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Schopenhauer (MVR1): ato da vontade

quinta-feira 25 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

  

Os sistemas que partem do objeto sempre tiveram o mundo intuitivo inteiro, e sua ordenação, como problema; contudo, o objeto que tomam como ponto de partida nem sempre é este mundo, ou seu elemento fundamental, a matéria: antes, é possível fazer uma classificação de tais sistemas conforme as quatro classes de objetos possíveis estabelecidas no meu ensaio introdutório. Assim, pode-se dizer que, da primeira daquelas classes, ou do mundo real, partiram Tales e os jônicos, Demócrito, Epicuro  , Giordano Bruno   e os materialistas franceses; da segunda, ou dos conceitos abstratos, Espinosa   e, anteriormente, os eleatas; da terceira classe, vale dizer, do tempo, e, por conseguinte dos números, os pitagóricos e a filosofia chinesa do I Ching  ; por fim, da quarta classe, isto é, do ATO DA VONTADE motivado pelo conhecimento, partiram os escolásticos, que ensinavam uma criação a partir do nada mediante o ATO DA VONTADE de um ser pessoal extramundano. [MVR1: §7]

18. De fato, a busca pela significação do mundo que está diante de mim simplesmente como minha representação, ou a transição dele, como mera representação do sujeito que conhece, para o que ainda possa ser além disso, nunca seria encontrada se o investigador, ele mesmo, nada mais fosse senão puro sujeito que conhece. Contudo, o investigador mesmo se enraíza neste mundo, encontra-se nele como INDIVÍDUO, isto é, seu conhecimento, sustentáculo condicionante do mundo inteiro como representação, é no todo intermediado por um corpo, cujas afecções, como se mostrou, são para o entendimento o ponto de partida da intuição do mundo. Este corpo é para o puro sujeito que conhece enquanto tal uma representação como qualquer outra, um objeto entre objetos: os movimentos e ações do corpo lhe seriam tão estranhos e incompreensíveis quanto às mudanças de todos os outros objetos intuíveis se a significação deles não lhe fosse decifrada de um modo inteiramente diferente. Pois senão veria sua ação seguir-se a motivos dados com a constância de uma lei natural justamente como as mudanças dos outros objetos a partir de causas, estímulos e motivos, sem compreender mais intimamente a influência dos motivos do que compreende a ligação de qualquer outro efeito com sua causa a aparecer diante de si. Ele, então, conforme o gosto, nomearia a essência íntima e incompreensível daquelas exteriorizações e ações de seu corpo justamente uma força, uma qualidade ou um caráter, porém sem obter dessas coisas nenhuma intelecção mais profunda. Mas tudo isso não é assim: antes, a palavra do enigma é dada ao sujeito do conhecimento que aparece como indivíduo: e tal palavra recebe o nome de VONTADE. Esta, e somente esta, fornece-lhe a chave para a sua própria aparência, manifesta a significação, mostra-lhe a engrenagem interior do seu ser, do seu agir, dos seus movimentos. Ao sujeito do conhecimento, que por meio de sua identidade com o corpo entra em cena como indivíduo, este corpo é dado de duas maneiras completamente diferentes: uma vez como representação na intuição do entendimento, como objeto entre objetos e submetido às leis destes; outra vez de maneira completamente outra, a saber, como aquilo conhecido imediatamente por cada um e indicado pela palavra VONTADE. Todo ato verdadeiro de sua vontade é simultânea e inevitavelmente também um movimento de seu corpo: ele não pode realmente querer o ato sem ao mesmo tempo perceber que este aparece como movimento corporal. O ATO DA VONTADE e a ação do corpo não são dois estados diferentes conhecidos objetivamente e vinculados pelo nexo da causalidade, nem se encontram na relação de causa e efeito, mas são uma única e mesma coisa, apenas dada de duas maneiras totalmente diferentes: uma vez imediatamente e outra para a intuição do entendimento. A ação do corpo nada mais é senão o ATO DA VONTADE objetivado, isto é, que apareceu na intuição. Mais adiante será mostrado que isso vale para qualquer movimento do corpo, não apenas os provocados por motivos, mas também para os que se seguem involuntariamente de meros estímulos; sim, o corpo inteiro não é nada mais senão a vontade objetivada, que se tornou representação. Por conseguinte, o corpo, que no livro precedente e no meu ensaio sobre o princípio de razão chamei OBJETO IMEDIATO, conforme o ponto de vista unilateral ali intencionalmente adotado, aqui, de outro ponto de vista, é denominado OBJETIDADE DA VONTADE. Por isso em certo sentido também se pode dizer: a vontade é o conhecimento a priori do corpo, e o corpo é o conhecimento a posteriori da vontade. — Decisões da vontade referentes ao futuro são simples ponderações da razão sobre o que se vai querer um dia, não atos da vontade propriamente ditos: apenas a execução estampa a decisão, que até então não passa de propósito cambiável, existente apenas in abstracto na razão. Só na reflexão o querer e o agir se diferenciam: na efetividade são uma única e mesma coisa. Todo ato verdadeiro, autêntico, imediato da vontade é também simultânea e imediatamente ato do corpo que aparece: e, em correspondência, toda ação sobre o corpo é também simultânea e imediatamente ação sobre a vontade: que enquanto tal se chama dor, caso a contrarie, ou bem-estar, prazer, caso lhe seja conforme. As gradações dessa dor e desse prazer são bem diversificadas. Todavia, é totalmente incorreto denominar a dor e o prazer representações, o que de modo algum são, mas afecções imediatas da vontade em sua aparência, o corpo, vale dizer, um querer ou não querer impositivo e instantâneo sofrido por ele. Por outro lado, devem ser consideradas imediatamente como simples representações, portanto excluídas do que acabou de ser dito, certas poucas impressões sobre o corpo que não estimulam a vontade e unicamente mediante as quais o corpo é objeto imediato do conhecimento. Penso aqui nas afecções dos sentidos puramente objetivos da visão, da audição e do tato, embora só à medida que seus órgãos são afetados conforme sua maneira natural, específica; o que envolve uma estimulação tão excepcionalmente fraca da sensibilidade realçada e modificada dessas partes que não afeta a vontade, mas, sem ser incomodada pela estimulação, esta apenas fornece ao entendimento os primeiros dados de onde deriva a intuição. Toda outra afecção mais forte ou diferente daqueles órgãos dos sentidos já é dolorida, ou seja, contraria a vontade, a cuja objetidade também pertencem. — A fraqueza dos nervos revela-se no fato de que as impressões, que deveriam ter apenas o grau de força suficiente para torná-las dados do entendimento, atingem o grau mais elevado e movimentam a vontade, ou seja, estimulam dor ou sentimento de bem-estar, embora o mais das vezes dor, que no entanto é em parte abafada e insignificante; nesse caso, tons isolados e luz intensa não apenas são sentidos dolorosamente, mas em geral também ocasionam disposição hipocondríaca doentia, sem ser no entanto claramente reconhecida. — Ademais, a identidade do corpo com a vontade também se mostra, entre outras coisas, no fato de que todo movimento excessivo e veemente da vontade, isto é, cada afeto, abala imediatamente o corpo e sua engrenagem interior e perturba o curso de suas funções vitais. Isso é especialmente abordado no meu Sobre a vontade na natureza. [MVR1: §18]

Assim, se cada ação de meu corpo é o aparecimento de um ato volitivo no qual minha vontade mesma, portanto meu caráter, se expressa em geral e no todo sob certos motivos, então o pressuposto e a condição absolutamente necessária daquela ação têm de ser também aparecimento da vontade, pois o aparecimento desta não pode depender de algo que não exista imediata e exclusivamente mediante ela, que, portanto, seja-lhe simplesmente contingente: com o que seu aparecimento mesmo seria casual: aquela condição, no entanto, é todo o corpo mesmo. Este, portanto, já tem de ser aparência da vontade e relacionar-se com minha vontade em seu todo, isto é, com meu caráter inteligível, cuja aparência no tempo é meu caráter empírico, da mesma forma que a ação isolada do corpo se relaciona com o ato isolado da vontade. Logo, todo o corpo não tem de ser outra coisa senão minha vontade que se torna visível, tem de ser a minha vontade mesma na medida em que esta é objeto intuível, representação da primeira classe. — Em confirmação de tudo isso, recorde-se que toda ação sobre o corpo afeta simultânea e imediatamente a vontade e, nesse sentido, chama-se dor ou prazer, ou, em graus menores, sensação agradável ou desagradável; inversamente, todo movimento veemente da vontade, portanto todo afeto e paixão, abala o corpo e perturba o curso de suas funções. — Sem dúvida, é possível fornecer uma explanação etiológica, embora bastante imperfeita, da origem e da conservação de meu corpo, e melhor ainda de seu desenvolvimento: neste caso se tem justamente a fisiologia: só que esta explica o seu objeto de estudo exatamente do mesmo modo como os motivos explicam a ação. Por conseguinte, assim como a fundamentação da ação isolada por um motivo e suas consequências necessárias não contradizem o fato de que o agir em geral segundo seu ser é apenas aparência de uma vontade em si mesma sem fundamento, assim também a explanação fisiológica da função do corpo pouco compromete a verdade filosófica de que toda a existência do corpo e a série total de suas funções é somente a objetivação da vontade que aparece em ações exteriores desse mesmo corpo segundo motivos. Se, porém, a fisiologia procura remeter até mesmo essas ações exteriores, os movimentos voluntários imediatos, a causas no organismo, por exemplo, explanando o movimento dos músculos por um influxo de sucos, e supondo-se que chegasse de fato a uma explanação última de tudo isso, ainda assim de modo algum seria suprimida a verdade imediatamente certa de que todo movimento voluntário é aparecimento de um ATO DA VONTADE. Tampouco a explanação fisiológica da vida vegetativa, por mais longe que vá, pode suprimir a verdade de que toda vida animal, e seu desenvolvimento, é apenas aparência da vontade. De modo geral, como foi elucidado antes, cada explanação etiológica só pode fornecer a posição necessariamente determinada no espaço e no tempo de uma aparência particular, seu aparecimento necessário conforme uma regra fixa: mas por essa via a essência íntima da aparência permanece sempre infundada e pressuposta por qualquer explanação etiológica, sendo indicada pelo nome força, lei natural ou, caso se trate de ações, caráter, vontade. — Portanto, apesar de cada ação isolada, sob a pressuposição de um caráter determinado, seguir-se necessariamente do motivo apresentado, e apesar de o crescimento, o processo de alimentação e as mudanças completas no corpo animal se darem segundo causas que fazem efeito necessariamente; mesmo assim a série completa das ações, portanto também cada ação isolada, bem como sua condição, o corpo todo que a consuma, conseguintemente o processo no e pelo qual o corpo subsiste não são outra coisa senão a aparência da vontade, o tornar-se visível, a OBJETIDADE DA VONTADE. Nisso baseia-se a perfeita adequação dos corpos humano e animal às vontades humana e animal, semelhante, mas superando-a em muito, à adequação que um instrumento intencionalmente fabricado tem com a vontade de seu fabricante, aparecendo assim como finalidade; noutros termos, abre-se o caminho para a explanação teleológica do corpo. Desse ponto de vista, as partes do corpo têm de corresponder perfeitamente às principais solicitações pelas quais a vontade se manifesta, têm de ser a sua expressão visível: dentes, esôfago, canal intestinal são a fome objetivada; os genitais são o impulso sexual objetivado; as mãos que agarram e os pés velozes já correspondem ao empenho mais indireto da vontade que eles expõem. E assim como a forma humana em geral corresponde à vontade humana em geral, assim também a constituição física do indivíduo corresponde à vontade individualmente modificada, ao caráter do indivíduo; constituição esta que, portanto, sem exceção, é em todas as partes característica e significativa. Notável é que Parmênides   já tenha expressado isso nos seguintes versos transcritos por Aristóteles: Ut enim cuique complexio membrorum flexibilium se babet, ita mens hominibus adest: idem namque est, quod sapit, membrorum natura bominibus, et omnibus et omni: quod enim plus est, intelligentia est. [MVR1: §20]

A FINALIDADE INTERNA insere-se da seguinte maneira no encadeamento da nossa consideração. Se, de acordo com o que foi dito, toda a diversidade de figuras da natureza e toda a pluralidade de indivíduos não pertencem à vontade, mas apenas à sua objetidade e à forma desta, então se segue daí necessariamente que a vontade é indivisa, presente por completo em cada aparência, embora os graus de sua objetivação, as ideias platônicas, sejam bem diversos. Em vista de melhor compreensão podemos considerar as diversas ideias como atos isolados, e em si simples, da vontade, nos quais a sua essência se exprime mais, ou menos: os indivíduos, por sua vez, são aparências das ideias, portanto são aqueles atos no tempo, no espaço e na pluralidade. — Nos graus mais baixos de sua objetidade, o ato ou ideia mantém a sua unidade, mesmo na aparência, enquanto nos graus mais elevados precisa de toda uma série de estados e desenvolvimentos no tempo para poder aparecer, estados que, tomados em conjunto, completam a expressão da sua essência. Assim, por exemplo, a ideia que se manifesta em alguma força universal da natureza tem sempre apenas uma exteriorização simples, apesar de esta expor-se diferentemente de acordo com as relações exteriores, do contrário, não se poderia demonstrar sua identidade, pois esta se dá justamente quando se abstrai a diversidade resultante dessas relações exteriores. Do mesmo modo, o cristal possui apenas UMA exteriorização de vida, isto é, sua formação, que depois se exprime plena, adequada e exaustivamente na forma cristalizada, este cadáver de uma vida momentânea. Já a planta não exprime a ideia da qual é aparência de uma única vez por exteriorização simples, mas na sucessão de desenvolvimentos de seus órgãos no tempo. O animal não desenvolve seu organismo de um só modo numa sucessão de figuras frequentemente bem diversas metamorfose, mas sua figura mesma, embora já objetidade da vontade neste grau, ainda não alcançou a exposição plena de sua ideia, exposição esta que é antes complementada pelas suas ações, que expressam o seu caráter empírico — o mesmo em toda a espécie — e só assim se dá a manifestação plena da sua ideia, que pressupõe o organismo determinado como condição fundamental. Já no ser humano o caráter empírico é peculiar a cada indivíduo. O que é conhecido como caráter empírico através do desenvolvimento necessário no tempo, e a divisão em ações isoladas resultante de tal desenvolvimento, é, abstraindo-se a forma temporal da aparência, o CARÁTER INTELIGÍVEL, conforme a expressão de Kant  , que, assim, mostra brilhantemente o seu mérito imortal, especialmente quando demonstra e expõe a diferença entre liberdade e necessidade, isto é, a diferença propriamente dita entre a vontade como coisa em si e o seu aparecimento no tempo. O caráter inteligível coincide, portanto, com a ideia ou, dizendo mais apropriadamente, com o ato originário da vontade que nela se objetiva: em verdade, não é apenas o caráter empírico de cada ser humano, mas também o caráter empírico de cada espécie animal, sim, de cada espécie vegetal e até mesmo de cada força originária da natureza inorgânica que deve ser visto como aparência de um caráter inteligível, isto é, de um ato indiviso e extratemporal da vontade. — De passagem gostaria de fazer aqui a observação acerca da ingenuidade com que cada planta expressa e expõe de maneira explícita todo o seu caráter pela simples figura, manifestando assim todo o seu ser e querer, com o que as suas fisiognomias são tão interessantes; já o animal, para ser conhecido de acordo com a sua ideia, precisa ser observado em suas ações e esforços, e o ser humano precisa ser inteiramente investigado e avaliado, pois sua faculdade racional o torna apto à dissimulação no mais alto grau. O animal é tanto mais ingênuo que o ser humano quanto a planta é mais ingênua que o animal. Nos animais vemos a Vontade de vida, por assim dizer, mais nua que no ser humano, no qual ela veste-se com tanto conhecimento e, ainda, é tão velada pela capacidade de dissimulação que a sua essência vem ao primeiro plano só casualmente, e em momentos isolados. Totalmente nua, mas também mais fracamente, a Vontade de vida se mostra na planta como mero ímpeto cego para a existência, carente de fim e alvo. A planta revela todo o seu ser à primeira vista e com perfeita inocência, sem sofrer por carregar os genitais expostos à visão em sua parte superior, enquanto nos animais os genitais estão situados em partes ocultas. Essa inocência das plantas repousa em sua falta de conhecimento: não no querer, mas no querer com conhecimento é que reside a culpa. Toda planta conta-nos sobre a sua terra, o seu clima e a natureza do solo em que nasceu. Eis por que até mesmo o leigo sabe facilmente se uma planta exótica pertence aos trópicos ou a uma zona temperada, se cresce na água ou nos pântanos, nas montanhas ou em maciços. Ademais, cada planta expressa a vontade própria da sua espécie e diz algo de inexprimível em nossas línguas. — Doravante, usemos o que foi dito e, então, façamos uma consideração teleológica dos organismos, na medida em que a mesma concerne à finalidade interna deles. Quando, na natureza inorgânica, a ideia a ser considerada em toda parte como um ato único da vontade também se revela numa exteriorização única e sempre igual, pode-se dizer que aí o caráter empírico participa imediatamente da unidade do caráter inteligível, como que coincide com ele, pelo que, neste caso, não é evidente finalidade interna alguma. Por outro lado, se todos os organismos exprimem a sua ideia pela sucessão de desenvolvimentos contínuos condicionados por uma variedade de partes diferentes, então, nesse caso, só a soma das exteriorizações do caráter empírico é a expressão completa do caráter inteligível; entretanto, essa coexistência necessária das partes e a sucessão de desenvolvimentos não suprimem a unidade da ideia que aparece, isto é, do ATO DA VONTADE que se exterioriza: antes, semelhante unidade encontra a sua expressão na relação necessária e concatenação daquelas partes entre si, de acordo com a lei de causalidade. Ora, visto que é a vontade única e indivisa — e justamente por isso inteiramente coerente consigo mesma — que manifesta a si em toda a ideia como se se manifestasse num ato, segue-se que o aparecimento da vontade, embora entre em cena numa diversidade de partes e estados, tem de mostrar novamente aquela unidade na concordância completa de tais partes e estados: isso ocorre por meio de uma relação necessária e uma dependência de todas as partes entre si, com o que também a unidade da ideia é restabelecida na aparência. Com isso conhecemos todas as diversas partes e funções do organismo como meios e fins recíprocos umas das outras, enquanto o organismo, nele mesmo, é o fim último de todas. Consequentemente, tanto o desdobramento da ideia, em si simples, na pluralidade de partes e estados do organismo, de um lado, quanto, de outro, o restabelecimento de sua unidade pela ligação necessária de semelhantes partes e funções, na medida em que são causa e efeito, portanto meios e fins umas das outras, não são essenciais e próprios à vontade, à coisa em si mesma que aparece, mas apenas ao seu aparecimento no espaço, no tempo e na causalidade. Pertencem, portanto, ao mundo como representação, não ao mundo como vontade; pertencem à maneira como a vontade se torna objeto, isto é, representação neste grau de sua objetidade. Quem penetrou o sentido dessa elucidação, talvez bastante difícil, entenderá de maneira correta a doutrina kantiana de que tanto a finalidade do orgânico quanto a legalidade do inorgânico são primariamente introduzidas por nosso entendimento na natureza e concernem apenas à aparência, não à coisa em si. A admiração anteriormente mencionada pela constância infalível da legalidade da natureza inorgânica é, no fundo, a mesma que se tem pela finalidade da natureza orgânica: pois em ambos os casos nos surpreendem com a visão da unidade originária da ideia, que, na aparência, assumiu a forma da pluralidade e da diferença. No que se refere ao segundo tipo de finalidade, conforme a divisão feita antes, ou seja, a finalidade EXTERNA que se mostra não na economia interna dos organismos, mas no apoio e na ajuda que recebem de fora, tanto da natureza inorgânica quanto uns dos outros, o seu esclarecimento geral já se encontra na elucidação recém fornecida, na medida em que o mundo inteiro, com todas as suas aparências, é a objetidade de uma única e indivisa vontade, é a ideia que se relaciona com todas as outras como a harmonia com as vozes isoladas; por conseguinte, a unidade da vontade tem de mostrar a si mesma também na concordância de todas as suas aparências entre si. Podemos, sem dúvida, elevar essa intelecção a uma distinção muito maior caso olhemos mais de perto as aparências daquela finalidade externa e da concordância das diversas partes da natureza entre si; elucidação esta que, ao mesmo tempo, lançará ainda mais luz sobre a elucidação precedente. Atingiremos melhor este fim mediante a consideração da seguinte analogia. [MVR1: §28]

Esclarecemos anteriormente a beleza humana como a objetivação mais perfeita da vontade no grau mais elevado de sua cognoscibilidade. Essa beleza expressa a si mesma através da forma: e esta reside apenas no espaço, e não tem referência necessária alguma ao tempo, como, por exemplo, o movimento o tem. Por consequência, podemos dizer que: a objetivação adequada da vontade por meio de uma aparência meramente espacial é a beleza em sentido objetivo. As plantas não passam de tais aparências meramente espaciais da vontade; ora, como nenhum movimento e, em consequência, nenhuma referência ao tempo pertence à expressão do ser da planta, segue-se que a sua mera figura expressa e explicita toda a sua natureza. Animais e humanos, entretanto, ainda precisam, para a manifestação plena da vontade que neles aparece, de uma série de ações, pelas quais o que neles aparece adquire uma referência imediata ao tempo. Tudo isso já foi elucidado no livro anterior e agora conecta-se à nossa presente consideração devido ao seguinte. Assim como a aparência meramente espacial da vontade pode objetivá-la perfeita ou imperfeitamente em cada grau determinado, o que justamente constitui a beleza ou a feiura; assim também a objetivação temporal da vontade, isto é, a ação, portanto o movimento, pode corresponder — e em verdade de modo imediato — pura e perfeitamente à vontade que nele se objetiva, sem interferência alheia, sem nada de supérfluo, sem privação, expressando tão somente, a cada vez, o ato determinado da vontade; — ou pode ocorrer justamente o contrário. No primeiro caso o movimento ocorre com GRAÇA; no segundo, sem graça. Logo, assim como a beleza é a exposição correspondente da vontade em geral por meio de seu aparecimento meramente espacial, também a GRAÇA é a exposição correspondente da vontade por meio de seu aparecimento temporal, isto é, a expressão perfeitamente correta e adequada de cada ATO DA VONTADE por intermédio do movimento e da postura nos quais ele se objetiva. E, visto que o movimento e a postura pressupõem o corpo, é bastante justa e acertada a expressão de Winckelmann: “A graça é a proporção característica da pessoa que age com a ação”. Segue-se automaticamente que pode ser atribuída beleza às plantas, mas não graça; animais e humanos têm beleza e graça. A graça, por consequência, consiste no fato de cada movimento e postura darem-se da maneira mais adequada, espontânea e confortável possível, sendo assim a expressão pura e adequada de uma intenção ou ATO DA VONTADE, sem nada de supérfluo e sem privação. A graça pressupõe uma proporção justa de todos os membros, uma estrutura corpórea simétrica, harmônica, pois somente assim são possíveis a leveza perfeita e a finalidade evidente em todas as posturas e movimentos: portanto, a graça nunca é possível sem certo grau de beleza corporal. Graça e beleza, perfeitas e unidas, são o aparecimento mais distinto da vontade no grau mais elevado de sua objetivação. [MVR1: §45]

Portanto, após o exposto, injustiça e justiça são simples determinações MORAIS, ou seja, são aquelas determinações válidas em relação à conduta humana enquanto tal e em relação à ÍNTIMA SIGNIFICAÇÃO DESSA CONDUTA EM SI. Tal significação anuncia imediatamente a si na consciência devido ao fato de, por um lado, a prática de a injustiça ser acompanhada por uma dor interior, a qual é simplesmente a consciência sentida de quem praticou a injustiça por força excessiva de afirmação da vontade presente na própria pessoa, até o grau de negação da aparência da vontade alheia; por outro lado, devido ao fato de o praticante da injustiça, embora na aparência diferente de quem a sofre, ser idêntico em essência ao sofredor. A explanação completa dessa significação íntima de todo peso de consciência só pode ser dada mais adiante. Quem sofre injustiça, em realidade, está dolorosamente consciente da negação da sua vontade tal como esta se expressa no próprio corpo com suas necessidades naturais, para cuja satisfação a natureza indica as forças corporais mesmas; ao mesmo tempo, está consciente de que, sem praticar injustiça, pode defender-se de todas as maneiras daquela negação, caso não lhe falte o poder. Essa significação puramente moral é a única que a justiça e a injustiça têm para os seres humanos enquanto seres humanos, não como cidadãos do Estado; consequentemente, manter-se-ia inclusive no estado de natureza, sem lei positiva; significação que constitui a fundação e o conteúdo de tudo aquilo que, por esse motivo, denominou-se DIREITO NATURAL, que se poderia melhor denominar direito moral, pois sua validade não se estende ao sofrimento, à realidade exterior, mas só ao ato e ao autoconhecimento oriundo desse ATO DA VONTADE individual, autoconhecimento que se chama CONSCIÊNCIA MORAL. No estado de natureza essa validade, mesmo a partir do exterior, não pode se dar em todos os casos para cada indivíduo e assim impedir que a violência, em vez de o direito, impere. No estado de natureza depende de cada um em cada caso NÃO PRATICAR injustiça, mas de modo algum depende de cada um em cada caso não SOFRER injustiça, algo que depende do próprio poder exterior, que é contingente. Nesse sentido, os conceitos de justiça e injustiça são de fato válidos para o estado de natureza, não sendo de modo algum convencionais; porém, eles valem ali tão somente como conceitos MORAIS para o autoconhecimento da vontade de cada um. Em realidade, na escala dos graus extremamente variados de força com que a Vontade de vida se afirma em cada indivíduo humano, os referidos conceitos são um ponto fixo comparável ao ponto zero num termômetro, a saber, o ponto no qual a afirmação da própria vontade torna-se negação da vontade alheia, isto é, indica mediante a ação injusta o grau de intensidade da própria vontade unido com o grau no qual o conhecimento encontra-se submergido no principium individuationis. Quem, todavia, deseja pôr de lado a consideração puramente moral da conduta humana, ou negá-la e a considerar somente segundo sua eficácia exterior e consequência, pode certamente, com Hobbes  , declarar justiça e injustiça determinações convencionais, arbitrariamente adotadas e, por conseguinte, inexistentes fora da lei positiva; e com isso nunca podemos apontar-lhe na experiência externa o que não pertence à experiência externa. É esse HOBBES o mesmo que, em seu livro De princips geometrarum, caracteriza estranhamente seu modo de pensamento, no todo empírico, negando por completo a matemática propriamente pura, ao afirmar obstinadamente que o ponto possui extensão e a linha possui largura, e, como nunca podemos exibir-lhe um ponto sem extensão e uma linha sem largura, tampouco podemos fazer-lhe compreender a aprioridade da matemática ou a aprioridade do direito, visto que ele se fecha a qualquer conhecimento não empírico. [MVR1: §62]