossa época o cristianismo tenha esquecido sua verdadeira significação e degenerado num otimismo rasteiro não nos concerne aqui. [MVR1: §70]

Nós, no entanto, situados firmemente no ponto de vista da filosofia, temos aqui de nos contentar com o conhecimento negativo, satisfeitos por ter alcançado o último marco-limite do conhecimento positivo. Se, portanto, reconhecemos a essência em si do mundo como a vontade e vimos em todas as aparências apenas a sua objetidade; se seguimos a esta desde o ímpeto sem conhecimento da obscura força natural até a ação mais consciente do ser humano; então de modo algum fugiremos da consequência de que com a livre negação e supressão da vontade também são suprimidas todas aquelas aparências; os contínuos ímpetos e esforços sem alvo, sem repouso em todos os graus de objetidade nos quais e através dos quais o mundo subsiste, as multifacetadas formas seguindo-se umas às outras em gradação, toda a APARÊNCIA DA VONTADE, por fim até mesmo as formas universais da aparência, tempo e espaço, e também a última forma dela, sujeito e objeto: tudo isso é suprimido com a vontade. Nenhuma vontade: nenhuma representação, nenhum mundo. [MVR1: §71]

Diante de nós permanece apenas o nada. Mas aquilo que se insurge contra este desaparecimento no nada, a saber, nossa natureza, é em verdade apenas a Vontade de vida, que nós mesmos somos, como ela é o mundo diante de nós. Que o nada nos repugne tanto, isto é apenas uma expressão diferente do quanto queremos a vida, e nada somos senão esta vontade, e nada conhecemos senão ela. — Se, entretanto, desviamos os olhos da nossa própria indigência e aprisionamento em direção àqueles que ultrapassaram o mundo, nos quais a vontade, tendo alcançado o pleno conhecimento de si, encontrou-se novamente em todas as coisas e em seguida negou-se livremente, àqueles que meramente esperam ver o último vestígio da vontade desaparecer junto com o corpo por ele animado; então se nos mostra, em vez do ímpeto e esforço sem fim, em vez da contínua transição do desejo para o medo e da alegria para o sofrimento, em vez da esperança nunca satisfeita e que jamais morre, constituinte do sonho de vida do ser humano que quer; em vez de tudo isso, mostra-se a nós aquela paz que é superior a toda razão, aquela completa calmaria oceânica do espírito, aquela profunda tranquilidade, confiança inabalável e serenidade jovial, cujos meros reflexos no rosto, como expostos por Rafael e Correggio, são um completo e seguro evangelho: apenas o conhecimento restou, a vontade desapareceu. Nós, entretanto, miramos esse estado com profundo e doloroso anelo, ao lado do qual, por contraste, o nosso estado aparece em plena luz na sua condição cheia de tormento e sem salvação. Entretanto, esta consideração é a única que nos pode consolar duradouramente, quando, de um lado, reconhecemos que sofrimento incurável e tormento sem fim são essenciais à APARÊNCIA DA VONTADE, ao mundo, e, de outro, vemos, pela vontade suprimida, o mundo desaparecer, e pairar diante de nós apenas o nada. Dessa forma, pela consideração da vida e conduta dos santos, cujo encontro nos é raras vezes permitido em nossa experiência, mas cuja vida nos é narrada em suas histórias, e trazida diante dos olhos pela arte com o selo da verdade interior, havemos de dissipar a lúgubre impressão daquele nada, que como o último fim paira atrás de toda virtude e santidade, e que tememos como as crianças temem a escuridão; melhor isso, em vez de nos esquivarmos do tema, como o fazem os hindus, através de mitos e palavras vazias de sentido, como “reabsorção em BRAHMAN”, ou “NIRVÃNA” dos buddhistas. Antes, reconhecemos francamente: para todos aqueles que ainda estão cheios de vontade, o que resta após a completa supressão da vontade é, certamente, o nada. Mas, inversamente, para aqueles nos quais a vontade virou e se negou, este nosso mundo tão real com todos os seus sóis e vias lácteas é — Nada. [MVR1: §71]