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Schopenhauer (MVR1): serviço da vontade

quinta-feira 25 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

  

Do exposto se infere que todos os animais possuem entendimento, mesmo os mais imperfeitos, pois todos conhecem objetos, e este conhecimento determina, como motivo, os seus movimentos. — O entendimento é o mesmo em todos os animais e em todos os seres humanos, possui sempre e em toda parte a mesma forma simples: conhecimento da causalidade, passagem do efeito à causa e desta ao efeito, e nada mais. Porém o grau de acuidade do entendimento e a extensão de sua esfera cognitiva são extremamente diversos, variados e se escalonam em diferentes graus, desde o mais baixo, que conhece apenas a relação causal entre os objetos imediato e mediato — e, por conseguinte, é suficiente apenas para a passagem da ação que o corpo sofre à sua causa, intuindo esta como objeto no espaço —, até os graus mais elevados de conhecimento da conexão causal dos objetos meramente mediatos entre si, que atinge até a compreensão das mais complexas cadeias de causa e efeito na natureza. Pois também esta última modalidade de conhecimento pertence sempre ao entendimento, não à razão, cujos conceitos abstratos podem servir apenas para recolher aquela compreensão imediata, fixá-la e combiná-la, jamais produzi-la. Cada força e lei natural, não importa onde se exteriorize, têm de primeiro ser conhecida imediatamente e apreendida intuitivamente pelo entendimento, antes de aparecer in abstracto na consciência refletida para a razão. Uma apreensão intuitiva e imediata do entendimento foi a descoberta da lei de gravitação por R. Hookes, bem como a remissão de tantos e importantes fenômenos a essa lei, o que logo foi confirmado pelos cálculos de Newton; também desse tipo foi a descoberta de Lavoisier do oxigênio e do seu papel significativo na natureza; bem como a descoberta de Goethe   da origem das cores físicas. Todas essas descobertas são simplesmente um regresso imediato e correto do efeito à causa, seguido do conhecimento rápido da identidade da força natural que se exterioriza em todas as causas análogas: tal intelecção em seu todo é uma expressão, diferente apenas segundo o grau, da única e mesma função do entendimento, pela qual também um animal intui, como objeto no espaço, a causa que faz efeito sobre o seu corpo. Por conseguinte, todas essas grandes descobertas são, semelhantes à intuição ou a qualquer expressão do entendimento, intelecções imediatas e como tais a obra de um momento, um apperçu, uma súbita apreensão, não o produto de longas cadeias dedutivas in abstracto. Estas últimas, ao contrário, servem para a razão fixar em conceitos abstratos o conhecimento imediato do entendimento, isto é, torná-la claro, vale dizer, pô-la na condição de os outros interpretarem e descobrirem o seu sentido. — Aquela acuidade do entendimento em apreender as relações causais dos objetos indiretamente conhecidos encontra a sua aplicação não apenas na ciência da natureza, mas também na vida prática, onde se chama PRUDÊNCIA; enquanto na aplicação científica seria mais apropriadamente chamada argúcia, penetração, sagacidade. Tomada em seu sentido mais exato a PRUDÊNCIA indica exclusivamente o entendimento a SERVIÇO DA VONTADE. Não obstante, os limites de tais conceitos nunca podem ser traçados rigidamente, visto que se trata de uma única e mesma função do entendimento que já é ativo em qualquer animal quando da intuição dos objetos no espaço. Função esta que, no seu maior grau de acuidade, investiga corretamente nas aparências da natureza a causa desconhecida do efeito dado e, assim, fornece à razão o estofo para o pensamento de regras universais e leis da natureza; certas vezes, mediante a aplicação de causas conhecidas para alcançar efeitos intencionados, inventa máquinas complicadas e engenhosas; ou, aplicada à motivação, vê através de, tece intrigas ardilosas, maquinações ou também manipula seres humanos com os motivos para os quais são receptivos, colocando-os em movimento segundo o seu bel-prazer, como máquinas munidas de rodas e alavancas, e os conduzem ao fim desejado. — Carência de entendimento se chama, no sentido estrito do termo, ESTUPIDEZ e significa precisamente OBTUSIDADE NA APLICAÇÃO DA LEI DE CAUSALIDADE, incapacidade para a apreensão imediata da cadeia de causa e efeito, ou de motivo e ação. Um estúpido não reconhece a conexão das aparências naturais, mesmo onde estas entram em cena conectadas por si mesmas ou são intencionalmente controladas, isto é, produzidas por máquinas — por isso acredita candidamente em magias e milagres. Um estúpido não nota que pessoas diferentes, aparentemente independentes umas das outras, na verdade agem conjuntamente de maneira concertada: daí deixar-se com facilidade mistificar ou intrigar; não nota os motivos secretos dos conselhos que lhe são dados nem dos juízos proferidos etc. Sempre lhe falta apenas uma coisa: acuidade, rapidez, facilidade na aplicação da lei de causalidade, isto é, faculdade de entendimento. — O caso mais significativo, e, no contexto aqui considerado, bastante instrutivo, de estupidez que conheci foi o de um rapaz no todo imbecil, com cerca de onze anos, internado num manicômio, que até possuía faculdade de razão, pois falava e compreendia, mas em termos de entendimento situava-se abaixo de muitos animais: todas as vezes que eu chegava, ele detinha-se na consideração duma lente de óculo que eu trazia pendurada no pescoço e na qual apareciam refletidas a janela do quarto e a copa da árvore atrás desta: todas às vezes, ele era sempre assaltado de grande admiração e alegria, nunca se cansando de observar a lente com espanto, visto que não entendia a causalidade absolutamente imediata do reflexo da luz. [MVR1: §6]

O conhecimento em geral, quer simplesmente intuitivo quer racional, provém portanto originariamente da vontade e pertence à essência dos graus mais elevados de sua objetivação, como simples, um meio para conservação do indivíduo e da espécie como qualquer outro órgão do corpo. Por conseguinte, originariamente a SERVIÇO DA VONTADE para realização de seus fins, o conhecimento permanece-lhe quase sempre servil, em todos os animais e em quase todos os seres humanos. Todavia, veremos no terceiro livro como o conhecimento, em alguns seres humanos, furta-se a essa servidão, emancipa-se desse jugo e pode subsistir para si mesmo livre de todos os fins do querer, como límpido espelho do mundo, do qual procede a arte. Finalmente, no quarto livro, veremos como mediante esse modo de conhecimento, retroagindo sobre a vontade, pode levar à autossupressão da vontade, ou seja, à resignação, que é o alvo final, a essência íntima de toda virtude e santidade, a própria redenção do mundo. [MVR1: §27]

34. A transição possível- embora, como dito, só como exceção — do conhecimento comum das coisas isoladas para o conhecimento das ideias ocorre subitamente, quando o conhecimento se liberta do SERVIÇO DA VONTADE e, por aí, o sujeito cessa de ser indivíduo, tornando-se puro sujeito do conhecimento destituído de vontade, sem mais seguir as relações conforme o princípio de razão: como tal, ele concebe em fixa contemplação o objeto que lhe é oferecido, exterior à conexão com outros objetos; ele repousa nessa contemplação, absorve-se nela. [MVR1: §34]

36. A história segue o fio dos acontecimentos: ela é pragmática, na medida em que deduz esses acontecimentos da lei de motivação, a qual determina a vontade que aparece lá onde é iluminada pelo conhecimento. Nos graus mais baixos de objetidade da vontade, onde esta ainda atua sem conhecimento, a ciência da natureza, como etiologia, considera as leis de mudança das suas aparências e, como morfologia, considera o que é permanente nestas, e seu tema quase infinito é facilitado pela ajuda dos conceitos, ao compreender em visão sumária o universal, para daí deduzir o particular. Por fim, a matemática considera as meras formas, nas quais as ideias aparecem espraiadas na pluralidade para o conhecimento do sujeito como indivíduo, logo, o tempo e o espaço. Todos esses domínios, cujo nome comum é ciência, seguem, portanto, o princípio de razão em suas diversas figuras, e seu tema permanece a aparência, suas leis, conexões e relações daí resultantes. — Entretanto, qual modo de conhecimento considera unicamente o essencial propriamente dito do mundo, alheio e independente de toda relação, o conteúdo verdadeiro das aparências, não submetido a mudança alguma e, por conseguinte, conhecido com igual verdade por todo o tempo, numa palavra, as IDEIAS, que são a objetidade imediata e adequada da coisa em si, a vontade? — Resposta: é a ARTE, a obra do gênio. A arte repete as ideias eternas apreendidas por pura contemplação, o essencial e permanente de todas as aparências do mundo; de acordo com o estofo em que ela o repete, tem-se arte plástica, poesia ou música. Sua única origem é o conhecimento das ideias; seu único fim, a comunicação desse conhecimento. A ciência segue a torrente infinda e incessante das diversas formas de fundamento e consequência: a cada fim alcançado ela é novamente atirada mais adiante, nunca podendo encontrar um objetivo final ou uma satisfação completa, da mesma maneira como não se pode, correndo, alcançar o ponto onde as nuvens tocam a linha do horizonte; a arte, ao contrário, encontra em toda parte o seu fim. Pois a arte retira o objeto de sua contemplação da torrente do curso do mundo e o isola diante de si, e esse particular, que era naquela torrente fugidia uma parte ínfima a desaparecer, torna-se um representante do todo, um equivalente no espaço e no tempo do muito infinito: a arte se detém nesse particular, a roda do tempo para: as relações desaparecem: apenas o essencial, a ideia, é o seu objeto. — Podemos, por conseguinte, definir a arte COMO O MODO DE CONSIDERAÇÃO DAS COISAS INDEPENDENTE DO PRINCÍPIO DE RAZÃO, em oposição justamente à consideração que o segue, que é o caminho da experiência e da ciência. Este último tipo de consideração é comparável a uma linha infinita que corre horizontalmente; o primeiro, entretanto, a uma linha vertical que a corta num ponto qualquer. O modo de consideração que segue o princípio de razão é o racional, único que vale e que auxilia na vida prática e na ciência: o modo que desvia o olhar do conteúdo do princípio de razão é o genial, único que vale e que auxilia na arte. O primeiro é o modo de consideração de Aristóteles; o segundo é, no todo, O de Platão. O primeiro é comparável a uma tempestade violenta que desaba sem princípio nem fim e que tudo verga, movimenta e arrasta consigo; O segundo, ao tranquilo raio de Sol que corta o caminho da tempestade, totalmente intocado por ela. O primeiro é comparável às inumeráveis gotas de uma cascata que se movimentam violentamente e que, sempre mudando, não se detêm um único momento; o segundo, a um calmo e sereno arco-íris que paira sobre esse tumulto. — Apenas pela pura contemplação a dissolver-nos completamente no objeto é que as ideias são apreendidas, e a essência do GÊNIO consiste justamente na capacidade proeminente para tal contemplação: ora, visto que só o gênio é capaz de um esquecimento completo da própria pessoa e de suas relações, segue-se que a GENIALIDADE nada é senão a OBJETIVIDADE mais perfeita, ou seja, orientação objetiva do espírito, em oposição à subjetiva que vai de par com a própria pessoa, isto é, com a vontade. Em consequência, a genialidade é a capacidade de proceder de maneira puramente intuitiva, de perder-se na intuição e de afastar por inteiro dos olhos o conhecimento que existe originariamente apenas para o SERVIÇO DA VONTADE, isto é, deixar de lado o próprio interesse, o próprio querer e os seus fins, com o que a personalidade se ausenta completamente por um tempo, restando apenas o PURO SUJEITO QUE CONHECE, claro olho cósmico: tudo isso não por um instante, mas de modo duradouro e com tanta clarividência quanto for preciso para reproduzir, numa arte planejada, o que foi apreendido e, como diz Goethe, “fixar em pensamentos duradouros o que oscila na aparência”. É como se, para que o gênio aparecesse num indivíduo, a este tivesse de caber uma medida da faculdade de conhecimento que ultrapassa em muito aquela exigida para o serviço de uma vontade individual; excedente de conhecimento este que, livre no sujeito do conhecimento destituído de vontade, torna-se espelho límpido da essência do mundo. — Daí se esclarece a vivacidade em indivíduos geniais, que beira a nervosidade, na medida em que o presente quase nunca lhes basta, já que não preenche a sua consciência: daí resulta aquela tendência ao desassossego, aquela procura incansável por novos objetos dignos de consideração, o anseio quase nunca satisfeito por seres que lhe sejam semelhantes e que os ombreie e com os quais possam comunicar-se; já o filho comum da Terra; ao contrário, plenamente satisfeito com o presente comum, absorve-se nele e em toda parte encontra o seu igual, possuindo aquele conforto especial na vida cotidiana que é negado ao gênio. — Reconheceu-se a fantasia como um componente essencial da genialidade, com razão; mas às vezes se julgou que a fantasia e o gênio seriam idênticos, O que é um erro. O vigor da fantasia é um componente do gênio, pelo seguinte: os objetos do gênio enquanto tais são as ideias, as formas essenciais e permanentes do mundo e de todas as suas aparências; o conhecimento da ideia, todavia, é necessariamente intuitivo, não abstrato; em consequência, o conhecimento do gênio seria limitado às ideias dos objetos efetivamente presentes à sua pessoa, e seria portanto dependente da concatenação das circunstâncias que conduz àqueles objetos, caso a fantasia não ampliasse o seu horizonte, alargando-o para além da realidade de sua experiência pessoal; portanto, a fantasia põe o gênio na condição de, a partir do pouco que chegou à sua apercepção efetiva, construir todo o resto e assim deixar desfilar diante de si quase todas as cenas possíveis da vida. Ademais, os objetos efetivos são quase sempre apenas exemplares bastante imperfeitos da ideia que neles se expõe: por isso o gênio precisa da fantasia para ver nas coisas não o que a natureza efetivamente formou, mas o que se esforçava por formar, porém, devido à luta de suas formas entre si, não conseguiu levar a bom termo. Logo voltaremos ao assunto quando da consideração da escultura. A fantasia, conseguintemente, amplia o círculo de visão do gênio para além dos objetos que se oferecem na efetividade à sua pessoa, em termos tanto de qualidade quanto de quantidade. Eis por que a força incomum da fantasia é companheira, sim, condição da genialidade. Todavia, a primeira não é signo de gênio; antes, pessoas completamente desprovidas de gênio podem possuir bastante fantasia. Em verdade, assim como se pode considerar um objeto da realidade de duas maneiras opostas, uma puramente objetiva, genial, que contempla a sua ideia, outra comum, que considera meramente as suas relações com os outros objetos e com a própria vontade em conformidade com o princípio de razão, assim também se pode intuir um fantasma por essas duas maneiras: no primeiro caso ele é um meio para conhecimento da ideia, cuja comunicação é a obra de arte, no segundo ele é utilizado para a construção de castelos no ar, que alimentam o egoísmo e o humor próprios, divertem e iludem momentaneamente. Dos fantasmas assim conectados são conhecidas sempre, a bem dizer, apenas as relações. Quem joga esse jogo é um fantasista: ele mistura facilmente com a efetividade as imagens com que se diverte em sua solidão, com o que justamente se tornam impróprias para a efetividade: ele talvez escrevinhe as suas fantasmagorias, e daí vêm a lume os romances comuns de todos os gêneros que divertem seus iguais e o grande público: os leitores sonham ao se pôr no lugar do herói, achando então a exposição bastante “espirituosa”. [MVR1: §36]

A pessoa comum, esse produto de fábrica da natureza, que ela produz aos milhares todos os dias, é, como dito, completamente incapaz de deter-se numa consideração plenamente desinteressada, a qual constitui a contemplação propriamente dita: ela só pode direcionar a sua atenção para as coisas na medida em que estas possuem alguma relação, por mais indireta que seja, com a sua vontade. Ora, como a esse respeito o que é exigido é sempre o conhecimento das relações, segue-se que o conceito abstrato da coisa se torna suficiente e muitas vezes mais apropriado; por isso a pessoa comum não permanece muito tempo na simples intuição, por conseguinte não prende seu olhar detidamente no objeto, mas, em tudo que se oferece a ela, procura rapidamente o conceito sob o qual possa subsumi-lo — como o preguiçoso busca uma cadeira — e depois não se interessa mais pelo assunto. Eis por que ela logo se dá por contente com tudo, com obras de arte, com belos objetos naturais e com a consideração propriamente significativa da vida em todas as suas partes e cenas. Ela não se detém, procura tão somente seu caminho na vida, ou ao menos aquilo que poderia se tornar seu caminho, portanto notícias topográficas no sentido mais amplo do termo: com a consideração da vida mesma, enquanto tal, não perde tempo. A pessoa genial, ao contrário, cuja faculdade de conhecimento, pelo seu excedente, furta-se por instantes ao SERVIÇO DA VONTADE, detém-se na consideração da vida mesma e em cada coisa com que depara esforça-se por apreender a sua ideia, não suas relações com outras coisas: por isso negligencia frequentemente a consideração do seu próprio caminho na vida, trilhando-o na maior parte das vezes com passos desajeitados. Para a pessoa comum, a faculdade de conhecimento é a lanterna que ilumina o seu caminho; já para a pessoa genial, é o Sol que revela o mundo. Essas maneiras tão diferentes de ver a vida logo se tornam evidentes na expressão de ambos. O olhar da pessoa na qual vive e atua o gênio distingue-o facilmente, na medida em que, ao mesmo tempo vivaz e firme, porta o caráter da consideração, da contemplação; vemos isso nos retratos das poucas cabeças geniais que a natureza criou aqui e ali entre incontáveis milhões de seres humanos: ao contrário, o olhar da pessoa comum, quando não se mostra, como na maioria das vezes, obtuso ou insípido, faz visível o verdadeiro oposto da contemplação, o espionar. Em conformidade com tudo isso, a “expressão genial” de uma cabeça consiste numa visível e decisiva proeminência do conhecer sobre a vontade; por conseguinte, também um conhecer destituído de toda relação com o querer, noutros termos, um CONHECER PURO se expressa ali. Nas cabeças comuns, ao contrário, predomina a expressão do querer, e se vê que o conhecimento só entrou em atividade devido ao impulso do querer, portanto é orientado meramente por motivos. [MVR1: §36]

38. Encontramos no modo de conhecimento estético DOIS COMPONENTES INSEPARÁVEIS: primeiro o conhecimento do objeto não como coisa isolada, mas como IDEIA platônica, ou seja, como forma permanente de todo esse gênero de coisas; depois a consciência de si daquele que conhece, não como indivíduo, mas como PURO SUJEITO DO CONHECIMENTO DESTITUÍDO DE VONTADE. A condição sob a qual esses dois componentes entram em cena sempre unidos é o abandono do modo de conhecimento ligado ao princípio de razão, único útil tanto para o SERVIÇO DA VONTADE quanto da ciência. — Desses dois componentes do modo de conhecimento estético resulta também a SATISFAÇÃO despertada pela consideração do belo e, em verdade, mais de um ou mais de outro, conforme o objeto da contemplação. Todo QUERER nasce de uma necessidade, portanto de uma carência, logo, de um sofrimento. A satisfação põe um fim ao sofrimento; todavia, contra cada desejo satisfeito permanecem pelo menos dez que não o são: ademais, a nossa cobiça dura muito, as nossas exigências não conhecem limites; a satisfação, ao contrário, é breve e módica. Mesmo a satisfação final é apenas aparente: o desejo satisfeito logo dá lugar a um novo: aquele é um erro conhecido, este um erro ainda desconhecido. Objeto algum alcançado pelo querer pode fornecer uma satisfação duradoura, sem fim, mas ela assemelha-se a uma esmola atirada ao mendigo, a qual torna sua vida menos miserável hoje, e no entanto prolonga seu tormento amanhã. — Daí, portanto, deixar-se inferir o seguinte: pelo tempo em que o querer preenche a nossa consciência, pelo tempo em que estamos entregues ao ímpeto dos desejos com suas contínuas esperanças e temores, por conseguinte, pelo tempo em que somos sujeito do querer, jamais obtemos felicidade duradoura ou paz. E em essência é indiferente se perseguimos ou somos perseguidos, se tememos a desgraça ou almejamos o gozo: o cuidado pela vontade sempre exigente, não importa em que figura, preenche e move continuamente a consciência; sem tranquilidade, entretanto, nenhum bem-estar verdadeiro é possível. O sujeito do querer, consequentemente, está sempre atado à roda de Íxion, que não cessa de girar, está sempre enchendo os tonéis das Danaides, é o eternamente sedento Tântalo. [MVR1: §38]

Efeito tão intenso origina-se exclusivamente da força interna de uma mente artística: aquela disposição mental puramente objetiva será favorecida e fomentada exteriormente pela intuição de objetos que predispõem a ela, pela exuberância da bela natureza que nos convida à sua contemplação, e que até mesmo se nos impõe. A natureza, ao apresentar-se de um só golpe ao nosso olhar, quase sempre consegue nos arrancar, embora apenas por instantes, à subjetividade, à escravidão do querer, colocando-nos no estado de puro conhecimento. Com isso, quem é atormentado por paixões, ou necessidades e preocupações, torna-se, mediante um único e livre olhar na natureza, subitamente aliviado, sereno, reconfortado: a tempestade das paixões, o ímpeto dos desejos e todos os tormentos do querer são, de imediato, de uma maneira maravilhosa, acalmados. Pois no instante em que, libertos do querer, entregamo-nos ao puro conhecimento destituído de vontade, como que entramos num outro mundo, onde tudo o que excita a nossa vontade e nos abala veementemente desaparece. Tal libertação pelo conhecimento sobreleva-nos de forma tão completa quanto o sono e o sonho: felicidade e infelicidade desaparecem: não somos mais indivíduo, este foi esquecido, mas puro sujeito do conhecimento: existimos tão somente como UM olho cósmico que olha a partir de todo ser que conhece, porém apenas no ser humano pode tornar-se inteiramente livre do SERVIÇO DA VONTADE, com o que todas as diferenças de individualidade desaparecem tão completamente que é indiferente se o olho de quem vê pertence a um rei poderoso ou a um mendigo miserável. Pois felicidade e penúria não são transportadas além daqueles limites. Note-se o quão próximo de nós encontra-se um domínio no qual podemos furtar-nos por completo à nossa penúria! Mas quem tem a força para nele manter-se por longo tempo? Assim que surge novamente na consciência uma relação com a vontade, com a nossa pessoa, e precisamente dos objetos intuídos puramente, o encanto chega ao fim: recaímos no conhecimento regido pelo princípio de razão; não mais conhecemos a ideia, mas a coisa isolada, elo de uma cadeia à qual nós mesmos pertencemos, e de novo somos abandonados às nossas penúrias. — A maioria das pessoas quase sempre se situa nesse ponto de vista, já que lhes falta por completo a objetividade, isto é, a genialidade. Isso explica por que não se sentem bem ao estarem sozinhos com a natureza e nela precisam de sociedade, ou ao menos de um livro. Seu conhecer permanece servil à vontade: procuram, por conseguinte, só por aqueles objetos que têm alguma relação com a sua vontade, e tudo que não tenha semelhante relação ecoa em seu íntimo como um baixo fundamental propalando um contínuo e inconsolável “de nada serve”: daí advém que na solidão até mesmo a mais bela cercania assume para tais pessoas um aspecto desolado, cinza, estranho, hostil. [MVR1: §38]

Por meio de todas essas considerações espero ter tornado claro de que espécie e envergadura é a participação que possui a condição subjetiva da satisfação estética, ou seja, a libertação do conhecer do SERVIÇO DA VONTADE, o esquecimento do próprio si mesmo como indivíduo, e a elevação da consciência ao puro sujeito do conhecer atemporal e destituído de vontade, independente de todas as relações. Com esse lado subjetivo da contemplação estética sempre entra em cena simultaneamente, como correlato necessário, o lado objetivo, a apreensão intuitiva da ideia platônica. Antes, porém, de passarmos à consideração mais detalhada desse lado objetivo e às realizações da arte a ele relacionadas, é aconselhável ainda nos determos no lado subjetivo da satisfação estética e coroarmos a sua consideração com a explicitação da impressão do SUBLIME: pois este depende por inteiro da condição subjetiva da impressão estética e nasce por meio de uma modificação dela. Depois consideraremos o lado objetivo da satisfação estética, e assim será completada toda a investigação. [MVR1: §38]

Desde o primeiro instante de aparecimento de sua consciência, o ser humano encontra-se a si mesmo como um ser que quer, e, via de regra, seu conhecimento permanece em constante relação com a vontade. Primeiro procura conhecer plenamente os objetos do querer; em seguida os meios para eles. Sabe, então, o que tem de fazer e, via de regra, não se empenha por outro conhecimento. Age e impele-se: sua consciência sempre trabalha direcionada ao alvo do seu querer, mantendo-o atento e ativo: seu pensamento concentra-se na escolha dos meios. Assim é a vida de quase todos os humanos: querem, sabem o que querem, esforçam-se em favor disso com sucesso suficiente para protegerem-se do desespero, e suficiente fracasso para protegerem-se do tédio e suas consequências. Daí advém certa jovialidade de ânimo, ao menos serenidade, que não pode, propriamente dizendo, ser mudada por riqueza nem pobreza, visto que o rico e o pobre em realidade não fruem o que têm — pois isto, como mostrado, faz efeito apenas negativamente —, mas sim aquilo que esperam alcançar mediante seus esforços. Impelem-se para a frente com muita seriedade, sim, com feições importantes: como também o fazem as crianças em suas brincadeiras. — É sempre uma exceção se semelhante decurso de vida sofre uma interferência e, devido a um conhecimento independente do SERVIÇO DA VONTADE e direcionado à essência do mundo em geral, convida à contemplação estética ou à renúncia ética. A maioria das pessoas é em suas vidas perseguida pela necessidade que não lhes permite chegar à circunspecção. Por outro lado, a vontade amiúde inflama-se a tal grau de afirmação que em muito excede a afirmação do corpo; neste caso, mostram-se afetos veementes e paixões violentas, nos quais o indivíduo não somente afirma a própria existência, mas nega a dos outros, procurando suprimi-las quando obstam o seu caminho. [MVR1: §60]

Decerto, para o conhecimento, nos moldes em que se apresenta a SERVIÇO DA VONTADE e como chega ao indivíduo enquanto tal, o mundo não aparece naquela forma em que finalmente é desvelado ao investigador, ou seja, como a objetidade de uma única e mesma Vontade de vida, que é o investigador mesmo; mas, como dizem os indianos, o véu de mãyã turva o olhar do indivíduo comum: a este se mostra, em vez da coisa em si, meramente a aparência no tempo e no espaço, no principium individuationis e nas demais figuras do princípio de razão: limitado a tal forma de conhecimento, o indivíduo não vê a essência das coisas, que é una, mas suas aparências isoladas, separadas, inumeráveis, bastante diferentes e opostas entre si. A ele aparece a volúpia como uma coisa, e o tormento como outra diferente; esta pessoa como atormentada e assassina, aquela outra como mártir e vítima; o mau como uma coisa, o padecimento como outra. Vê uma pessoa vivendo na alegria, na abundância e em volúpias e, ao mesmo tempo, vê nas portas dela outra morrer atormentada por miséria e frio. Daí perguntar: onde se encontra a retaliação? Ora, ele mesmo, em ímpeto veemente da vontade, que é a sua origem e a sua essência, lança-se às volúpias e aos gozos da vida, abraça-os firmemente e não sabe que, precisamente por tais atos de sua vontade, agarra e aperta a si firmemente as dores e os tormentos da vida, cuja visão o terrifica. Vê o padecimento, o mau no mundo, mas, longe de reconhecer que ambos não passam de aspectos diferentes da aparência de uma única e mesma Vontade de vida, toma-os como diferentes, sim, completamente opostos, e procura amiúde através do mau, isto é, causando o sofrimento alheio, escapar do padecimento, do sofrimento do próprio indivíduo, envolto como está no principium individuationis, enganado pelo véu de mãyã. — Pois, assim como um barqueiro se senta no seu pequeno barco, confiante em sua frágil embarcação, em meio ao proceloso mar ilimitado em todos os quadrantes, que ergue e afunda montanhas d água; igualmente o ser humano isolado se senta tranquilo num mundo cheio de tormentos, apoiado e confiante no principium individuaticnis, ou modo como o indivíduo conhece as coisas como aparência. O mundo ilimitado, cheio de sofrimento em toda parte, no passado infinito, no futuro infinito, é-lhe estranho, sim, é para ele uma fábula: sua pessoa que desaparece, seu presente inextenso, seu conforto momentâneo, só isso possui realidade para ele: e a fim de mantê-las faz de tudo, pelo menos durante o tempo em que os seus olhos não são abertos por um conhecimento melhor. Até então só na profundeza mais interior de sua consciência vive o pressentimento obscuro de que talvez tudo isso não lhe seja totalmente estranho, mas tem uma ligação consigo, da qual o principium individuationis não pode protegê-la. Desse pressentimento procede aquele inextirpável ASSOMBRO comum a todos os seres humanos que subitamente os assalta quando, por algum acaso, erram no principium individuationis, na medida em que o princípio de razão em alguma de suas figuras parece sofrer uma exceção: como, por exemplo, quando parece que algum acontecimento se dá sem causa, ou um morto reaparece, ou de alguma maneira o já acontecido ou o futuro se tornam presentes, ou o distante se aproxima. O horror medonho em face de tais ocorrências baseia-se em errarmos com as formas cognitivas da aparência, únicas a separarem o nosso indivíduo do mundo restante. Esta separação, entretanto, reside exclusivamente na aparência e não na coisa em si, que é precisamente a base da justiça eterna. De fato, toda felicidade temporal situa-se em, e toda sabedoria procede de, um solo minado. Elas protegem as pessoas contra desgraças e as provêm com prazeres; porém, a pessoa é mera aparência e sua diferença dos outros indivíduos e a isenção de sofrimento destes assentam-se sobre a forma da aparência, sobre o principium individuationis. Assim, em conformidade com a verdadeira essência das coisas, cada um de nós porta todos os sofrimentos do mundo como seus, sim, tem de considerar todos os sofrimentos possíveis como reais para si, enquanto é a firme a Vontade de vida, isto é, enquanto afirme a vida com toda força. Para o conhecimento que transpassa o principium individuationis, uma vida feliz no tempo, como um presente do acaso ou uma conquista da sabedoria, em meio ao sofrimento de inumeráveis outros, — tudo isso é apenas um sonho de um mendigo, no qual é um rei, porém tem de acordar e reconhecer que era tão só uma ilusão fugidia aquilo que o livrava do sofrimento da sua vida. [MVR1: §63]