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Kolakowski (1981) – amor

quarta-feira 27 de março de 2024, por Cardoso de Castro

  

4) “... major autem harum est caritas”. Ao contrário das duas virtudes de que falamos, a caridade não dá lugar a equívoco; com efeito, a palavra caridade não conhece [45] nenhum uso que aponte a um estado de convicção. Não obstante, ela apresenta certa analogia com a divisão na distinção entre o amor (ou caridade), que é um esforço pela posse concreta, e aquele que dá nascimento à intuição de uma unidade livre que se consuma na entrega. Falamos desta última. Como nas outras duas virtudes, o sentido mítico do amor está determinado em duas direções: no amor está implícita uma intenção referida à realidade constituída miticamente; e inversamente: toda energia dirigida ao mundo mítico carrega um impulso erótico.

A partir deste ponto de vista importam as seguintes qualidades do Eros: o caráter total do desejo, a experiência da originalidade, a infalibilidade, a ausência de pretensões e exigências, a tentativa de suspender o tempo, a precedência do todo com respeito às partes.

Quanto ao primeiro ponto: o amor é o desejo da total superação da distância com relação ao amado, o desejo de uma união total. Contém então a experiência da separação insuportável, a esperança de eliminar essa separação e a necessidade de sacrificar-se até o aniquilamento. Esta experiência, esta esperança e esta necessidade só podem referir-se ao âmbito mítico; com efeito, o centro que atrai a vontade de amar, seja qual for, está sempre acima de sua localização empírica: Deus, para o místico que quer identificar-se com a fonte do ser; a ideia de humanidade, para quem aspire realizá-la na história: a outra pessoa, para os olhos cegos de amor; a verdade, para o espírito incansável que deseja a certeza. A comunicação, que, por assim dizer, elimina a diferença entre recipiens e receptum, entre o amante e o amado, cumpre-se apenas no horizonte último do mito, onde a realidade para a qual se faz o sacrifício que consumará a união aparece como realidade incondicionada, insuperável, definitiva, que não se deixa determinar por nada que não seja ela própria. A energia auto-agressiva e letal do amor provém de que a culminação que impõe a seu movimento procura a experiência do absoluto.

Quanto ao segundo ponto: o amor contém a experiência eufórica da originalidade, a experiência de “no princípio era o ser”; confunde-se, numa totalidade indivisível, com a experiência de uma separação que pode ser remediada. Enquanto dura, o amor tem de ser uma esperança em movimento, renovada continuamente; nunca o sentimento da satisfação. Nisso consiste a incoerência das representações do Paraíso nas mitologias religiosas: o Paraíso seria, ao mesmo tempo, a experiência da satisfação completa e do amor insaciável: a quadratura do círculo. Bernardo de Clairveaux foi, creio, (não me lembro bem), quem disse que no Céu só existe começo, eterno começo, eterna primavera. Nesta representação, a mundo celestial seria o Paraíso do amor, mas não o da satisfação. Ambas as ideias são excludentes e representam uma alternativa.

A experiência da inicialidade — que o movimento do amor implica — está dada também como vislumbre da realização absoluta; aponta, portanto, a uma situação determinada miticamente.

Quanto ao terceiro ponto: no amor, particularmente naquele em que é concebível a correspondência (impensável no amor intelectual a Deus, de Spinoza  , assim como no amor à humanidade), dá-se certo tipo de infalibilidade ou também de certeza não intelectual que supera o acessível à legitimação racional. Aquilo que sabemos no amor não o sabemos graças a uma observação que possuiria valor descritivo, mas sim graças àquela intuição que brota somente no intercâmbio pessoal; ao contrário: também aquilo que sabemos graças a esta intuição o sabemos com segurança. Por isso nos vínculos amorosos entre os homens “crer no amor de alguém” equivale quase ao amor recíproco. Por isso as palavras “não me amas mais”, ditas com convicção, são sempre verdadeiras. O erro com respeito a uma questão factual não é, no amor, mais que auto-ilusão, má fé; o erro é portanto imperdoável, ou pelo menos injustificável. A infalibilidade da empatia no encontro amoroso é uma qualidade contida em todo contato de duas existências, ou seja, de duas realidades absolutas, inexplicáveis, presentes no âmbito do mito.

Quanto ao quarto ponto: a confiança que cria o movimento amoroso não está ligada ao cálculo, à pretensão, ao dever. No amor mútuo ninguém está obrigado a nada, ninguém está autorizado a nada. A correspondência é um dom da graça, e a graça não se pode ganhar nem exigir: ela é recebida gratuitamente e pode ser perdida por nada. Também por esta qualidade o vínculo amoroso supera qualquer comunicação concreta; e o faz porque não é uma relação entre indivíduos empíricos, mas sim um encontro, no esforço do intercâmbio mútuo, entre realidades indefectíveis e incondicionadas.

Quanto ao quinto ponto: o amor é a espera de uma realização que está ausente no tempo. As realidades míticas se destacam pelo fato de que, segundo a interpretação detalhada de Mircea Eliade  , o que ocorre com elas escapa à influência real do tempo histórico; não é algo que tenha sucedido no momento marcado em nosso calendário, mas sim algo que sobrevém sempre pristinamente nesta genuína autenticidade. As doutrinas religiosas positivas tentam compreender a detenção do tempo nas realidades míticas; fazem-no, por um lado, quando falam da eterna presença pessoal de seus profetas e, por outro lado, quando outorgam a seus ritos um sentido no qual estes não são uma memória feita culto nem a figuração de algo original, uma cópia ou uma lembrança do acontecimento mítico, mas sua repetição real (a presença de Cristo e o dogma da transubstanciação na mitologia cristã). Em consequência, essa realização, cuja espera é o amor, seria uma anulação do tempo real, uma comunicação que carece da presença da lembrança e de perspectiva; nela produz-se a absorção total pelo presente, a exclusão do passado, a despreocupação definitiva com respeito ao futuro, a falta de escrúpulos, de arrependimento, de espera e de temor; em uma palavra, a falta de todos os afetos que, dentro do tempo, estão dirigidos para diante ou para trás: a eliminação do vetor temporal da vivência do mundo. Nas descrições da experiência mística, este movimento está presente continuamente, junto com certo nihilismo que a unio mystica engendra com relação a qualquer obrigação ligada com o ser no mundo (observável principalmente nos quietistas). Sem dúvida, no amor corporal e terreno reencontramos, [47] por assim dizer, uma cópia dessa exclusão do tempo; a total identificação com o presente vivido, a total submersão no que é precisamente agora, a ausência vivencial do passado e do esperado. O tempo do amor realizado parece elevar-se sobre a corrente do tempo real, que em cada instante se define pela lembrança e a previsão, ou seja, por qualidades vivenciais mediadas pela realidade; na realização do amor, por outro lado, desaparece toda mediação. Essa saída do tempo foi chamada pelos místicos “realização da eternidade no tempo”; como possibilidade, está presente em todo amor. Não é um acontecimento que pertença ao âmbito da experiência admitida legitimamente na descrição do mundo; nesta, com efeito, o tempo é homogêneo ou está organizado como homogêneo.

Mesmo em uma certa desconsideração com respeito ao resto do mundo ou na crueldade que a paixão amorosa frequentemente leva em si descobrimos os traços da submersão que exclui a tudo, daquele caráter último, não mediado, que define nosso vínculo com a realidade mítica.

Quanto ao sexto ponto: o enaltecimento no amor compreende tudo no enaltecido. Portanto, não passa das partes ao todo, mas transporta a perfeição do todo a cada parte separada. Na paixão teopática, assim como na paixão corporal, redescobrimos essa estrutura. Se a divinidade é o lugar da adoração, então deve ser enaltecido tudo o que provém dela; as teodiceias são tentativas falidas de racionalizar este desejo de encontrar uma expressão para o caráter inevitavelmente total no amor; não obstante, como racionalizações, revelam má fé porque tentam justificar a divindade e, mas ainda, perdoam-lhes as debilidades e as culpas, enquanto que o amor não experimenta a necessidade do perdão. Igualmente, o homem amado só pode ser amado totalmente; não é amado pelo fato de que esteja em alguma parte, mas, porque é amado, ama-se tudo o que se refere a ele, tudo o que faz que ele seja em cada caso como é, sempre perfeito.

Tampouco o enaltecimento que aceita tudo de antemão relaciona-se as qualidades empíricas, mas sim ao que o mito realiza mediante sua presença.

Em consequência, tanto no desejo como na satisfação do desejo o amor se revela como um movimento referido ao valor mítico.


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