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Fernandes (SH:305-311) – Problema do Mal

domingo 10 de outubro de 2021, por Cardoso de Castro

  

O leitor se lembrará de que uso as Introduções para explicar o conteúdo de cada parte dos livros que escrevo, e de que leu na Introdução (e também no primeiro Capítulo) antecipações do conteúdo deste que agora lê, desta Seção mesma, e que vou repetir aqui, de maneira resumida, mas destacando algumas teses, como se suas exposições e defesas fossem promessas a cumprir. Primeira: “uma “Ética Descritiva” é uma disciplina factual, científica”. Após a última Seção, eximo-me aqui sequer de ocupar-me deste assunto. O mesmo ocorre tanto com a segunda: “uma “Ética Normativa” é irremediavelmente aporética”, quanto com a terceira: “uma “Metaética”, no sentido contemporâneo, simplesmente foge do assunto”. Por tudo que escrevi até este ponto, deve estar evidente a verdade da quarta: “a problemática da Ética não é verdadeiramente pertinente a uma ontologia do humano”. A fonte da energia que torna possível o filosofar, aconteça o que acontecer com a Filosofia acadêmica (talvez ela também acabe indo para o inferno), jamais deixará de ser a interface do Ser e do Ser Humano, ou seja, da Ontologia e da Antropologia Filosófica. A Epistemologia subordina-se a essas duas disciplinas, não como investigação do que não teríamos, mas deveríamos adquirir e consumir (o conhecimento), mas como investigação da nossa ignorância, ou seja, daquilo de que precisamos nos livrar para usufruir com clareza da sabedoria inata que deriva da compreensão de nossa verdadeira natureza. Mas jamais nos livraremos de nossa ignorância se, ao invés de estarmos atentos ao que é, julgarmos, sobretudo “eticamente”, que deveria ser outra coisa. Pois o dever-ser pressupõe a escassez, a falta, a ignorância, a culpa e a ambição. Só pode ser coisa do Instrumento, não do Ser Humano. O dever-ser é o que não é, e não é o que é. Sua ideia mesma “é, na cultura humana, a marca do desastre, a chaga aberta na Consciência pela inconsciência, o sintoma do desequilíbrio, da desarmonia e do conflito, o lugar hipersensível da dor, do sofrimento [e da culpa], a principal estrutura de sujeição, a rede obscurecedora da atenção, o sulco por onde nossas melhores energias são drenadas, o primeiro de todos os pontos de identificação, o resultado mesmo dessa “condição humana “, o ponto de vista. Trata-se, pois, do próprio inferno” (FC, 25). Na Seção dedicada à organização disciplinar interna da Filosofia em Filosofia e Consciência, eu procurava pelas “ideias fundamentais” da Ética — algo análogo ao que chamo, neste livro de agora, de “intuições fundamentais”, e não encontrava nenhuma que valesse a pena. Sim, a pena, o sofrimento que originavam. Descartada a ética descritiva, encontrava a prudencial, interesseira (“se quiser isto, então faça aquilo” ). Descartada esta última, encontrava a valorativa, que não podia aceitar, pelo que o leitor viu comigo na Seção precedente. Dentre as posições metaéticas, não podendo aceitar nenhuma — utilitarismo, naturalismo, deontologismo, consequencialismo, cognitivismo, não-cognitivismo, etc. —, fui diretamente remetido à interface entre a “Ética” e a Teologia. Após uma rejeição das ideias de “livre-arbítrio”, pecado, culpa, sacrifício, expiação e, em geral, de “nossas” ideias de “Deus” — aquelas que atribuo, neste livro, à Mente, ao Pensamento e à Linguagem —, tive a forte impressão (“intuição fundamental” ?!) de haver encontrado no “intelectualismo” socrático a teoria de que a fonte de todo Mal é a Ignorância, a única ideia que valia a pena perseguir. Mas não vi na época (1994) as implicações ontológicas e epistemológicas corretas dessa teoria. Pensei então erroneamente que, rejeitando todo e qualquer Ser ao Mal, estava obrigado a aceitar a teoria platônica da identificação do Ser ao Bem. Erro tremendo! Neste livro de agora corrijo este erro. (Foi o obscurecimento causado por este erro que me levou à apreciação, não de todo inaceitável, da “ética cristã” em FC (29-32). Mas a isso voltaremos na próxima Seção.) O que há para ser compreendido não é o Bem ou as impossíveis relações entre o “Bem” e o “Ser”, menos ainda essa escolástica que se tornou o debate entre as “posições metaéticas”, mas é realmente aquilo que se chama de “O Mal”, nesta sua misteriosa “falta de ser”. Lembrando ao leitor o que leu na Introdução sobre a necessidade de uma Antropologia Filosófica levar em consideração, não dogmas religiosos, e menos ainda uma “Autoridade Religiosa” mas a “experiência religiosa” ou “vida espiritual”, que julgo ser uma característica universal da humanidade e a principal característica da experiência autenticamente humana, mesmo entre os que se concebem a “si mesmos” como materialistas, irreligiosos, agnósticos ou ateus, e referindo-me, nesse passo, ao coração mesmo de toda e qualquer autêntica “experiência religiosa”, tal como vem sendo descrita pelas nossas principais tradições sagradas — o Vedanta, o Budismo e o Taoísmo, por um lado, e as tradições Judaica, Cristã e Islâmica, por outro —, lembrando tudo isso, comunico-lhe que vou me ocupar aqui da tese principal que adoto agora, oito anos após FC: não é “o Problema do Mal” que é um problema da Ética, mas, ao contrário, é a “Ética” — que jamais deixou de ser uma “racionalização” (no pior sentido possível) do ethos — que é um aspecto do “Problema do Mal”. De agora em diante, é somente desse personagem conceptual, “O Problema do Mal” que nos vamos ocupar.

O leitor lerá a frase que se segue, talvez com horror, mas vou escrevê-la como se fosse um remédio amargo, embora seja, de fato, um bálsamo: o Mal é superficial. Este livro é de Ontologia, é sobre a raiz das coisas. É só apesar disso que há nele uma Seção dedicada às “superficialidades” apavorantes de um pesadelo endêmico. O que vou descrever é a “equivocação instrumental”, ou como é possível a impressão de que a “realidade das coisas”, ou a realidade dos “fatos”, ou “a vida como ela é”, pareça-se com aquilo que as “Éticas” chamam de “Mal”. Já não estamos mais construindo teoria filosófica nem fundamental (Cap. 1), nem em Filosofia da Ciência e Teoria do Conhecimento Científico (Cap. 2), mas colhendo seus frutos, aplicando-as à resolução ou quiçá à dissolução da maior fonte de sofrimento para nossa espécie, que é, não o Mal, mas a incompreensão do Mal. O que teria causado a chamada tripla separação (“A Queda do Homem” ) entre o Ser Humano e Deus, entre os Seres Humanos, e entre o Ser Humano e aquilo que ele pensa que é? O primeiro passo é compreender que o assunto de nossa investigação nesta Seção não é aquilo que nós concebemos como o Mal, pois não o concebemos absolutamente, mas aquilo que o Instrumento chama de “O Mal”. O “problema” é compreender como se pode gerar, no Instrumento um “efeito” tão monumental, e que ao mesmo tempo é simplesmente tudo aquilo — insisto: para o Instrumento! — que “se pareceria” tanto conosco, tudo aquilo que “parece normal”, que “seria aceitável”, tudo aquilo com que se pensa que se está tão... familiarizado! Minha tarefa, neste livro, é quase impossível, justamente porque consiste em constatar a extrema “estranheza” disso tudo que parece tão familiar, o caráter prepóstero desse “arranjo de coisas”, já que, verdadeiramente, nada daquilo que constitui o “Mal” pode ter qualquer efeito sobre o nosso Ser; não esquecer que a possibilidade do equívoco já deve estar de algum modo contida na própria “Estrutura da Experiência” (Cap. 1); compreendê-lo como efeitos da Mente, do Pensamento e da Linguagem; ousar expô-lo à luz do Espírito (“ousar” porque estas são coisas cuja verdadeira natureza o Instrumento foi feito para esconder); e, usando o Instrumento, a Mente, o Pensamento e a Linguagem, apontar para onde está o nosso Ser verdadeiro, que procurei descrever no primeiro Capítulo (releia a epígrafe do livro). Ora, afirmo que a dissolução de toda essa problemática ou problemáticas do Mal, está em um punhado de “intuições fundamentais”. Introduzo-as com um convite ao leitor para que compare pequenas parábolas: no Oriente, àquele que levantou, depois abaixou a espada, o Zen mostrou primeiro a porta do inferno, depois a porta do céu; no entanto, a epifania da Gita, que se dá na suspensão do tempo... passa-se no corpo-campo... de batalha. No Ocidente, séculos depois, o “olho por olho, dente por dente”, da Guerra nas Estrelas do Antigo Testamento   foi substituído, no evangelion, pelo “mostrar a outra face”, “não julgar”, “amar os inimigos”, etc., até culminar no sábio “Ama...”, de Santo Agostinho  . Chegou a hora, portanto, de prestar atenção ao que da teoria que aqui se articulou, no primeiro Capítulo, aqui está sendo aplicado arquitetonicamente, ainda que o desenho do arquiteto não possa ser executado neste Mundo por um engenheiro. Sabemos (ou não sabemos?) que toda defesa é uma forma de ataque e todo ataque um pedido de ajuda? Sabemos (ou não sabemos?) que não se combate o mal com o mal, não porque se devesse combatê-lo com “o bem”, mas certamente porque não se combate o que quer que seja, já que aquilo que “vencemos” na verdade nos assujeita? Quem sabe se com este último pensamento a Mente já completou a montagem de um cenário adequado ao drama, sobre um palco cheio de alçapões, e fica contente, quieta por um instante!? É neste teatro, então, que havemos de recitar o texto?! Suspenda-se a cortina, e que se faça a luz, as palavras e a ação.

O “Problema do Mal”, do qual uma das versões mais especializadas inclui o conceito de “Inferno”, mas que em qualquer versão pressupõe sofrimento (alternância entre prazer e dor), comporta-se em Filosofia como se fosse um personagem conceptual fantasmático e amnésico, às vezes angélico, et pour cause às vezes satânico, que não pertence ao texto original da peça, que abre a temporada do Grande Teatro do Mundo, mas na qual se intromete infalivelmente, por algum equívoco aparentemente inexplicável (não se sabe de quem, talvez da produção), entrando em cena à revelia do diretor e do contra-regra, só contracenando se o ponto lhe sopra a deixa ponto a ponto, não desempenhando na verdade nenhum papel conhecido, embora acabe sempre — dizem... — por confundir a todos, da bilheteria ao frisson que antecede o espetáculo, do palco à plateia, das récitas à crítica, a ponto de se lhe atribuírem todos os aplausos e todas as vaias, além de figurar nos créditos sob qualquer pseudônimo que acaso venha coincidir com o nome do ator principal. Uma vez admitida a existência desse personagem, o espetáculo torna-se imperdível: faz imediatamente os efeitos de participar dos melhores argumentos filosóficos contra a “existência” de Deus; e dos melhores argumentos teológicos contra a inocência de. suas criaturas.

Não haveria alguma coisa errada nisso tudo, seja o conceito de “existência”, que aplicamos na verdade ao que não compreendemos, e chamamos de “bom” ou “mau”, seja a concepção que o Instrumento tem do teísmo, seja seu conceito de “Deus” ou, genericamente, a Axiologia e o conceito de “Valor”, seja o conceito de “livre-arbítrio”, ou ainda, a filosofia da Lógica modal ou, quem sabe, a “semântica de mundos possíveis” ? Seja como for, dentro do contexto da Filosofia e da Ontologia usuais, o problema é geralmente admitido como real, incontornável... e até hoje, às vezes “em princípio”, insolúvel.

O que poderia fazer a respeito a Antropologia Filosófica que venho elaborando e que agora, ainda mais do que antes, vão me obrigar a admitir sem pejo que é “ontoteológica” ? Se ela não puder fazer nada, então não quis dizer coisa alguma!

Havemos, pois, de encenar um espetáculo. Beethoven cantou: “O freunde! Nicht diese tonel” É isso que vamos fazer. E também escreveu na primeira página da partitura da sua Missa Solene: “Voot Hertz, möge es zum hertzengehenl”. É isso também que vamos fazer. O coração, que aqui simboliza o Centro, é aquele Centro que está em toda parte, o daquelas circunferências que não estão em lugar algum. “Afastai de mim este cálice!”, mas... pelo menos, o Ser-enquanto-Ser e o Ser-como-Experiência, o Pai e o Filho, não têm, nesta Antropologia, coisa alguma a ver com o Mal. Não é que eu faça muita questão de ser coerente, mas... somente o Espírito (Espírito do Ser ou Ser-como-Espírito) poderia ter alguma coisa a “ver” com o “problema”, porque somente o Espírito pode o impossível, que é “ver” através do “Mal” (embora este último não consista em coisa alguma), e somente o Espírito pode vê-lo como o nada que ele é, pois o compreende. Ora, ver “através” do Mal é desfazê-lo, de modo que tudo possa ser acolhido pela Experiência. O Espírito é uma Presença capaz de fazer desaparecer o pensamento de que “O Mal” estaria presente. A Presença de Espírito é a Desaparição do Mal, ou seja, dos equívocos cometidos pela Mente, o Pensamento e a Linguagem. A Ausência de Espírito é simplesmente o pensamento falso de que as aparências podem ser tomadas como objeto. E, já que o Espírito se ausenta da Mente sempre que seus pensamentos estão repletos do que ela pensa ser a “nossa” plenitude, o estilo agora é o de filosofar... vazio. Pois a Presença de Espírito é o que está no altar do templo (lugar “separado” ), no coração da floresta das coisas, e no coração da floresta da Experiência.

O instante é eterno. Dentro do instante, parte da estrutura ontológica do instante, a mão do Instrumento tem sempre a seu alcance um momento de tremendo e fascinante abandono, que, no entanto, não significa coisa alguma. Precisamente porque o Mal não tem significado, é melhor também desistir de uma vez por todas de qualquer pretensão de tramar argumentos e ficar contente de uma só vez com uma tessitura meramente “ideacional” (para não confessar abertamente que o estilo tornou-se mais explicitamente que nunca, impressionístico...): a tarefa aqui será a de oferecer à luz do Espírito o que é artefeito, artefeito na escuridão, na escuridão daquilo que nada significa, sobretudo se essa escuridão toma os contornos e imensas proporções do Mundo como objeto não compreendido. Mas, apesar do que se pensa, jamais haverá, no que diz respeito ao “Bem” ou ao Mal”, o que quer que seja que os pensamentos “eu”, “tu”, “ele”, “nós”, “vós”, “eles”, possam fazer. Recado duplo aos budistas e aos ateístas: confiar em “si mesmo” é confiar-“se” a um pensamento de abandono. Só se confia no Criador. Não é possível sequer saber se escrevemos estas coisas ou se elas é que nos leem. Impossível dizer “Consumatum est” pois, por um lado, terminamos sempre, e, por outro, nunca começamos. Cada palavra, linha ou pensamento é sempre o último, mas sempre vem primeiro; ou é sempre o primeiro, mas sempre vem por último. Não há no instante eterno planos de salvação, porque o Filho de Deus é sem pecado e, como somos Filhos de Deus, não há de que precisemos ser salvos. (Mas ouse dizer isto na cara de uma dor excruciante e do pensamento de que ela pertence a alguém!) Todas as Experiências, infinitas e incomparáveis, compreendem, sem discriminação “valorativa”, e num só presente eterno, tudo que é projetado na Existência, seja como bom ou mau, belo ou feio — Mas ouse dizer isto...


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