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Schopenhauer (MVR1): atos da vontade

quinta-feira 25 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

  

20. A VONTADE, como foi dito, dá sinal de si primariamente nos movimentos voluntários do corpo como a essência em si deles, isto é, como aquilo que o corpo é tirante o fato de ser objeto de intuição, representação. Os movimentos do corpo não passam da visibilidade dos atos isolados da vontade, surgindo imediata e simultaneamente com estes, com os quais constituem uma única e mesma coisa, diferenciando-se apenas pela forma da cognoscibilidade que adquiriram ao se tornarem representação. Esses ATOS DA VONTADE sempre têm ainda um fundamento exterior a si, nos motivos. Estes, todavia, só determinam o que eu quero NESTE tempo, NESTE lugar, sob ESTAS circunstâncias; não QUE ou O QUE eu quero em geral, ou seja, as máximas que caracterizam todo o meu querer. Em virtude disso, a essência toda de meu querer não é explanável por motivos, já que estes determinam exclusivamente sua exteriorização em dado ponto do tempo, são meramente a ocasião na qual minha vontade se mostra: a vontade mesma, ao contrário, encontra-se fora do domínio da lei de motivação: apenas sua aparência em dado ponto do tempo é necessariamente determinada por tal lei. Assim, só ao fazer a pressuposição de meu caráter empírico é que o motivo é fundamento suficiente de explanação de meu agir: se, contudo, abstraio o meu caráter e pergunto por que em geral quero isso e não aquilo, então resposta alguma é possível, justamente porque apenas a APARÊNCIA da vontade está submetida ao princípio de razão, não a vontade mesma, que, nesse sentido, é para ser denominada SEM FUNDAMENTO. Acerca desse tema pressuponho em parte a doutrina de Kant   sobre a diferença entre caráter empírico e inteligível e as elucidações que lhe são pertinentes presentes no meu Problemas fundamentais da ética; em parte, porém, abordaremos detalhadamente o assunto no quarto livro da presente obra. No momento, porém, apenas gostaria de observar que o fato de uma aparência ser fundamentada por outra de modo algum coloca em questão sua essência em si como vontade, que, nela mesma, não tem fundamento, na medida em que o princípio de razão em todas as suas figuras é mera forma do conhecimento, estendendo sua validade apenas à representação, à aparência, à visibilidade da vontade, não à vontade mesma que se torna visível. [MVR1: §20]

No ano de 1840 abordei de maneira exaustiva e em detalhe o importante capítulo acerca da liberdade da vontade em meu escrito premiado sobre o assunto, e desvelei o fundamento da ilusão em virtude da qual acredita-se encontrar na consciência de si, como fato, uma liberdade absoluta e empiricamente dada da vontade, portanto um liberum arbitrium indifferentiae; ponto esse justamente para o qual foi orientada, com grande perspicácia, a pergunta cuja resposta foi premiada. Remeto o leitor àquela obra, bem como à seção § 10 do meu ensaio Sobre o fundamento da moral, publicado junto com ela sob o título Os dois problemas fundamentais da ética, e suprimo agora aquela incompleta exposição sobre a necessidade dos ATOS DA VONTADE, inserida na primeira edição, substituindo-a aqui por uma breve explanação, pressuposta pelo capítulo dezenove do nosso segundo tomo, acerca da ilusão acima mencionada, e que portanto não poderia figurar no ensaio antes mencionado. [MVR1: §55]

A AFIRMAÇÃO DA VONTADE é o constante querer mesmo, não perturbado por conhecimento algum, tal qual preenche a vida do ser humano em geral. Ora, como o corpo humano é já a objetidade da vontade como ela aparece neste grau e neste indivíduo, segue-se que a sua vontade, a desenvolver-se no tempo, é, por assim dizer, a paráfrase do corpo, a elucidação do sentido referente ao todo e às partes: é outro modo de exposição da mesma coisa em si cuja aparência o corpo já é. Eis por que, em vez de afirmação da vontade, podemos também dizer afirmação do corpo. O tema fundamental de todos os diferentes ATOS DA VONTADE é a satisfação das necessidades inseparáveis da existência do corpo em estado saudável, necessidades que já têm nele a sua expressão e podem ser reduzidas à conservação do indivíduo e à propagação da espécie. Só indiretamente motivos dos mais diversos tipos exercem poder sobre a vontade e trazem a lume os seus atos mais variados. Cada um destes é apenas uma prova, um exemplo da vontade em geral que aqui aparece: o tipo dessa prova, qual figura o motivo assume e lhe comunica, não é essencial; o que importa aqui é a existência de um querer em geral e o seu grau de veemência. A vontade só pode tornar-se visível nos motivos, assim como o olho apenas exterioriza seu poder de visão na luz. O motivo em geral coloca-se diante da vontade como um Proteu multifacetado; sempre lhe promete satisfação plena, morte da sede volitiva; contudo, caso isto seja alcançado, ele de imediato assume outra figura e, com esta, movimenta a vontade de uma nova maneira, sempre em conformidade com o grau de veemência dela e a sua relação com o conhecimento, que se tornam manifestos como caráter empírico mediante essas provas e exemplos. [MVR1: §60]

Se essa visão que transpassa o principiam individuationis, ou seja, esse conhecimento imediato da identidade da vontade em todas as suas aparências, se dá num elevado grau de distinção, então de imediato mostrará uma influência ainda maior sobre a vontade. Se aquele véu de mãyã, o principium individuationis, é de tal maneira removido dos olhos de um ser humano que este não faz mais diferença egoística entre a sua pessoa e a de outrem, no entanto compartilha em tal intensidade dos sofrimentos alheios como se fossem os seus próprios e assim é não apenas benevolente no mais elevado grau, mas está até mesmo pronto a sacrificar o próprio indivíduo tão logo muitos outros precisem ser salvos; então, daí, segue-se automaticamente que esse ser humano reconhece em todos os seres o próprio íntimo, o seu verdadeiro si mesmo e desse modo tem de considerar também os sofrimentos infindos de todos os viventes como se fossem seus: assim, toma para si as dores de todo o mundo; nenhum sofrimento é-lhe estranho. Todos os tormentos alheios que vê e raramente consegue aliviar, todos os tormentos dos quais apenas sabe indiretamente, inclusive os que conhece só como possíveis, fazem efeito sobre o seu espírito como se fossem seus. Não é mais a alternância entre o bem e o mal-estar de sua pessoa o que tem diante dos olhos, como no caso da pessoa ainda envolvida pelo egoísmo, mas, com a sua visão que transpassa o principium individuationis, tudo lhe é igualmente próximo. Conhece o todo, apreende a sua essência e encontra o mundo condenado a um perecer constante, a um esforço vão, a um conflito íntimo e sofrimento contínuo. Vê, para onde olha, a humanidade e os animais sofredores; vê um mundo que desaparece. E tudo isso lhe é agora tão próximo quanto para o egoísta a própria pessoa. Como poderia, mediante tal conhecimento do mundo, afirmar precisamente esta vida por constantes ATOS DA VONTADE e exatamente dessa forma atar-se cada vez mais fixamente a ela e abraçá-la cada vez mais vigorosamente? Se, portanto, quem ainda se encontra envolvido no principium individuationis conhece apenas coisas isoladas e sua relação com a própria pessoa, coisas que renovadamente se tornam MOTIVOS para o seu querer, agora, ao contrário, aquele descrito conhecimento do todo e da essência das coisas torna-se QUIETIVO de todo e qualquer querer. Doravante a vontade efetua uma viragem diante da vida: fica estremecida em face dos prazeres nos quais reconhece a afirmação da vida. O ser humano, então, atinge o estado de voluntária renúncia, resignação, verdadeira serenidade e completa destituição de vontade. — Quando às vezes em meio aos nossos duros sofrimentos sentidos ou devido ao conhecimento vivo do sofrimento alheio e ainda envoltos pelo véu de mãyã o conhecimento da nulidade e amargura da vida se aproxima de nós e gostaríamos de renunciar decisivamente para sempre ao espinho de suas cobiças e fechar a entrada a qualquer sofrimento, purificar-nos e santificar-nos, logo, entretanto, a ilusão das aparências nos encanta de novo e seus motivos colocam mais uma vez a vontade em movimento: não podemos nos libertar. As promessas da esperança, as adulações do tempo presente, a doçura dos gozos, o bem-estar que faz a nossa pessoa partícipe da penúria de um mundo sofrente sob o império do acaso e do erro, atraem-nos novamente ao mundo e reforçam os nossos laços de ligação com ele. Por isso Jesus disse: “É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha que um rico entrar no reino dos céus”. [MVR1: §68]