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Schopenhauer (MVR1): essência da vontade

quinta-feira 25 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

  

Dessa forma, o duplo conhecimento, dado de dois modos por completo heterogêneos e elevado à nitidez, que temos da essência e fazer-efeito de nosso corpo será em seguida usado como uma chave para a essência de toda aparência na natureza; assim, todos os objetos que não são nosso corpo, portanto não são dados de modo duplo, mas apenas como representações na consciência, serão julgados exatamente conforme analogia com aquele corpo; por conseguinte, serão tomados, precisamente como ele, de um lado como representação e, portanto, iguais a ele nesse aspecto, mas de outro, caso se ponha de lado a sua existência como representação do sujeito, o que resta, conforme sua essência íntima, tem de ser o mesmo que aquilo a denominarmos em nós VONTADE. Pois que outro tipo de realidade ou existência deveríamos atribuir ao mundo restante dos corpos? Donde retirar os elementos para compor tal mundo? Além da vontade e da representação, absolutamente nada é conhecido nem pensável. Se quisermos atribuir ao mundo dos corpos, que existe imediatamente apenas em nossa representação, a maior realidade que conhecemos, então lhe conferiremos aquela realidade que o próprio corpo possui para cada um de nós, pois ele é para nós o que há de mais real. E se analisarmos a realidade desse corpo e as suas ações, então encontraremos, tirante o fato de ser nossa representação, nada mais senão a vontade: aí se esgota toda a sua realidade mesma. Logo, não podemos encontrar em nenhuma parte realidade outra para atribuir ao mundo dos corpos. Assim, se este ainda deve ser algo mais que mera representação, temos de dizer que, exceto a representação, portanto em si e conforme sua essência mais íntima, ele é aquilo que encontramos imediatamente em nós mesmos como vontade. Digo conforme sua essência mais íntima: entretanto, temos de primeiro conhecer mais de perto a ESSÊNCIA DA VONTADE, a fim de sabermos distinguir aquilo que não pertence a ela mesma, mas já à sua aparência diversificada em vários graus: é o caso, por exemplo, da circunstância de ser acompanhada de conhecimento e da determinação condicionada por motivos daí resultante: semelhante característica, como veremos a seguir, não pertence à sua essência, mas apenas à sua aparência mais nítida como animal e ser humano. Se, pois, eu disser que a força que atrai a pedra para a terra é, conforme sua essência em si, além de representação, vontade — que não se atribua a tal frase a tola opinião de que a pedra se movimenta segundo um motivo conhecido, já que é assim que a vontade aparece no ser humano. — Doravante queremos fundamentar e demonstrar clara e detalhadamente e desenvolver em toda a sua envergadura o que até aqui foi exposto provisoriamente de maneira geral. [MVR1: §19]

Assim, em toda parte na natureza vemos conflito, luta e alternância da vitória, e aí reconhecemos com distinção a discórdia essencial da vontade consigo mesma. Cada grau de objetivação da vontade combate com outros por matéria, espaço e tempo. A matéria que subsiste tem continuamente de mudar de forma, na medida em que, pelo fio condutor da causalidade, aparências mecânicas, químicas, orgânicas anseiam avidamente por emergir e assim arrebatam umas às outras a matéria, pois cada uma quer manifestar a própria ideia. Esse conflito pode ser observado em toda a natureza, sim, em verdade esta só existe em virtude dele: nam si non inesset in rebus contentio, unum omnia essent, ut ait Empedocles  . Arist. Metaph.. Tal conflito, entretanto, é apenas a manifestação da discórdia essencial da vontade consigo mesma. E a visibilidade mais nítida dessa luta universal se dá justamente no mundo dos animais — o qual tem por alimento o mundo dos vegetais —, em que cada animal se torna presa e alimento de outro, isto é, a matéria na qual uma ideia se expõe tem de ser abandonada para a exposição de outra, já que cada animal só pode alcançar a sua existência pela supressão contínua da existência de outro; assim, a Vontade de vida crava continuamente os dentes na própria carne e em diferentes figuras é seu próprio alimento, até que, por fim, o gênero humano, por dominar todas as demais espécies, vê a natureza como um instrumento de uso; esse mesmo gênero humano, porém, como veremos no quarto livro desta obra, manifesta em si próprio aquela luta, aquela autodiscórdia da vontade da maneira mais clara e terrível quando o homem se torna o lobo do homem: homo homini lupus. Todavia, reconhecemos o mesmo conflito, a mesma dominação também nos graus mais baixos de objetidade da vontade. Diversos insetos põem seus ovos sobre a pele, no corpo das larvas de outros insetos, cuja lenta destruição é a primeira obra do germe que emerge do ovo. O jovem pólipo que cresce como uma rama a partir do velho e mais tarde se separa deste já luta contra o mesmo enquanto ainda se prende a ele, pela presa que se oferece, de modo que um a arranca da boca do outro. O mais flagrante exemplo desse tipo de conflito é fornecido pela formiga bulldog-ant na Austrália: quando se a corta, tem início uma luta entre a cabeça e a cauda: a primeira ataca com mordidas a segunda, e esta se defende bravamente com o ferrão: a luta dura cerca de meia hora, até que ambas morrem ou são carregadas por outras formigas. E isso ocorre sempre. Às margens do rio Missouri às vezes se vê um grande carvalho de tal maneira envolto em seu tronco e galhos por uma gigantesca e selvagem videira que tem de murchar como se fosse sufocado. O mesmo ocorre inclusive nos graus mais baixos, por exemplo lá onde a água e o carbono são convertidos por assimilação orgânica em seiva vegetal, ou os vegetais, ou o pão, em sangue: e assim em toda parte, onde, com limitação das forças químicas a um tipo de efeito subordinado, a secreção animal é produzida; o mesmo também ocorre na natureza inorgânica quando, por exemplo, na formação dos cristais, estes se encontram, cruzam e perturbam uns aos outros, de modo que não podem exibir a forma puramente cristalina: em realidade, quase toda drusa é a imagem do conflito da vontade neste grau tão elementar de sua objetivação: ou também quando um ímã impõe ao ferro o magnetismo, para expor a sua ideia; ou quando o galvanismo domina as afinidades eletivas, decompõe as mais estáveis ligações, suprime tão inteiramente as leis químicas que o ácido de um sal decomposto no pelo negativo tem de se dirigir ao pelo positivo sem se combinar com os alcalinos que atravessa, nem mesmo avermelhar o papel tornas sol posto em seu caminho. Em escala maior isso se mostra na relação entre corpo central e planeta: este, apesar de decisivamente dependente, resiste sempre, semelhante às forças químicas no organismo, e daí resulta a tensão constante entre forças centrípeta e centrífuga que mantém os orbes celestes em movimento e já é uma expressão daquela luta generalizada e essencial das aparências da vontade que estamos agora considerando. Ora, posto que cada corpo tem de ser visto como o aparecimento de uma única e mesma vontade, e esta, entretanto, expõe-se necessariamente como um esforço, então o estado originário de cada orbe   celeste condensado não pode ser o repouso, mas o movimento, o esforço para adiante no espaço infinito, sem repouso e alvo. A isso não se opõem nem ali lei de inércia nem a de causalidade: pois, de acordo com a lei de inércia, a matéria enquanto tal é indiferente ao repouso e ao movimento, de modo que tanto um quanto outro podem ser o seu estado originário; por conseguinte, se encontramos a matéria em movimento, estamos tão pouco autorizados a pressupor para este um estado anterior de repouso e assim perguntar pela causa da entrada em cena de seu movimento, quanto o contrário, ou seja, se encontramos a matéria em repouso, não estamos autorizados a pressupor para este um estado anterior de movimento e assim perguntar pela causa de sua supressão. Por isso não se deve procurar nenhuma impulsão primeira da força centrífuga, mas ela, nos planetas, conforme a hipótese de Kant   e Laplace, é o resíduo da rotação originária do corpo central, cuja contração causou a separação dos planetas. Mas a esse corpo central o movimento é essencial: ele continua a sua rotação e simultaneamente vaga no espaço sem fim, ou translada talvez em torno de um corpo central maior, invisível para nós. Essa visão concorda inteiramente com a conjectura dos astrônomos acerca de um Sol central e também com o distanciamento observado de todo o nosso sistema solar, e talvez de toda a galáxia à qual pertence o nosso Sol; daí podendo-se finalmente deduzir um distanciamento geral de todas as estrelas fixas e do Sol central; obviamente tudo isso perde a significação no espaço infinito, o que justamente tem de ser reconhecido — como já teria de ser feito imediatamente com o esforço e o vagar sem fim — como expressão daquela nulidade, daquela ausência de um fim último, própria do esforço da vontade em todas as suas aparências, assunto que será abordado na conclusão desta obra. Por isso também o espaço sem fim e o tempo sem fim tinham de constituir as formas mais universais e fundamentais de todas as aparências, as quais existem para expressão de toda a ESSÊNCIA DA VONTADE. — Podemos, por fim, reconhecer a aqui considerada luta de todas as aparências da vontade entre si inclusive na mera matéria, na medida em que a essência do aparecimento desta, corretamente enunciada por Kant, são as forças de atração e repulsão, de modo que já a matéria possui sua existência apenas devido a uma luta de forças que se empenham contrariamente. Caso abstraiamos todas as diferenças químicas da matéria ou pensemos o mais longe possível na cadeia de causas e efeitos até que não mais exista diferença química alguma, então permanece para nós a mera matéria, o mundo condensado numa esfera, cuja vida, isto é, objetivação da vontade, constitui aquela luta entre forças de atração e repulsão, a primeira como gravidade que impele de todos os lados para o centro, a segunda como impenetrabilidade que, mediante rigidez ou elasticidade, resiste à primeira, e cujo ímpeto constante e resistência podem ser considerados como a objetidade da vontade nos seus graus mais elementares e já aí expressam o caráter dela. [MVR1: §27]

De fato, a ausência de todo fim e limite pertence à ESSÊNCIA DA VONTADE em si, que é um esforço sem fim. Tal assunto já foi antes abordado, quando mencionamos a força centrífuga: isso também se manifesta da maneira mais simples no grau mais elementar de objetidade da vontade, ou seja, na gravidade, cujo esforço contínuo, em vista da manifesta impossibilidade de um alvo final, salta aos olhos. Pois mesmo se toda matéria que existe, de acordo com a sua vontade, fosse concentrada num bloco, ainda assim no interior dele a gravidade, esforçando-se para o centro, lutaria contra a impenetrabilidade. O esforço da matéria, consequentemente, pode apenas ser travado, jamais finalizado ou satisfeito. O mesmo verifica-se em relação a todos os esforços de todas as aparências da natureza. Cada fim alcançado é por sua vez início de um novo decurso, e assim ao infinito. A planta faz crescer sua aparência desde a semente, passando pelo talo e as folhas, até o fruto, que por sua vez é apenas o início de uma nova semente, de um novo indivíduo, que percorrerá mais uma vez o antigo decurso, e assim por um tempo infinito. Da mesma forma é o decurso de vida do animal: a procriação é o seu ápice, após cujo alcançamento a vida do primeiro indivíduo decai rápida ou lentamente, enquanto um novo indivíduo repete a mesma aparência, garantindo à natureza a conservação da espécie. Sim, como simples aparência desse ímpeto e mudança contínuos deve-se também ver a constante renovação da matéria de cada organismo, que os fisiólogos só agora desistem de tomar como simples substituição necessária do estofo consumido no movimento; pois o possível uso da máquina de modo algum pode equivaler ao acréscimo constante de alimentação. Eterno vir a ser, fluxo sem fim pertencem à manifestação da ESSÊNCIA DA VONTADE. O mesmo também se mostra, por fim, nas aspirações e nos desejos humanos, cuja satisfação sempre nos acena como o alvo último do querer; porém, assim que são alcançados, não mais se parecem os mesmos e, portanto, logo são esquecidos, tornam-se caducos e, propriamente dizendo, embora não se admita, são sempre postos de lado como ilusões desfeitas; suficientemente feliz é quem ainda tem algo a desejar, pelo qual se empenha, pois assim o jogo da passagem contínua entre o desejo e a satisfação e entre esta e um novo desejo — cujo transcurso, quando é rápido, se chama felicidade, e quando é lento se chama sofrimento — é mantido, evitando-se aquela lassidão que se mostra como tédio terrível, paralisante, apatia cinza sem objeto definido, languor mortífero. — Em conformidade com tudo isso, onde o conhecimento a ilumina, a vontade sempre sabe o que quer aqui e agora, mas nunca o que quer em geral: todo ato isolado tem um fim; mas o querer em seu todo, não: do mesmo modo, cada aparência isolada da natureza, ao entrar em cena neste lugar, neste tempo, é determinada por uma causa suficiente, mas a força que se manifesta em geral na aparência não possui causa alguma, pois essa força é um grau de aparecimento da coisa em si, da vontade sem fundamento. — Porém, o único autoconhecimento da vontade no todo é a representação no todo, o inteiro mundo intuitivo. Este é a objetidade, a manifestação, o espelho da vontade. O que o mundo expressa nessa qualidade, eis o objeto de nossa próxima consideração. [MVR1: §29]

30. No primeiro livro consideramos o mundo como mera REPRESENTAÇÃO, objeto para um sujeito; em seguida, no segundo livro, complementamos essa consideração mediante o conhecimento do outro lado do mundo, encontrado na VONTADE, que é a única coisa que o mundo revela para além da representação. Em conformidade com esse conhecimento, nomeamos o mundo visto como representação, tanto em seu todo quanto em suas partes, OBJETIDADE DA VONTADE, ou seja, vontade que se tornou objeto, isto é, que se tornou representação. Lembramos ainda que semelhante objetivação da vontade tem muitos e bem específicos graus, nos quais a ESSÊNCIA DA VONTADE aparece gradualmente na representação com crescente nitidez e perfeição, ou seja, expõe-se como objeto. Reconhecemos nesses graus as ideias de Platão, na medida em que são justamente espécies determinadas, ou formas e propriedades originárias e imutáveis tanto dos corpos orgânicos e inorgânicos quanto das forças naturais que se manifestam segundo leis da natureza. Todas essas ideias expõem-se em inúmeros indivíduos e aparências singulares, com os quais se relacionam como os modelos se relacionam com suas cópias. A pluralidade desses indivíduos só pode ser representada por meio do tempo e do espaço, enquanto o seu nascimento e morte só o são pela causalidade; formas estas nas quais reconhecemos as diversas figuras do princípio de razão, que é o princípio último de toda finitude, de toda individuação, forma universal da representação tal como esta se dá 1200 ao conhecimento do indivíduo enquanto tal. A ideia, ao contrário, não se submete a esse princípio; por conseguinte, não lhe cabem pluralidade nem mudança. Enquanto os indivíduos, nos quais a ideia se expõe, são inumeráveis e irrefreavelmente vêm a ser e perecem, ela permanece imutável, única, a mesma, o princípio de razão não tendo significação alguma para ela. Por outro lado, se este princípio é a forma sob a qual se encontra todo conhecimento do sujeito quando ele conhece como INDIVÍDUO, as ideias, ao contrário, residem completamente fora da esfera de conhecimento do indivíduo. Entretanto, caso as ideias devam se tornar objeto de conhecimento, isso só pode ocorrer pela supressão da individualidade no sujeito cognoscente. A explanação detalhada e definitiva deste tema é o que doravante nos vai ocupar. [MVR1: §30]

42. Volto ao meu tratamento filosófico da impressão estética do belo. O conhecimento do belo supõe sempre, inseparável e simultaneamente, o puro sujeito que conhece e a ideia conhecida como objeto. Portanto, a fonte da fruição estética residirá ora mais na apreensão da ideia conhecida, ora mais na bem-aventurança e tranquilidade espiritual do conhecer puro livre de todo querer e individualidade, bem como do tormento ligado a esta: a predominância de um ou outro componente da fruição estética dependerá de a ideia apreendida intuitivamente ser um grau mais elevado ou mais baixo de objetidade da vontade. Assim, tanto na consideração estética da bela natureza nos reinos inorgânico e vegetal quanto na consideração estética das obras da bela arquitetura, a fruição do puro conhecer destituído de vontade será preponderante, porque as ideias aqui apreendidas são graus mais baixos de objetidade da vontade, por conseguinte não são aparências de significado mais profundo e conteúdo mais sugestivo. Se, ao contrário, o objeto da consideração ou da exposição estética forem animais e humanos, a fruição residirá mais na apreensão objetiva dessas ideias, as quais são a manifestação mais nítida da vontade, visto que exibem a grande variedade de figuras, de riqueza e de significado profundo das aparências, logo, manifestam da maneira mais perfeita a ESSÊNCIA DA VONTADE seja em sua veemência, sobressalto, satisfação, seja em sua discórdia, finalmente até mesmo em sua viragem ou autossupressão, a qual, em especial, é o tema da pintura cristã: de modo geral a pintura de gênero e o drama têm por objeto a ideia da vontade iluminada por pleno conhecimento. — Passarei agora em revista as artes isoladas, pelo que justamente a exposta teoria do belo adquirirá mais clareza e completude. [MVR1: §42]