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Schopenhauer (MVR1): nascimento e morte

quinta-feira 25 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

  

Como a Vontade é a coisa-em-si, o conteúdo íntimo, o essencial do mundo, e a vida, o mundo visível, o fenômeno, é seu espelho; segue-se daí que este mundo acompanhará a Vontade tão inseparavelmente quanto a sombra acompanha o corpo. Onde existe Vontade, existirá vida, mundo. Portanto, à Vontade de vida a vida é certa, e, pelo tempo em que estivermos preenchidos de Vontade de vida, não precisamos temer por nossa existência, nem pela visão da morte. Decerto vemos o indivíduo nascer e perecer. Entretanto, o indivíduo é apenas fenômeno, existe apenas para o conhecimento pertencente ao princípio de razão, para o principio individuationis. Da perspectiva desse conhecimento, o indivíduo ganha a sua vida como uma dádiva, surge do nada, e depois sofre a perda dessa dádiva através da morte, voltando ao nada. Todavia, como queremos considerar filosoficamente a vida, a saber, suas Ideias, notaremos que nem a Vontade, a coisa-em-si em todos os fenômenos, nem o sujeito do conhecimento, o espectador de todos fenômenos, são afetados de alguma maneira por NASCIMENTO E MORTE. NASCIMENTO E MORTE pertencem exclusivamente ao fenômeno da Vontade, logo, à vida, à qual é essencial expor-se em indivíduos, os quais nascem e perecem. Indivíduos que são fenômenos fugidios Daquilo que, apesar de aparecer na forma do tempo, em si mesmo não conhece tempo algum, porém tem de expor-se exatamente da maneira mencionada para assim objetivar a sua essência propriamente dita. Portanto, NASCIMENTO E MORTE pertencem igualmente à vida e se equilibram como condições recíprocas, ou, caso se prefira a expressão, como pólos de todo o fenômeno da vida. A mais sábia de todas as mitologias, a indiana, exprime isso dando ao Deus que simboliza a destruição e a morte (como Brama, o Deus mais pecaminoso e menos elevado do Trimurti, simboliza a geração e o nascimento, e Vishnu a conservação), Shiva, o atributo do colar de caveiras e, ao mesmo tempo, o linga, símbolo da geração, que aparece como contrapartida da morte. Dessa forma indica-se que geração e morte são correlatas essenciais que reciprocamente se neutralizam e suprimem. – O mesmo sentimento levava os gregos e os romanos a [358] adornar seus preciosos sarcófagos, como ainda hoje em dia os vemos, com festas, danças, núpcias, caçadas, lutas de animais, bacanais, portanto com representações do ímpeto violento da vida, o qual tratam não apenas nesses divertimentos mas também em grupos voluptuosos, indo até mesmo ao ponto de exibir o intercurso sexual entre sátiros e cabras. O objetivo, manifestamente, era, por ocasião da morte do indivíduo chorado, apontar com grande ênfase para a vida imortal da natureza e, assim, embora sem conhecimento abstrato, aludir ao fato de toda a natureza ser o fenômeno e também o preenchimento da Vontade de vida. A forma desse fenômeno é tempo, espaço e causalidade, e por intermédio deles a individuação, que acarreta consigo o nascer e o perecer individuais, sem contudo atingir a Vontade de vida – de cujo fenômeno o indivíduo é, por assim dizer, só um exemplo particular ou espécime –, tampouco quanto o todo da natureza é injuriado pela morte do indivíduo. Pois não é este, mas exclusivamente a espécie, que merece os cuidados da natureza, a qual, com toda seriedade, obra por sua conservação e prodigamente se preocupa com ela mediante o excedente bizarro de sêmens e grande poder do impulso de fecundação. O indivíduo, ao contrário, não tem valor algum para eia, nem pode ter, pois o seu reino é o tempo infinito, o espaço infinito e, nestes, o número infinito de possíveis indivíduos. Eis por que ela sempre está disposta a deixar o ser individual desaparecer, o qual portanto se sujeita não apenas a sucumbir em milhares de maneiras diferentes, por meio dos acasos mais insignificantes, mas originariamente já é determinado a isso e levado a desaparecer pela própria natureza desde o instante em que tenha servido à conservação da espécie. A natureza diz aí, bem ingenuamente, a grande verdade: apenas as Ideias, não os indivíduos, têm realidade propriamente dita, isto é, são objetidade perfeita da Vontade. Ora, como o homem é a natureza mesma, e decerto no grau mais elevado de sua autoconsciência, e por seu turno a natureza é apenas a Vontade de vida objetivada; o homem que apreendeu e permaneceu neste ponto de vista pode certamente, e com justeza, consolar a si mesmo em face de sua morte e da de seus amigos, quando olha retrospectivamente a vida imortal da natureza, pois sabe que esta é ele mesmo. Conseguintemente, é dessa maneira que Shiva, com o linga, deve ser entendido, bem como aqueles antigos sarcófagos que com seus [359] quadros da vida mais ardente exclamam aos espectador choroso: Natura non contristatur [A natureza não se entristece]. [tr. Jair Barboza; SMVR1: Livro IV §54]

De tudo o que foi dito até agora segue-se que a negação da Vontade de vida, ou – é o mesmo – a resignação completa, a santidade, sempre procede do quietivo da Vontade que é o conhecimento do seu conflito interno e da sua nulidade essencial, a expressarem-se no sofrer de todo vivente. A diferença que expusemos como dois caminhos reside em se o conhecimento advém do simples e puro sofrimento conhecido e livremente adquirido por intermédio da visão através do principii individuationis, ou do sofrimento sentido imediatamente. Salvação verdadeira, redenção da vida e do sofrimento, é impensável sem a completa negação da Vontade. Até então cada um não passa dessa Vontade, cujo fenômeno é uma existência efêmera, um esforço sempre nulo e continuamente malogrado, o mundo tal qual exposto, cheio de sofrimento, ao qual todos pertencem irrevogavelmente de maneira igual. Pois encontramos acima que à Vontade de vida a vida é sempre certa, e sua única forma verdadeira é o presente, ao qual nunca escapa, por mais que NASCIMENTO E MORTE governem no fenômeno. Um mito indiano exprime isso quando diz: “eles renascerão”. A grande diferença ética dos caracteres tem a seguinte significação: a pessoa má se encontra infinitamente distante de atingir o conhecimento a partir do qual provém a negação da Vontade e, por conseguinte, é em verdade efetivamente presa de todos os tormentos que aparecem na vida como possíveis, pois até mesmo o estado atual e feliz de sua pessoa nada é senão um fenômeno intermediado pelo principium individuationis, ilusão de Maya, sonho feliz de um mendigo. O sofrimento que na veemência e fúria do seu próprio ímpeto volitivo inflige aos outros é a medida do sofrimento cuja experiência em sua pessoa não quebra a Vontade, nem a conduz à negação final. Por outro lado, todo amor puro e verdadeiro, sim, até mesmo toda justiça livre já resultam da visão através do principii individuationis, a qual, caso entre em cena com sua plena força, produz a completa salvação e redenção, cujos acontecimentos são o acima descrito estado de resignação, a paz inabalável que o acompanha e a suprema alegria na morte. [tr. Jair Barboza; SMVR1: Livro IV §68]