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Barthes Debate Escrever

terça-feira 22 de março de 2022, por Cardoso de Castro

  

Barthes   - Debate sobre o Ensaio: Escrever, verbo intransitivo?

Georges Poulet: Eu gostaria de expressar o grande prazer que senti em ouvir Roland Barthes e também uma certa sensação de melancolia; pois parece haver entre nós uma espécie de mal-entendido. Lembramos de certa forma pessoas que moram num mesmo edifício, mas em andares diferentes. Pode-se notar essa diferença no uso da palavra linguagem, uma palavra que eu mesmo não gosto de pronunciar — e esta talvez tenha sido a tendência dos pensadores de um período anterior — mas que se tornou recentemente uma palavra de extrema importância. Certo numero de fenômenos negativos correspondentes acompanha a atenção dispensada a esta palavra. O senhor, por exemplo, parece evitar a palavra pensamento, como se ela estivesse rapidamente passando a obscena. Quase todas as vezes em que o senhor empregou a palavra linguagem, eu poderia substituí-la pela palavra pensamento, quase sem incongruência. Penso que se o senhor tentasse fazer o inverso chegaria ao mesmo resultado. Por exemplo, o senhor disse que numa certa perspectiva de ciência, que não é a nossa, há uma objetividade do dado. Penso que uma opinião era a de que há coisas muito mais interessantes do que a objetividade do dado, a saber, a objetividade do doador, isto é, a objetividade da linguagem. E esta parece ser exatamente a minha posição em relação ao pensamento. Onde o senhor, seguindo Saussure, fala num significante relacionado com o significado e num significante de que se poderia falar mesmo sem falar em significado, poderia falar igualmente num continente sem conteúdo ou com todos os conteúdos. Eu diria que também poderia existir um pensamento com todos os pensamentos. Portanto, parece-me que às vezes estamos muito próximos e ainda assim separa-nos um abismo, um abismo sobre o qual poderíamos saltar, se quiséssemos.

Roland Barthes: O que o senhor disse me sensibiliza muito, mas não posso replicar porque, como disse o senhor, existe uma separação e, se posso falar assim, o que nos separa é exatamente a linguagem. Dito isto, vejo que suas observações sugerem muitas digressões, sobretudo o fato de que talvez todos nós revelemos mais através das palavras que evitamos do que através das que empregamos. Em literatura seria interessante fazer uma análise estatística das palavras evitadas por um autor. Mas, se não emprego a palavra pensamento, não é por achá-la obscena; pelo contrário, é porque ela não é suficientemente obscena. Para mim, a linguagem é obscena e é por isso que sempre volto a ela.

Jan Kott: Durante o jantar o sr. Donato disse: "Les avocats sont durs". (Os advogados são duros.) Este enunciado dirigia-se a mim, uma mensagem dirigida ao receptor. Esta sentença tem algo de poético. Penso que foi um enunciado que se tornou enunciação e uma mensagem que, nos termos de Jakobson, "dirige-se à estruturação da mensagem". É um exemplo da "duplicidade" de que Barthes falou.

Outro exemplo desta duplicidade seria esta frase dos surrealistas, que guardo desde os tempos da juventude: "Os elefantes são contagiosos." (Les élêphantes sont contagieux) (Les oreillons sont contagieux?) Mas a característica de nosso tempo é a literatura ter-se transformado deliberadamente, conscientemente, na crítica da linguagem. Isto é óbvio na poesia e talvez também no caso do teatro. Interessou-me particularmente o problema da dissimetria na linguagem: o je (eu) que é sempre novo, mas sempre o mesmo para o receptor. Poderíamos dizer que a grande ruptura entre o teatro de Tchecov e o teatro anterior a ele baseia-se neste fenômeno. Em Tchecov há um novo je, que é o tu dos outros personagens. Para dar outro exemplo, lembra-me uma conversa telefônica com Ionesco, uma tarde em Spoleto. Disse ele: "Venha à minha casa". Eu disse: "Não, venha você aqui à minha casa". Disse ele: "Não, aqui é aqui e não aí. Eu estou aqui e você está aí." "Não", disse eu, "eu estou aqui e você está aí". Esta conversa é muito típica das peças de Ionesco. Embora seja impossível dizer "je suis mort" (Eu estou morto), posso muito bem imaginar uma peça de Ionesco terminando com o passé composé: "J’ai mort" (Eu morri).

Jean Hyppolite: Concordo com o senhor quase demais paia fazer um aparte, porém, em vista do título de seu artigo, pergunto-me se o pacte de la parole, "o pacto da fala", que o senhor mencionou no fim da exposição, se mantém na escrita. Ou se, quando se escreve, a interlocução não sofre uma espécie de transformação, de sorte que a escrita se torna um fantasma da interlocução? Citando mais uma vez o exemplo de Proust   em Contre Sainte-Beuve, como é que Proust consegue escrever? Dirigindo-se ao fantasma de sua mãe numa interlocução que altera profundamente o pacte de la parole, transformando-a numa espécie de mímica do pacte de la parole na escrita. Qual a transformação sofrida pelo pacte de la parole numa criação como a escrita que, paradoxalmente, é capaz de se unir com uma espécie de monólogo, curiosamente vedado à interlocução real? Esta é minha pergunta — o aspecto que o senhor simplesmente mencionou ao nos trazer de volta ao pacte de la parole.

Em La Jalousie há interlocução ou há fantasma, na mudança do passado e de seres em relação à interlocução? O pacte de la parole se mantém, ou o que temos é uma imitação desse pacte de la parole) Tomei La Jalousie como exemplo propositalmente, pois é uma obra que questiona a poética do romance.

Barthes: Portanto, uma análise homológica da pessoa ao nível dos signos do discurso em La Jalousie — eu realmente não posso prejulgar a resposta. Lembra-me que o senhor tem La Jalousie num conceito muito elevado e eu partilho dessa opinião. Seria um magnífico assunto para um doutorado de "troisième cicle" pedir a alguém para investigar o que acontece com os signos próprios das indicações de pessoa no nível do discurso. Estamos começando a nos preocupar com estes problemas no nível da estória e da análise da estória e a procurar os signos discursivos daquele a quem a estória se dirige; pois mesmo numa estória em monólogo há sempre signos específicos do tu, do destinatário. Penso que o senhor indicou a área de um problema muito importante: a relação entre a estória, ou fantasma, e a interlocução.

Lucien Goldmann: Como sociólogo, acredito que é importante observar a situação e o movimento de uma ideia de uma posição exterior. Nos últimos seis dias, durante os seminários que precederam este colóquio, muitos pensadores importantes falaram aqui sobre uma ruptura radical dentro da cultura francesa. Isto ficou muito claro para mim na palestra em que Morazé comparou duas peças: Château en Suède, de Sagan e Sequestres d’Aliona, de Sartre  . As duas peças têm os mesmos fatores, a mesma problemática: o fato de que a história desapareceu. Contudo, enquanto este fato se constitui em tragédia na peça de Sartre, a peça de Sagan afirma que isso não tem importância e que se pode muito bem viver sem história. O sr. Hyppolite mencionou que é muito difícil encontrar uma linha sem solução de continuidade entre o pensamento francês de 1945-50 e a vida intelectual de hoje: há um ponto de ruptura entre o existencialismo e o estruturalismo. Para Sartre, a questão essencial era concordar com a história e, partindo do cogito do ego individual, era muito difícil recolocar a história no centro das coisas. Contudo, para a postura intelectual atual, a história não importa; o essencial é evitar a história ou a historicidade. As perspectivas são muito diferentes. Barthes também falou muito claramente sobre um ponto de ruptura. Ele se diferencia de Todorov por enfatizar a modernidade da situação atual, e não a perspectiva científica. Eu poderia mencionar ainda Althusser que, em seus dois livros, Pour Marx   e Lire le Capital, conseguiu eliminar a história do pensamento marxista. Obviamente, temos aqui uma mutação e eu diria que isto explica a intervenção do Sr. Poulet e a resposta de Barthes. Poulet se identifica mais com Barthes do que com Todorov, porque tanto Barthes quanto Poulet estão conscientes do caráter não-científico de suas posições. Isto tudo equivale a dizer que estamos diante de um fenômeno ideológico muito importante.

Para abordar esse fenômeno a partir de seu próprio interior, poderíamos perguntar: "O que mudou? Por que a linguagem é o elemento comum desta nova corrente de pensamento a-histórico? Por que se deu prioridade ao estudo da linguagem? Minha hipótese é a de que isto se deve ao fato de que a linguagem muda mais lentamente do que estruturas de conteúdo e estruturas literárias. O problema era eliminar o pensamento e o conteúdo, de modo que só restassem a linguagem e o sujeito falante. Todorov vê a linguagem como o elemento ativo da história. Eu gostaria de ir ainda mais alem. Concordo que o eu que fala e o eu que escreve não são homólogos. E, como observou barthes, podemos distinguir os dois tipos de estruturalismo com base nos métodos empregados: há os que empregam o método diacrônico e há os que empregam o método genético. Nós, sociólogos e historiadores, vimos dizendo isso há muito tempo, mas dizemos também que existe ainda um eu que se torna, que se transforma, ao passo que na exposição de Barthes isto não se coloca. Admito também que o homem não preexiste à linguagem. Mas sua conclusão de que o homem deve ser definido em termos de linguagem me parece questionável. O homem como um todo se identifica com a linguagem. E certo que o homem fala, mas ele faz também outras coisas, que não podem ser reduzidas à linguagem, embora envolvam, é claro, a linguagem — comer, por exemplo. Na minha opinião, o interessante a respeito desta perspectiva científica é ver o que ela tem de ideológico. O sociólogo precisa analisar esta corrente de pensamento, que procura eliminar o sujeito psicológico e sociológico, para ver se não se constitui em caminho para que o sujeito coletivo conceba o status do homem em termos de uma certa ideologia.

Tzvetan Todorov: Eu gostaria de responder a apenas duas das muitas observações do sr. Goldmann. A primeira diz respeito à definição do homem pela linguagem, ou da linguagem pelo homem. É claro que o homem não faz só falar, mas é a única criatura que fala, enquanto há muitas outras que comem. A segunda diz respeito à afirmação de que a linguagem muda mais lentamente do que a literatura. Se o senhor diz isto é porque está reduzindo a linguagem a vocabulário e sintaxe, mas além disso existe o discurso. Há uma tipologia do discurso que ainda está por ser elaborada, mas que existe e que poderia explicar a mudança no discurso, que é tão grande quanto a mudança na literatura, pois literatura é apenas um tipo de discurso.

Richard Macksey: Talvez isto só interesse aos nossos amigos franceses, mas acho que o senhor distorceu o pensamento de Althusser sobre História. Althusser nunca eliminou a História; pelo contrário, ele está tentando repensá-la dentro de uma epistemologia coerente. Dir-se-ia que ele está tentando resgatar Marx do monismo dialético de Hegel, do sujeito absoluto como único princípio genético. Se em lugar do sujeito absoluto, totalidade genética indivisível, se coloca uma estrutura concreta preexistente, evitam-se os problemas do essencialismo de Hegel, mas sem dúvida se cria um tipo diferente de desenvolvimento entre conjuntos. E isto se tem reconhecido como causa de rupturas no processo histórico.

Goldmann: Para ser mais exato em relação a Althusser, devo dizer que ele mesmo diz em seus livros que o problema da mudança é dos mais difíceis. O problema da História é o problema da transformação e da mudança. Segundo ele, este problema é tratado por Balibar num trabalho em colaboração. Balibar tem, nesses três extensos volumes, três páginas que contam como a máquina tomou o lugar do "fazer à mão", mas não como surgiu a máquina. Quando o interpelei a respeito desse problema, Althusser disse que se trata de um problema que talvez um dia venha a ser resolvido pela pesquisa. Ele recusou-se absolutamente a dizer que o homem se define pelas relações de produção, elemento histórico fundamental do pensamento dialético. Obviamente, há aqui análise do fato e eliminação do tornar-se; não há mais classes — nestes três volumes, nenhum elemento do tornar-se fica claro, a não ser o fato de que é um problema difícil.

Barthes: Eu gostaria de lembrar que, entre os livros importantes mais recentes, o problema da História muitas vezes é colocado em novos termos. No livro de Foucault   a respeito da loucura não falta a dimensão histórica, embora a sua seja uma nova dimensão histórica. Creio que não podemos ignorar o que se está elaborando agora e em muitos modos diferentes. Não podemos dizer que a partir de agora a História fica de lado. Penso que se está no processo de criar novas definições do processo histórico.

Paul de Man: Eu gostaria de falar um pouco sobre o tratamento que Roland Barthes dá à História. Vejo que o senhor (como também o sr. Donato) tem um mito histórico otimista, que se liga ao abandono da última forma ativa conhecida da filosofia tradicional, a fenomenologia, e à substituição da fenomenologia pela psicanálise, etc. Isso representa um progresso histórico e possibilidades extremamente otimistas para a história do pensamento. Contudo, o senhor precisa demonstrar que os resultados obtidos na análise estilística que o senhor faz são superiores aos de seus predecessores, graças a essa mudança otimista vinculada à uma certa renovação histórica. Devo admitir que fiquei um pouco desapontado com as análises específicas que o senhor nos ofereceu. Não creio que elas apresentem qualquer progresso em relação às dos formalistas, russos ou americanos, que empregavam métodos empíricos, ainda que não recorressem nem ao vocabulário, nem ao arcabouço conceptual que o senhor emprega. É, porém, mais grave que, ao se referir a fatos da história literária, o senhor diga coisas que são falsas dentro de um mito tipicamente francês. Vejo no seu trabalho uma concepção falsa do classicismo e do romantismo  . Ao tratar, por exemplo, da questão do narrador ou do "ego duplo", o senhor fala da literatura a partir de Mallarmé e do "nouveau roman", etc. e os opõe ao que se passa no romance, na estória ou na autobiografia românticos — o senhor está simplesmente equivocado. Na autobiografia romântica ou, bem antes dela, na estória do século XVII, existe esta mesma complicação do ego, tratada não inconscientemente, mas explícita e tematicamente, de modo muito mais complexo do que no romance contemporâneo. Não quero levar adiante este desenvolvimento, mas simplesmente indicar que o senhor distorce a história, porque precisa de um mito histórico do progresso para justificar um método que ainda não consegue se justificar por seus resultados. é mais na noção de temporalidade do que na de história que o vejo submeter a consciência a uma reificação, vinculada a esse mesmo otimismo que me parece perturbador.

Barthes: é difícil replicar, uma vez que o senhor questiona exatamente minha relação com o que digo. Mas, ousadamente, e arriscando-me a novos golpes de sua parte, direi que nunca consegui definir a história literária independentemente daquilo que lhe foi acrescentado pelo tempo. Em outras palavras, sempre lhe dei uma dimensão mítica. Para mim, o romantismo inclui tudo o que se disse a respeito do romantismo. Consequentemente, o passado atua como uma espécie de psicanálise. Para mim, o passado histórico é uma espécie de substância pegajosa, da qual sinto uma vergonha inautêntica e da qual tento me desligar vivendo meu presente como um combate ou uma violência contra este tempo mítico imediatamente anterior a mim. Quando vejo algo que poderia ter ocorrido há cinquenta anos, isto já tem para mim uma dimensão mítica. Contudo, ao dizer-lhe isto, não estou me desculpando de nada; só estou explicando, e isto não basta.

Piero Puca: Como filólogo clássico, fico muito feliz em ver que a Retórica volta a ocupar uma posição importante na literatura moderna, e em ouvir falar deste retorno e justificá-lo por um discurso sobre a Retórica no mundo clássico. Finalmente, espero que se possa ver que o mundo clássico tinha a Retórica como matéria essencial na escola secundária e produziu não só professores, mas também Platão, Longino e Santo Agostinho   — e que Aristóteles   escreveu não só uma Poética, mas também uma Retórica. O que ouvimos esta tarde foi muito interessante, e estes estudos parecem-me importantes. Vejo também que a Retórica moderna está muito mais sofisticada do que a antiga. Quero ainda lembrar que os antigos não só viram a Retórica em imagens, em figuras, mas também entenderam que a poesia poderia ser insanidade e loucura — que é também uma forma de criação. Aristóteles, ao considerar a poesia e a arte, a tragédia, por exemplo, não se limitou às categorias retóricas. É isto o que me parece deva ser acrescentado.

Barthes: Agradeço-lhe muito pela extensão do problema. Sempre concebi a Retórica de modo amplo, incluindo todas as reflexões sobre todas as formas de obras, sobre as técnicas gerais de formas de obras, não apenas no sentido restrito de figuras retóricas. Sabemos muito bem que a Poética de Aristóteles é também um estudo formal, no sentido mais profundo, de todas as obras "miméticas". E é obviamente nessa perspectiva que devemos pensar hoje as obras literárias.

Vernant  : Eu gostaria de questionar Barthes a respeito do problema da voz média. Se bem o entendi, ele estava-se referindo a um artigo que Benveniste publicou numa revista de Psicologia e no qual mostrava que a oposição fundamental original é entre a voz ativa e a média, não entre a ativa e a passiva — a voz média designando o tipo de ação em que o agente continua envolvido na ação realizada. Para Barthes, isto dá um modelo para o status atual da atividade literária. Eu perguntaria, então, se foi acidental o desaparecimento da voz média na evolução do indo-europeu. Já no grego antigo, a oposição não se colocava entre as vozes ativa e média, mas entre as ativa e passiva, de modo que a voz média se tornou uma espécie de vestígio cuja análise se constituía em problemas para os linguistas. Se examinarmos uma versão mais completa do estudo de Benveniste, intitulada Noms d’agent et noms d’action en indo-européen, veremos dois casos: num a ação é atribuída ao agente, à maneira de um atributo de sujeito, e em outro a ação envolve o sujeito e o sujeito fica inverso na ação; este é o caso da voz média. A conclusão psicológica — a que Benveniste não chegou, pois não é psicólogo — é que o pensamento, tal como expressado em grego ou em indo-europeu, não tem a ideia de agente como fonte da ação. Ou, se me permitem traduzir isso como historiador da civilização grega, não há na Grécia a categoria de vontade. Mas o que verificamos no mundo ocidental, através da linguagem, da evolução das leis, da criação de um vocabulário da vontade, é precisamente a ideia de sujeito como agente, fonte das ações, criando-as, assumindo-as e sendo responsável por elas. Portanto, Barthes, a pergunta que lhe faço é a seguinte: Estaremos vendo, no domínio literário, uma completa inversão desta evolução e, na sua opinião, veremos, ao nível literário, o reaparecimento da voz média no domínio linguístico? Se não, estamos no nível puramente metafórico, e não no nível da realidade, em relação ao fato de que a obra literária é já um signo que anuncia uma mudança no status psicológico do escritor em seu relacionamento com a obra.

Barthes: Acredito que uma das tarefas da literatura militante é tentar — muitas vezes por métodos extremamente violentos e difíceis — compensar o desaparecimento de categorias linguísticas, que ocorre no curso da história.

Procura-se repensar a categoria perdida e tomá-la como modelo metafórico — entendo a ambiguidade de minha posição, mas a mantenho — resgatando-a ao elevá-la ao nível do discurso. Pois o escritor não pode agir diretamente sobre as formas da língua. Ele não pode inventar novos tempos verbais. Ele já tem problemas bastantes com a invenção de novas palavras: recriminam-lhe cada palavra que inventa. Porém, ao ultrapassar a sentença ou o discurso, ele encontra certa liberdade para resistir e violar. É tudo o que posso dizer por agora, mas acho a pergunta muito oportuna e bem colocada.

Richard Schechner: O teatro foi absorvido pela Igreja na Idade Média e em alguma época da Renascença emancipou-se ou foi expelido da Igreja, sendo então incorporado pela literatura; penso que nestes últimos dias está sendo expelido da literatura. Isto pode ser vantajoso tanto para a literatura quanto para o teatro, mas venho falar aqui por que acredito sinceramente que os estruturalistas têm a oferecer à crítica teatral o mesmo que têm a oferecer à literatura, de modo diferente. Quero levantar alguns problemas gerais, pois me parece que se descreve a linguagem e a literatura como implosivas, ou seja, voltadas as suas próprias leis e explicadas por suas próprias leis, ao passo que, pelo menos no teatro, a linguagem é explosiva: a linguagem é uma matriz da ação. Isto não faz sentido no teatro, a menos que a linguagem dê origem à ação, que é o desempenho. Ao ler um texto de teatro pode-se situá-lo em duas matrizes de ação: a matriz da ação que dá origem às palavras e a matriz da ação que se origina nas palavras. Não se lê um texto teatral como pura literatura, mas sim em relação à ação que lhe deu origem e em relação à ação na qual deve ser apresentada, se é que deve ser visto pelo público. Penso que isto se mantém historicamente, pois nenhuma peça que não seja continuamente representada permanece na consciência, nem mesmo na dos críticos literários. Eles se referem constantemente a peças que estão sendo apresentadas. Nos Estados Unidos, por exemplo, não escrevemos muito a respeito de Racine; na França, os senhores o fazem; simplesmente porque Racine é encenado na França e não nos Estados Unidos. Portanto, no teatro, há uma separação entre o texto e o gesto e uma relação entre o texto e o gesto, de modo que é impossível considerar um sem o outro. Acho que os senhores não me ajudaram, nestas discussões, a entender melhor esta relação, porque estão tentando provar que não há gesto: os senhores tendem a ignorar completamente a palavra falada. Vejo os srs. Goldmann, Barthes, Todorov, Poulet e outros discutindo aqui, e há alguma coisa presente que eu nunca encontraria numa página impressa.

O que quero perguntar é se o senhor considera a realização do texto, a representação do texto, apenas um adjunto circunstancial do produto literário ou uma parte integrante do projeto literário? Se o senhor o considera circunstancial, então tomamos caminhos diferentes. Mas se o senhor o considera parte integrante, deve então explicar-me sua visão tanto do gesto quanto da linguagem; o senhor precisa me explicar a relação existente entre estas leis linguísticas e este mundo gestual.

Barthes: Posso dar-lhe uma resposta preliminar, banal, de "bom senso semiológico", que é a seguinte: os gestos humanos constituem um sistema semiótico e, consequentemente, encontraremos — se nos ocuparmos deste problema — no nível dos gestos, mais ou menos os mesmos problemas colocados por qualquer sistema de signos. Mas se eu mesmo não me sinto muito inclinado a desenvolver este problema por ora, é porque o sistema gestual, em nosso teatro burguês, continua sendo inteiramente naturalista. Se fôssemos tratar de um teatro (como viu Brecht  ) do tipo do teatro chinês ou japonês, onde os gestos são desnaturalizados em benefício de um código muito forte, poderíamos topar com problemas interessantes. Mas, para ser franco, acho difícil ter interesse intelectual no cinema, por exemplo. Precisamente porque o cinema é uma arte nascida num período dominado por uma estética e uma ideologia geral do tipo naturalista. O cinema ainda não experimentou uma arte codificada. Este é, simplesmente, o problema de todo um código, de um código inteiramente constituído.

Schechner: E que diria o senhor a respeito de Molière?

Barthes: Não sabemos exatamente como se representava Molière. Eu não reajo muito favoravelmente a Molière, porque percebo em Molière todos os mitos da dramaturgia burguesa moderna.

Schechner: Na verdade, minha pergunta era metodológica. Supondo que o teatro não fosse naturalista, como sua metodologia, sua abordagem da Linguística, da linguagem e da literatura, se aplicaria proveitosamente ao teatro, sem considerá-lo como montagem e como um meio inteiramente literário? Dado que a peça teatral precisa ser montada para se constituir em objeto estético, como se aplica a ela sua metodologia, ou o senhor, como suponho, está separando o teatro da literatura, tal como eram separados antes da Renascença?

Barthes: Repito: uma vez que se trata de um sistema semiótico como outro qualquer, os instrumentos e os conceitos de abordagem e análise da Semiologia devem, em geral, aplicar-se a ele.

Schechner: Mas em Semiologia os senhores contam com uma linguagem cuja compreensão lhes foi dada pelos trabalhos de Saussure e de outros linguistas. Onde está a mesma compreensão de uma "linguagem gestual" ?

Barthes: Se o senhor quiser ser o Saussure do teatro, será maravilhoso.

Macksey: Enquanto aguardamos que o sr. Schechner cumpra sua incumbência, quero acrescentar que o senhor, sr. Barthes, já deu, com Christian Metz, uma contribuição à Semiótica daquela arte espúria de que o senhor suspeita, o cinema. Quando o senhor falou sobre a "Rhétorique de l’image", em Communications, lembrou-me nosso Peirce   com os signos indexais e o modo em que ele fala da fotografia como um "quase-predicado" composto pelo "quase-sujeito", a luz.

Derrida  : Acho, também, com Barthes, que a literatura de hoje é uma tentativa, não de voltar realmente a uma experiência passada sob o nome de voz média, mas de pensar a aventura (voluntária, se assim o preferem) que foi a história ocidental, a história da Metafísica. Não pode ser uma recriação de fato, mas um esforço para pensar a História, e penso que a História nunca foi tão considerada nessa experiência. Concordo com muito do que ouvimos nesta tarde, e não falaria se o que se disse a respeito de "je suis mort" não me lembrasse a extraordinária estória de Poe sobre o sr. Valdemar, que num dado momento acorda e diz: "Estou morto". Perguntei-me então se, por trás de minha concordância, não havia algo que eu gostaria de formular, talvez uma pergunta ou uma divergência. Vou começar ainda pela diferença que, seguindo Benveniste, o senhor estabeleceu entre o tempo discursivo e o tempo histórico. Essa distinção é inquestionável no sistema em que Benveniste a coloca. Mas quando procuro o presente do tempo discursivo, não o encontro. Vejo que este presente não está no tempo da enunciação, mas num movimento de temporalização que coloca a diferença e, consequentemente, torna o presente algo complicado, o produto de uma síntese original, que também significa que o presente não pode se produzir a não ser no movimento que o retém e o apaga. Consequentemente, se não há presente puro, enquanto tempo da enunciação pura, então a distinção entre o tempo histórico e o tempo discursivo talvez se torne frágil. O tempo histórico já está implícito no tempo discursivo da enunciação.

Como é que isto nos leva a "Estou morto"? Em relação a pessoa, o senhor disse que, quando emprego je no discurso, ele é sempre novo (inédit) para mim, mas não para o leitor ou para o ouvinte: daí a dissimetria irredutível da linguagem. Contudo, pergunto-me se este je não se repete sempre, para ser linguagem, e se, consequentemente, quando pronuncio a palavra je, não estou ligando com a singularidade absolutamente original. Eu estou sempre ausente de minha linguagem, ou ausente desta suposta experiência do novo, da singularidade, etc. Isto significaria que, para que minha emissão da palavra je seja um ato de linguagem, o je deve ser uma palavra-sinal, ou seja, deve ser repetida originalmente. Se ele não fosse constituído pela possibilidade de repetição, não funcionaria como um ato de linguagem. Se a repetição é original, isto quer dizer que não estou diante do novo (l’inédit) na linguagem. O senhor mostrou-se reticente em relação a dizer "Estou morto". Creio que a condição para um verdadeiro ato da linguagem é minha possibilidade de dizer "Estou morto". Husserl   distinguiu dois tipos de falta de sentido na linguagem. Quando digo "a minhoca está de", é óbvio que esta sentença não faz sentido, porque não está de acordo com aquilo que Husserl chamou de regras da gramática lógica pura. Husserl diria que isto não é linguagem. Mas quando digo "o círculo é quadrado", minha sentença respeita as regras da gramaticalidade e, se é um contra-senso, pelo menos não é um nonsense. A prova é que eu posso dizer que a sentença é falsa, que tal objeto não existe. As regras da gramaticalidade pura foram observadas e, portanto, minha linguagem significa, apesar da falta de objeto. Isto quer dizer que o poder do significado da linguagem independe, até certo ponto, da possibilidade de seu objeto. "Estou morto" tem um sentido, ainda que seja obviamente falso. "Estou morto" é uma sentença inteligível. Portanto, "estou morto" é não só uma proposição possível para alguém que se saiba estar vivo, mas a própria condição necessária para que a pessoa viva fale é sua possibilidade de dizer, significando "Estou morto". Consequentemente, a certeza que o senhor conferiu à "dissimetria da linguagem", a qual se liga ao "pacte de la parole", onde a escrita, que só pode funcionar na abertura de "estou morto", ficaria um pouco apagada ou seria mantida à distância. Pergunto-me se tudo o que o senhor disse à respeito de escrever — com que, aliás, concordo inteiramente — não implica que o pacte de la parole não é um pacte de la parole vivo, como disse o sr. Hyppolite, opondo-o ao fantasma. Fico a pensar se é possível distinguir o pacte de la parole do fantasma, se as coisas são realmente tão claras quanto pareciam há pouco, após a intervenção do sr. Hyppolite.