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Schopenhauer (MVR1): objetidade da vontade

quinta-feira 25 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

  

21. Quem, mediante todas essas considerações, compreendeu in abstracto, de maneira evidente e certa, que aquilo que cada um possui in concreto imediatamente como sentimento, a saber, a essência em si da própria aparência — que se expõe como representação tanto nas ações quanto no substrato permanente destas, o corpo — é a VONTADE, que constitui o mais imediato de nossa consciência, porém, como tal, não aparece completamente na forma da representação, na qual objeto e sujeito se contrapõem, mas dá sinal de si de modo imediato, em que sujeito e objeto não se diferenciam nitidamente: vontade que não aparece em seu todo, mas se faz conhecer ao indivíduo somente por meio de atos isolados; — quem, ia dizer, alcançou comigo essa convicção obterá uma chave para o conhecimento da essência mais íntima de toda a natureza, visto que também difundirá essa convicção por todas aquelas aparências que não lhe são dadas, como a sua própria, em conhecimento imediato e mediato, mas só neste último, portanto só parcialmente, como REPRESENTAÇÃO. Reconhecerá a mesma vontade como essência mais íntima não apenas das aparências inteiramente semelhantes à sua, ou seja, seres humanos e animais, porém a reflexão continuada o levará a reconhecer que também a força que vegeta e palpita na planta, sim, a força que forma o cristal, que gira a agulha magnética para o pelo norte, que irrompe do choque de dois metais heterogêneos, que aparece nas afinidades eletivas dos materiais como atração e repulsão, sim, a própria gravidade que atua poderosamente em toda matéria, atraindo a pedra para a terra e a Terra para o Sol, — tudo isso é diferente apenas na aparência, mas conforme sua essência em si é para se reconhecer como aquilo conhecido imediatamente de maneira tão íntima e melhor que qualquer outra coisa e que, ali onde aparece do modo mais nítido, chama-se VONTADE. Esse emprego da reflexão é o único que não nos abandona na aparência, mas, através dela, leva-nos à COISA EM SI. Aparência se chama representação, e nada mais: toda representação, não importa seu tipo, todo OBJETO é APARÊNCIA. Por sua vez, COISA EM SI é apenas a VONTADE: como tal não é absolutamente representação, mas Toto genere diferente dela: toda representação, todo objeto, é a aparência, a visibilidade, a OBJETIDADE DA VONTADE. A vontade é o mais íntimo, o núcleo de cada particular, bem como do todo: aparece em cada força da natureza que faz efeito cegamente: também aparece na ação ponderada do ser humano: se ambas diferem, isso concerne somente ao grau do aparecimento, não à essência do que aparece. [MVR1: §21]

23. A VONTADE como coisa em si é absolutamente diferente de sua aparência, por inteiro livre das formas desta e nas quais penetra à medida que aparece, formas que, portanto, concernem somente à OBJETIDADE DA VONTADE e são estranhas à vontade em si. Até a forma mais universal de toda representação, ser-objeto para um sujeito, não lhe concerne, muito menos as formas subordinadas àquela e que têm sua expressão comum no princípio de razão, ao qual reconhecidamente pertencem tempo e espaço, portanto também a pluralidade, que existe e é possível somente no tempo e no espaço. Nesse sentido, servindo-me da antiga escolástica, denomino tempo e espaço pela expressão principium individuationis, que peço para o leitor guardar para sempre. Tempo e espaço são os únicos pelos quais aquilo que é um e o mesmo em essência e conceito aparece como pluralidade de coisas que coexistem e se sucedem. Logo, tempo e espaço são o principium individuationis, objeto de tantas sutilezas e conflitos entre os escolásticos. — De tudo o que foi dito se segue que a vontade como coisa em si encontra-se fora do domínio do princípio de razão e de todas as suas figuras e, por conseguinte, é absolutamente sem fundamento, embora cada uma de suas aparências esteja por inteiro submetida ao princípio de razão: ela é, pois, livre de toda PLURALIDADE, apesar de suas aparências no espaço e no tempo serem inumeráveis: ela é una: todavia não no sentido de que um objeto é uno, cuja unidade é conhecida apenas em oposição à pluralidade possível, muito menos é una como um conceito, cuja unidade nasce apenas pela abstração da pluralidade: ao contrário, a vontade é una como aquilo que se encontra fora do tempo e do espaço, exterior ao principium individuationis, isto é, da possível pluralidade. Só quando isso se nos tornar evidente pela consideração que vem logo a seguir sobre as aparências e as manifestações variadas da vontade é que compreenderemos de modo pleno o sentido da doutrina kantiana de que tempo, espaço e causalidade não cabem à coisa em si, e são, antes, meras formas do conhecimento. [MVR1: §23]

32. Embora, de acordo com o que foi exposto até aqui, Kant   e Platão tenham uma concordância íntima tanto em suas cosmovisões quanto na identidade do alvo a que aspiram, o que os incentivou e conduziu ao filosofar, a ideia e a coisa em si, não são absolutamente uma única e mesma coisa: antes, a ideia é para nós apenas a objetidade imediata e por isso adequada da coisa em si, esta sendo precisamente a VONTADE, na medida em que ainda não se objetivou, não se tornou representação. Pois a coisa em si, segundo Kant, deve ser livre de todas as formas vinculadas ao conhecimento enquanto tal e, como será mostrado no apêndice, é um erro de Kant não computar entre tais formas, anteriormente a todas as outras, a do ser-objeto-para-um-sujeito, pois exatamente esta é a primeira e mais universal forma de toda aparência, isto é, de toda representação; por conseguinte, ele deveria ter recusado expressamente à sua coisa em si o ser-objeto, e assim evitaria ter incorrido naquela grande inconsequência, logo descoberta. A ideia platônica, ao contrário, é necessariamente objeto, algo conhecido, uma representação, e justamente por isso, e apenas por isso, diferente da coisa em si. A ideia apenas se despiu das formas subordinadas da aparência, as quais todas concebemos sob o princípio de razão; ou, para dizer de maneira mais correta, ainda não entrou em tais formas; porém, a forma primeira e mais universal ela conservou, a da representação em geral, a do ser-objeto para um sujeito. As formas subordinadas a esta, e cuja expressão geral é o princípio de razão, são as que pluralizam a ideia em indivíduos isolados e efêmeros, cujo número, em relação à ideia, é completamente indiferente. O princípio de razão é, por sua vez, de novo a forma na qual a ideia entra em cena ao se dar ao conhecimento do sujeito como indivíduo. Já a coisa isolada que aparece em conformidade com o princípio de razão é apenas uma objetivação media ta da coisa em si: entre as duas encontra-se a ideia como a única objetidade imediata da vontade, na medida em que a ideia ainda não assumiu nenhuma outra forma própria do conhecimento enquanto tal senão a da representação em geral, isto é, a do ser-objeto para um sujeito. Por conseguinte, só a ideia é a mais ADEQUADA OBJETIDADE DA VONTADE ou coisa em si; é a coisa em si mesma, apenas sob a forma da representação: aí residindo o fundamento para a grande concordância entre Platão e Kant, embora, em sentido estrito e rigoroso, Aquilo de que ambos falam não seja o mesmo. As coisas isoladas, por seu turno, não são a objetidade adequada da vontade, mas esta já foi aqui turvada por aquelas formas cuja expressão comum é o princípio de razão, e que são condições do conhecimento como este é possível ao indivíduo. — Se, numa suposição absurda, fosse-nos permitido não mais conhecer coisas isoladas, nem incidentes, nem mudança, nem pluralidade, mas apenas ideias, apenas o escalonamento das objetivações de uma única e mesma vontade, a verdadeira coisa em si, apreendidas em puro e límpido conhecimento; se, como sujeito do conhecer, não fôssemos ao mesmo tempo indivíduos, isto é, que nossa intuição não fosse intermediada por um corpo, cujas afecções são o seu ponto de partida, corpo esse que nele mesmo é apenas querer concreto, OBJETIDADE DA VONTADE, portanto objeto entre objetos, e que, enquanto tal, só pode aparecer na consciência sob as formas do princípio de razão, portanto já pressupõe e introduz o tempo e as outras formas que esse princípio expressa: então o Nosso mundo seria um nunc stans. O tempo é meramente a visão esparsa e fragmentada que um ser individual tem das ideias, as quais estão fora do tempo, portanto são ETERNAS; por isso Platão diz que o tempo é a imagem móvel da eternidade. [MVR1: §32]

Se, agora, considerarmos a ARQUITETURA simplesmente como bela arte, abstraída de sua determinação para fins utilitários, nos quais ela serve à vontade, não ao puro conhecimento, e, portanto, não é mais arte em nosso sentido, então não lhe podemos atribuir nenhum outro fim senão aquele de trazer para a mais clara intuição algumas das ideias que são os graus mais baixos de OBJETIDADE DA VONTADE, a saber, gravidade, coesão, rigidez, dureza, as qualidades gerais da pedra, essas primeiras, mais elementares, mais abafadas visibilidades da vontade, tons graves   da natureza, e, entre elas, a luz, que em muitos aspectos é o oposto delas. Já nesses graus mais baixos de OBJETIDADE DA VONTADE vemos sua essência manifestar-se em discórdia, pois a luta entre gravidade e rigidez é propriamente o único tema estético da bela arquitetura: sua tarefa é fazer entrar em cena essa luta com perfeita distinção e de maneira diversificada. Para ter sucesso em sua tarefa, ela priva àquelas forças indestrutíveis do caminho mais curto de satisfação, retendo-as por um desvio, renovando e instigando a luta, com o que o esforço inesgotável das duas forças se torna visível de forma diversa. — Se abandonada à sua inclinação originária, toda a massa do edifício exporia um mero amontoado, ligado o mais firmemente possível ao corpo da Terra, pois para este o constrange incessantemente a gravidade, que é como a vontade aqui aparece; enquanto a rigidez, também OBJETIDADE DA VONTADE, resiste. Mas precisamente essa inclinação, esse esforço, é pela arquitetura obstada em sua satisfação imediata, um desvio que lhe possibilita apenas uma satisfação indireta. Assim, por exemplo, o entablamento só pode pressionar o solo por meio das colunas; a abóbada tem de sustentar a si mesma, e apenas por intermédio das pilastras pode satisfazer seu esforço em direção ao solo, e assim por diante. Mas justamente por esses desvios forçados, por essas travações, desdobram-se da maneira mais distinta e variada possível aquelas forças inerentes à rude massa pétrea: para além disso não pode ir o puro fim estético da arquitetura. Por isso, a beleza de um edifício reside certamente na finalidade visível de suas partes, não para fins humanos exteriores e arbitrários, mas imediatamente para a estabilidade do todo, em vista do qual a posição de cada uma das partes, a sua grandeza e a sua forma têm de ter uma relação tão necessária que, caso fosse possível remover uma única parte, o todo desmoronaria. Pois só quando cada parte sustenta tanto quanto pode e convenientemente, bem como cada uma é sustentada exatamente na posição em que deve sê-lo e na extensão necessária, é que se desenvolve aquele jogo de adversários, aquela luta entre gravidade e rigidez, forças estas que constituem propriamente a vida, a exteriorização volitiva da pedra, que manifesta nitidamente os graus mais profundos de OBJETIDADE DA VONTADE. Do mesmo modo, a forma de cada parte não deve ser determinada arbitrariamente, mas por seu fim e relação com o todo. As colunas são as formas mais simples de sustento, determinadas tão somente por seu fim: a coluna torneada é de mau gosto: a pilastra quadrangular é, de fato, menos simples que a coluna redonda, embora casualmente de mais fácil execução. Também as formas do friso, do arco e do entablamento da cúpula são determinadas inteiramente pelo seu fim imediato e assim se esclarecem ali si mesmas. Os ornamentos dos capitéis etc. pertencem à escultura, não à arquitetura, que os admite só como adorno   acrescido, que entretanto pode ser dispensado. — Em conformidade com o que foi dito é absolutamente indispensável à compreensão e fruição estética de uma obra arquitetônica ter um conhecimento intuitivo e imediato de sua matéria, relacionado ao peso, à rigidez e à coesão. A nossa alegria numa semelhante obra seria de súbito bastante diminuída se nos fosse revelado que o material de construção é pedra-pomes: pois assim a obra apareceria como uma espécie de construção ilusória. O mesmo efeito seria produzido pela informação de que se trata apenas de um edifício de madeira, quando até então pensávamos ser de pedra, precisamente porque isso muda, altera a relação entre rigidez e gravidade e, com isso, a significação e necessidade de todas as partes; pois aquelas forças naturais se manifestam muito mais fracamente em edifícios de madeira. Por conseguinte, nenhuma obra da bela arquitetura pode ser feita de madeira, por mais que esta assuma todas as formas: o que só é completamente explanável em nossa teoria. Se, pois, durante a visão de um belo edifício, nos alegrássemos e alguém dissesse que ele consiste em materiais completamente diferentes, com peso e consistência bastante diversos, todavia indiscerníveis aos olhos, então a construção inteira seria tão indigna de fruição quanto um poema em língua desconhecida. Todo o exposto demonstra precisamente que a arquitetura faz efeito não apenas matematicamente, mas também dinamicamente, e que aquilo a falar-nos por ela não é meramente a forma e a simetria, mas antes as forças fundamentais da natureza, as ideias primeiras, graus mais baixos de OBJETIDADE DA VONTADE. — A regularidade do edifício e das suas partes é produzida, por um lado, pela finalidade imediata de cada parcela na estabilidade do todo, por outro lado, a regularidade serve para facilitar a visão geral e compreensão do todo; por fim, as figuras regulares contribuem para a beleza, manifestando a legalidade do espaço enquanto tal. Tudo isso, entretanto, é apenas de valor e necessidade subordinados; de modo algum é a coisa principal; inclusive a simetria não é uma exigência imprescindível, visto que até mesmo as ruínas podem ser belas. [MVR1: §43]

Porque as ideias traz idas à nítida intuição pela arquitetura são os graus mais baixos de OBJETIDADE DA VONTADE, e, por consequência, a significação objetiva daquilo que a arquitetura nos manifesta é relativamente pequena, a fruição estética da visão de um belo edifício, favoravelmente iluminado, não reside tanto na apreensão da ideia, mas antes no correlato subjetivo dela posto com essa apreensão: portanto, essa fruição consiste predominantemente em que o espectador, durante a visão, desprende-se do modo de conhecimento que lhe é próprio enquanto indivíduo, que serve à vontade e segue o princípio de razão, elevando-se ao puro sujeito do conhecimento livre de vontade, portanto à contemplação liberta de todos os sofrimentos do querer e da individualidade. — Nesse sentido, o oposto da arquitetura, e o outro extremo na série das belas-artes, é o drama, o qual torna conhecidas as ideias mais significativas; consequentemente, na fruição estética do drama, o lado objetivo é por inteiro predominante. [MVR1: §43]

44. Aquilo que as duas artes antes mencionadas realizam para os graus mais baixos de OBJETIDADE DA VONTADE é por seu turno realizado em certa medida pela bela jardinagem para os graus mais elevados da natureza vegetal. A beleza paisagística de uma região reside em grande parte na variedade dos objetos que nela se agrupam e, ainda, no fato de estarem separados nitidamente, e mesmo assim exporem-se claramente numa associação e sucessão harmônicas. Essas duas condições são as que auxiliam a bela jardinagem: todavia, esta arte não é tão mestra de seu material como O é a arquitetura, com O que o seu efeito é limitado. O belo que a jardinagem exibe pertence quase que exclusivamente à natureza: ao fim, a primeira pouco realiza: por ouro lado, a jardinagem pouco pode fazer contra o desfavor da natureza e, onde esta trabalha contra, suas realizações são pífias. [MVR1: §44]

Dois auxiliares especiais da poesia são o ritmo e a rima. Não consigo dar nenhuma outra explicação de seu efeito poderoso senão devido ao fato de nossas faculdades de representação, essencialmente ligadas ao tempo, adquirirem por aí uma propriedade em virtude da qual seguimos internamente os sons em seus intervalores regulares e, assim, como que consentimos como eles. Assim, o ritmo e a rima tornam-se, em primeiro lugar, um laço que cativa a nossa atenção, na medida em que acompanhamos de bom grado a apresentação, e, em segundo lugar, nasce por eles uma concordância cega com o que está sendo apresentado, anterior a qualquer juízo, pelo que a apresentação adquire certo poder de convencimento enfático, independente de quaisquer fundamentos. Devido à universalidade do material de que se serve a poesia para comunicar as ideias, portanto os conceitos, a extensão do seu domínio é imensa. Toda a natureza, as ideias de todos os graus, é exponível pela poesia; e, de acordo com a ideia a ser comunicada, ela procede ou por descrição, ou por narração ou expondo de maneira imediatamente dramática. Todavia, na exposição dos graus mais baixos de OBJETIDADE DA VONTADE, a poesia é, na maioria das vezes, superada pelas artes plásticas, porque a natureza destituída de conhecimento, e também a simplesmente animal, manifesta quase toda a sua essência num único momento apropriado. O ser humano, ao contrário, na medida em que se exprime não apenas mediante a simples figura e a expressão do rosto, mas por uma cadeia de ações acompanhadas por pensamentos e afetos, é o tema principal da arte poética: nenhuma outra arte pode realizar isso de modo igual à poesia, pois esta tem o que falta às artes plásticas, o desenvolvimento de seus eventos de forma progressiva. [MVR1: §51]

O objeto da arte poética é, portanto, preferencialmente a manifestação da ideia correspondente ao grau mais elevado de OBJETIDADE DA VONTADE, a exposição dos seres humanos na série concatenada de seus esforços e ações. — Também a experiência e a história ensinam a conhecer a humanidade; contudo, mais frequentemente os seres humanos, e não A humanidade mesma, isto é, a experiência e a história fornecem mais notícias empíricas sobre a conduta humana, de onde surgem regras para o próprio comportamento, em vez de um olhar profundo em nossa essência íntima. Sempre resta a possibilidade de também se conhecer, a partir da história e da própria experiência, a essência íntima da humanidade, do ser humano em geral; mas, se isso ocorre, então concebemos a própria experiência, e o historiador concebe a história, com olhar artístico, poético, vale dizer, não meramente conforme a aparência e as relações, mas conforme a ideia e a essência íntima. A experiência pessoal é a condição indispensável para a compreensão tanto da poesia quanto da história, pois é, por assim dizer, o dicionário da língua falada por ambas. A história está para a poesia como a pintura de retratos está para a pintura histórica, pois a história dá o verdadeiro no particular, a poesia, o verdadeiro em sua universalidade; a história tem a verdade da aparência, e é verificada na aparência, a poesia tem a verdade da ideia, não encontrada em aparência individual alguma e no entanto exprimindo-se a partir de todas. O poeta expõe com escolha e intenção caracteres significativos em situações significativas: já o historiador toma aos dois como eles aparecem. Na escolha dos acontecimentos e das pessoas que quer expor, o historiador não precisa vê-los em sua significação interior, autêntica, que exprime a ideia, mas tem de escolhê-los conforme a significação exterior, aparente, relativa, cujo valor assenta-se em sua referência a relações e consequências. O historiador não pode considerar coisa alguma em e por si mesma conforme seu caráter essencial e expressão, mas tem de considerar tudo segundo a relação, o encadeamento, a influência sobre o que é próximo, especialmente sobre a própria época; eis por que não perderá de vista uma ação insignificante, comum, caso seja a de um rei: pois ela tem consequência e influência. Ao contrário, as ações individuais, mesmo as altamente significativas, e até as ações de indivíduos destacados, não serão expostas se não tiverem consequência e influência, pois a consideração do historiador segue o princípio de razão e apreende a aparência justamente mediante tal princípio. O poeta, ao contrário, apreende a ideia, a essência da humanidade exterior a toda relação, a todo tempo, vale dizer, apreende a objetidade adequada da coisa em si em seu grau mais elevado. De fato, embora também pelo modo necessário de consideração do historiador a essência íntima da humanidade — a significação propriamente dita das aparências, o núcleo de todos os invólucros — nunca se perca totalmente, podendo sempre, pelo menos por aquele que a procura, também ser encontrada e reconhecida, aquilo que é significativo não pelas relações, mas em si mesmo, o desdobramento propriamente dito da ideia, será encontrado muito mais nítida e corretamente na poesia do que na história. Nesse sentido, por mais paradoxal que possa parecer, deve-se atribuir à poesia muito mais verdade interior, própria, autêntica, do que à história. Pois o historiador tem de seguir os acontecimentos isolados justamente conforme a vida, tem de expô-los como eles se desenvolveram no tempo, numa cadeia múltipla e intrincada de fundamentos e consequências; contudo, é impossível que, para isso, possua todos os dados, tenha-os visto ou explorado tudo: por consequência, será abandonado a todo o momento pelo original de seu quadro, ou até mesmo um falso pairará diante de si, o que deve ocorrer com tanta frequência que eu poderia afirmar que em qualquer história se encontra mais o falso que o verdadeiro. O poeta, ao contrário, apreendeu a ideia de humanidade em um de seus lados determinados e exponíveis; é a essência do seu si mesmo que, nela, para ele se objetiva: seu conhecimento, como antes indiquei ao tratar da escultura, é em parte a priori; seu original paira fixo, nítido, claramente iluminado diante de seu espírito, não podendo fugir-lhe: por isso miramos a ideia pura e nítida no espelho de seu espírito, e sua descrição, até a mais insignificante, é verdadeira como a vida mesma. Grandes historiadores antigos, quando os dados os abandonam, são poetas no particular, por exemplo no discurso dos heróis; seu modo de tratamento do assunto aproxima-se da poesia épica: precisamente isso confere unidade às suas exposições e permite-lhes conservar a verdade interior, mesmo onde a exterior não lhes é acessível, ou até mesmo é falseada. Acabamos de comparar a história com a pintura de retratos, em contraste com a poesia, que corresponderia à pintura histórica. Agora, vemos como também os historiadores antigos seguiam o preceito de Winckelmann, de que o retrato deve ser o ideal do indivíduo, pois expõe o individual de tal maneira que o lado nele expresso da ideia de humanidade entra em cena: já os novos historiadores, diferentemente, salvo raras exceções, apresentam na maioria das vezes apenas “um barril de entulhos e um quarto de despejo, e quando muito uma ação de estado ou um acontecimento político”. — Portanto, quem quiser conhecer a humanidade em seu íntimo, em todas as aparências e desenvolvimentos de sua essência idêntica, logo, de acordo com a sua ideia, as obras dos grandes e imortais poetas fornecerão uma imagem muito mais fiel e clara do que já o conseguiram os historiadores; pois, entre estes, até mesmo os melhores, como poetas, estão longe de serem os primeiros, e também não têm as mãos livres. Nesse sentido, também se pode ilustrar a relação entre historiador e poeta mediante a seguinte comparação. O mero historiador, que trabalha apenas conforme os dados, assemelha-se a alguém que, sem conhecimento algum da matemática, investiga por medição as proporções das figuras que acabou de encontrar; suas especificações descobertas empiricamente têm, por conseguinte, de conter todas as incorreções próprias às figuras assinaladas: o poeta, ao contrário, assemelha-se ao matemático que constrói a priori aquelas proporções, na pura intuição, expressando-as não como a figura efetivamente desenhada as possui, mas como as mesmas são na ideia e que o desenho deve tornar sensível. — Por isso Schiller diz: O que nunca e em lugar algum se passou / Só isso nunca envelhece [MVR1: §51]

Se, entretanto, um ponto de vista invertido fosse possível para nós, ele permitiria uma troca de sinais e mostraria que o que existe para nós como o ser, é o nada, e o que para nós é o nada, é o ser. Contudo, enquanto somos a Vontade de vida mesma, esse último, a saber, o nada como o ser, só pode ser conhecido e descrito por nós de maneira negativa, visto que a antiga sentença de Empédocles  , de que o igual só pode ser conhecido pelo igual, priva-nos exatamente aqui de todo conhecimento, assim como, inversamente, é sobre ela que se baseia em última instância a possibilidade de todo nosso conhecimento efetivo, isto é, o mundo como representação ou a OBJETIDADE DA VONTADE. Pois o mundo é o autoconhecimento da vontade. [MVR1: §71]