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Schopenhauer (MVR1): vontade humana

quinta-feira 25 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

  

22. Essa COISA EM SI, que enquanto tal jamais é objeto, porque todo objeto é apenas sua aparência e não ela mesma, se pudesse ser pensada objetivamente, teria de emprestar nome e conceito de um objeto, de algo dado de certa forma objetivamente, por consequência de uma de suas aparências: esta, contudo, em apoio à compreensão, não poderia ser outra coisa senão a mais perfeita dentre suas aparências, isto é, a mais nítida, a mais desenvolvida, imediatamente iluminada pelo conhecimento: exatamente a VONTADE HUMANA. Todavia, é preciso observar que aqui obviamente empregamos somente uma denominatio a potiori, mediante a qual o conceito de vontade adquire uma maior envergadura que a possuída até então. Ora, o conhecimento do idêntico em aparências diferentes e do diferente em aparências semelhantes é justamente, como Platão amiúde observa, a condição da filosofia. No entanto, até agora ninguém reconheceu a identidade da essência de cada força que se empenha e faz efeito na natureza com a vontade e, por conseguinte, as múltiplas e variadas aparências que são somente espécies diversas do mesmo gênero não foram consideradas como tal, mas como heterogêneas: eis por que não podia haver palavra alguma para designar o conceito desse gênero. Eu, por conseguinte, nomeio o gênero de acordo com a sua espécie mais distinta e perfeita, cujo conhecimento imediato está mais próximo de nós, conduzindo-nos ao conhecimento mediato de todas as outras. Em consequência, estaria sempre numa renovada incompreensão quem não fosse capaz de levar a bom termo a aqui exigida ampliação do conceito de VONTADE, entendendo por esta palavra somente a espécie designada até agora pelo termo, acompanhada de conhecimento segundo motivos, e motivos abstratos, logo, exteriorizando-se a si mesma sob a condução da faculdade racional; todavia, como foi dito, essa é apenas a aparência mais nítida da vontade. Doravante, temos de separar de maneira pura em nosso pensamento a essência mais íntima, imediatamente conhecida dessa aparência, e em seguida atribuí-la a todas as aparências mais débeis, menos nítidas da mesma essência, pelo que consumaremos a pretendida ampliação do conceito de vontade. — Também me compreenderá mal quem pensar que é indiferente se indico a essência em si de cada aparência por vontade ou qualquer outra palavra. Este seria o caso se a coisa em si fosse algo cuja existência pudéssemos simplesmente DEDUZIR e, assim, conhecê-la apenas mediatamente, in abstracto: então se poderia denominá-la como bem se quisesse: o nome seria um mero sinal de uma grandeza desconhecida. Contudo, o termo VONTADE, que, como uma palavra mágica, deve desvelar-nos a essência mais íntima de cada coisa na natureza, de modo algum indica uma grandeza desconhecida, algo alcançado por silogismos, mas sim algo conhecido por inteiro, imediatamente, e tão conhecido que aquilo que é vontade sabemos e compreendemos melhor do que qualquer outra coisa, seja o que for. —Até os dias atuais subsumiu-se o conceito de VONTADE sob o conceito de FORÇA: eu, porém, faço precisamente o contrário, e considero cada força na natureza como vontade. Não se vá imaginar que isso é uma mera discussão de palavras, algo trivial: antes, trata-se de um assunto da mais alta significação e importância. Pois ao conceito de FORÇA subjaz, como a todos os outros conceitos, em última instância o conhecimento intuitivo do mundo objetivo, isto é, a aparência, a representação, justamente no que se esgota qualquer conceito. O conceito de força é abstraído do domínio em que regem causa e efeito, portanto da representação intuitiva, e significa o ser causa da causa: ponto este além do qual nada é etiologicamente mais explicável e no qual se encontra o pressuposto necessário de toda explanação etiológica. O conceito de VONTADE, ao contrário, é o único dentre todos os conceitos possíveis que NÃO tem sua origem na aparência, NÃO a tem na mera representação intuitiva, mas antes provém da interioridade, da consciência imediata do próprio indivíduo, na qual este se conhece de maneira direta, conforme sua essência, isento de todas as formas, mesmo as de sujeito e objeto, visto que aqui quem conhece coincide com o que é conhecido. Se, portanto, remetemos o conceito de FORÇA ao de VONTADE, em realidade remetemos algo desconhecido a algo infinitamente mais bem conhecido, àquilo que unicamente nos é conhecido de maneira imediata e completa e que amplia de maneira enorme o nosso conhecimento. Se, ao contrário, como ocorreu até hoje, subsumimos o conceito de VONTADE sob o de FORÇA, renunciamos ao único conhecimento imediato que temos da essência íntima do mundo, fazendo o conceito de vontade dissipar-se num conceito abstraído da aparência, e que, por conseguinte, jamais nos permite ultrapassar a aparência. [MVR1: §22]

Foi anteriormente observado que o pôr-se no estado do puro intuir ocorre da maneira mais fácil quando os próprios objetos acomodam-se a tal estado, isto é, quando, mediante a sua figura variada e ao mesmo tempo distinta e determinada, tornam-se facilmente representantes de suas ideias, no que justamente consiste a beleza em sentido objetivo. Sobretudo a bela natureza possui essa qualidade e assim proporciona até mesmo à pessoa mais insensível ao menos uma satisfação estética fugaz: sim, é notável como o reino vegetal em particular convida à consideração estética, como que a exige; poderíamos até dizer que esse vir ao encontro de nós está ligado ao fato de tais seres orgânicos não serem, como os corpos animais, objetos imediatos do conhecimento: por conseguinte, precisam de outro indivíduo dotado de entendimento para, a partir do mundo do querer cego, entrarem em cena no mundo como representação; é como se anelassem por essa entrada em cena para ao menos obterem de maneira mediata aquilo que lhes é negado obter imediatamente. Porém, não insistirei nesse pensamento arriscado, talvez beirando o excêntrico, pois apenas uma consideração bastante íntima e concentrada da natureza poderá despertá-lo e justificá-lo. Enquanto esse vir ao encontro da natureza e a significação e distinção de suas formas mediante as quais nos falam as ideias nelas individualizadas for o que nos tira do conhecimento das meras relações que servem à vontade, pondo-nos no estado de contemplação estética, para assim nos elevar a puro sujeito do conhecer destituído de vontade, é simplesmente o BELO que age sobre nós, e o sentimento aí despertado é o da beleza. Porém, pode ocorrer que precisamente os objetos que nos convidam com suas figuras significativas à pura contemplação tenham uma relação hostil com a VONTADE HUMANA em geral e são-lhe contrários, ameaçando-a com toda a sua superpotência que elimina qualquer resistência, ou reduzindo-a a nada com toda a sua grandeza incomensurável; ora, se apesar disso o contemplador não dirige a sua atenção a essa relação hostil, impositiva contra sua vontade, mas, embora a perceba e a reconheça, desvia-se dela com consciência, na medida em que se liberta violentamente da própria vontade e de suas relações, entregue agora tão somente ao conhecimento, e contempla calmamente como puro sujeito do conhecer destituído de vontade exatamente aqueles objetos tão aterradores para a vontade, apreendendo somente a sua ideia alheia a qualquer relação, por conseguinte detendo-se de bom grado em sua contemplação, conseguintemente elevando-se por sobre si mesmo, sua pessoa, seu querer, qualquer querer — então o que o preenche é o sentimento do SUBLIME, ele se encontra no estado de elevação, justamente também nomeando-se SUBLIME o objeto que ocasiona esse estado. O que diferencia o sentimento do sublime do sentimento do belo é o seguinte: no belo o conhecimento puro ganhou a preponderância sem luta, pois a beleza do objeto, isto é, a sua característica que facilita o conhecimento da ideia, removeu da consciência, sem resistência e portanto imperceptivelmente, a vontade e o conhecimento das relações a seu serviço; o que aí resta é o puro sujeito do conhecimento, sem nenhuma lembrança da vontade: no sublime, ao contrário, aquele estado do conhecimento puro é conquistado por um desprender-se consciente e violento das relações conhecidas como desfavoráveis do objeto com a vontade, mediante um livre elevar-se acompanhado de consciência sobre a vontade e o conhecimento que se relaciona com esta. Tal elevação tem de ser não apenas ganha com consciência, mas também mantida com consciência; daí ela ser continuamente acompanhada de uma lembrança da vontade, porém não a de um querer particular, individual, como temor e desejo, mas do querer humano em geral, na medida em que este é expresso universalmente em sua objetidade, o corpo humano. Caso entre em cena na consciência um ato isolado e real da vontade por meio de uma efetiva aflição pessoal ou de um perigo advindo do objeto, então imediatamente a vontade individual, assim efetivamente excitada, ganha a preponderância, tornando impossível a tranquilidade da contemplação e fazendo que se perca a impressão do sublime, pois esta cede lugar à angústia, pela qual o esforço do indivíduo para salvar-se reprime aquele outro pensamento. — Alguns exemplos contribuirão bastante para tornar clara essa teoria do sublime estético e assim colocá-la fora de dúvida; ao mesmo tempo, tais exemplos mostrarão a diversidade de graus do sentimento do sublime. Este, como vimos, confunde-se em sua determinação fundamental com o sentimento do belo, a saber, o puro conhecer destituído de vontade e a entrada em cena necessária do conhecimento das ideias alheias às relações determinadas pelo princípio de razão. O sentimento do sublime distingue-se do sentimento do belo apenas por um elemento adicional, a saber, pelo elevar-se sobre a relação conhecida como hostil do objeto contemplado com a vontade em geral. Nascem daí diversos graus de sublime, sim, gradações entre o belo e o sublime, à medida que esse elemento adicional seja forte, clamoroso, impositivo, próximo, ou apenas fraco, distante, só indicado. Penso ser mais apropriado para a minha exposição primeiro trazer diante dos olhos essas gradações e, em geral, os graus mais fracos de impressão do sublime, embora aquelas pessoas sem receptividade estética acentuada e sem fantasia vivaz só poderão compreender os exemplos que mais adiante serão fornecidos dos graus mais elevados e distintos do sublime — únicos nos quais podem se deter, podendo portanto deixar de lado os primeiros exemplos dos graus mais débeis da mencionada impressão. [MVR1: §39]

Como resultado de toda essa consideração sobre a liberdade da vontade e daquilo que a ela se refere, encontramos que, embora a vontade em si mesma e fora da aparência deva ser denominada livre, onipotente, todavia nas suas aparências individuais, em que é iluminada pelo conhecimento, portanto nos seres humanos e animais, ela é determinada por motivos, aos quais cada caráter sempre reage do mesmo modo, regular e necessariamente. Nos seres humanos, devido ao acréscimo do conhecimento abstrato ou racional, vemos como vantagem sua em relação aos animais uma DECISÃO ELETIVA, que, entretanto, apenas o torna um campo de batalha do conflito entre motivos, sem contudo subtraí-lo ao império deles, os quais, de fato, condicionam a possibilidade da perfeita exteriorização do caráter individual; porém, de modo algum a decisão eletiva deve ser vista como liberdade do querer individual, isto é, independência da lei de causalidade, cuja necessidade estende-se tanto aos seres humanos quanto a qualquer outra aparência. Por conseguinte, até o ponto mencionado, não além, vai a diferença que a razão ou o conhecimento intermediado por conceitos produz entre o querer humano e o querer animal. Contudo, pode se dar um acontecimento de outra natureza concernente à VONTADE HUMANA e impossível na animalidade quando o ser humano abandona todo o conhecimento das coisas isoladas enquanto tais, submetido ao princípio de razão, e, por intermédio do conhecimento das ideias, olha através do principium individuationis; aqui, de fato, é possível uma entrada em cena da liberdade propriamente dita da vontade como coisa em si, com o que a aparência põe-se numa certa contradição consigo mesma, tal qual expressa pela palavra auto-abnegação, e que, em última instância, pode chegar à supressão do em si do seu ser. Esta única e propriamente imediata exteriorização da liberdade da vontade em si também na aparência não pode ser aqui exposta claramente, ficando para a parte final e conclusiva de nossa consideração. [MVR1: §55]

Essa discussão acerca do sentido e da essência íntima do MAU, que, como mero sentimento, isto é, NÃO como conhecimento claro e abstrato, constitui o conteúdo do PESO DE CONSCIÊNCIA, ganhará ainda mais distinção e completude mediante a consideração do BOM, desenvolvida nos mesmos moldes, como característica da VONTADE HUMANA, e finalmente da resignação completa e santidade resultante dessa característica quando ela atinge o seu grau mais elevado. Pois os opostos sempre se esclarecem mutuamente e o dia revela simultaneamente a si mesmo e à noite, como Espinosa   disse de maneira admirável. [MVR1: §65]

Ademais, é exatamente a solução intentada da pretensa terceira antinomia o que dá oportunidade a Kant   para expressar o pensamento mais profundo de toda a sua filosofia. Nesse sentido, leia-se toda a “sexta seção da antinomia da razão pura”, sobretudo a discussão sobre a diferença entre o caráter empírico e o inteligível, que conto entre aquilo que de mais excelso já foi dito pelo ser humano. No entanto, é de lamentar ainda mais que isto não esteja aqui no lugar certo, na medida em que, de um lado, isso não é encontrado no caminho indicado pela exposição, e portanto poderia ser deduzido de maneira diferente, de outro, não satisfaz o objetivo para o qual ali se encontra, vale dizer, a solução da pretensa antinomia. Infere-se, a partir da aparência, o seu fundamento inteligível, a coisa em si, pelo uso inconsequente e já criticado à exaustão da categoria de causalidade, para além de toda aparência. Para este caso a VONTADE HUMANA é estabelecida apelando-se a um dever incondicionado, o imperativo categórico, postulado sem mais nem menos. [MVR1: Apêndice: Crítica da Filosofia Kantiana]