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Schopenhauer (MVR1): vontade livre

quinta-feira 25 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

  

A faculdade de razão comum a todos os indivíduos e que lhes permite conhecer não somente o particular, como no caso dos animais, mas também o todo abstratamente e em sua conexão, ensinou-lhes logo a reconhecer a fonte daquele sofrimento e a pensar no meio de diminuí-la ou, onde possível, suprimi-la através de um sacrifício comum, compensado todavia pela vantagem comum daí resultante. De fato, por mais agradável que seja ao egoísmo do indivíduo praticar a injustiça em casos específicos, há todavia um correlato necessário no sofrer a injustiça por aquele outro, que foi objeto passivo de grande dor. Ora, na medida em que a razão, ao sobrevoar o todo em pensamento, abandona o ponto de vista unilateral do indivíduo, ao qual pertence, e despoja-se por momentos de um apego a ele, nota que o gozo da prática da injustiça num indivíduo é sempre superado pela dor relativamente maior ao sofrer a injustiça de outrem e assim descobre que, como tudo foi aqui deixado ao acaso, cada um teria a temer que o seu quinhão de gozo relacionado à prática ocasional da injustiça seria muito mais módico que a dor relacionada à injustiça que viria a sofrer. A razão reconhece, a partir daí, que tanto para diminuir o sofrimento espalhado em toda parte quanto para reparti-la da maneira mais equânime possível, o melhor e o único meio é poupar a todos a dor relacionada ao sofrimento da injustiça, fazendo-lhes renunciar ao gozo obtido com a sua prática. — Esse meio, facilmente divisado e gradualmente aperfeiçoado pelo egoísmo, o qual, usando a faculdade de razão, procedeu metodicamente e abandonou o seu ponto de vista unilateral, é o CONTRATO DE ESTADO ou a LEI. A origem destes, como aqui os concebo, Platão já a expõe na sua República  . Em realidade, essa origem é essencialmente a única admissível pela natureza mesma da coisa. De fato, em nenhum país o Estado poderia ter outra origem, precisamente porque só este modo de surgimento, este fim, o torna Estado, sendo indiferente se a situação que o precede em cada povo determinado seja a de uma horda de selvagens independentes uns dos outros ou uma horda de escravos arbitrariamente dominados pelo mais forte. Nos dois casos ainda não existe Estado: apenas mediante aquele acordo comum é que o Estado se origina, o qual será mais perfeito ou menos perfeito dependendo do fato de ser mais ou menos contaminado com a anarquia ou o despotismo. As repúblicas tendem à anarquia, as monarquias ao despotismo; a monarquia constitucional, meio-termo para escapar desses excessos, tende ao domínio por facções. Para criar um Estado perfeito, primeiro tem-se de criar seres cuja natureza permita que sempre sacrifiquem o próprio bem-estar em favor do bem-estar público; até lá, entretanto, algo pode ser alcançado na existência de UMA família cujo bem-estar é completamente inseparável do bem-estar do país, de maneira que, pelo menos nas grandes questões, nunca um pode ser favorecido sem que o outro o seja. Aí residindo a força e a vantagem da monarquia hereditária. Se a moral diz respeito exclusivamente à PRÁTICA da justiça ou da injustiça, podendo indicar com precisão os limites da conduta a quem está decidido a não praticar injustiça alguma, a ciência política, a teoria da legislação, por seu turno, trata tão somente do SOFRER INJUSTIÇA e jamais se interessaria em levar em conta a PRÁTICA DA INJUSTIÇA não fosse seu sempre necessário correlato, exatamente o sofrimento da injustiça, que, como inimigo contra o qual luta, é mantido em atenta observação. Sim, caso fosse possível pensar uma prática da injustiça separada do sofrimento da injustiça por outra parte, então, de maneira consequente, o Estado não poderia proibi-la. — Ademais, na MORAL, a vontade, a disposição íntima é o único objeto real a ser considerado; disso se segue que a vontade firme de cometer injustiça, obstada e tornada ineficiente mediante poder externo, iguala-se por completo à injustiça de fato cometida e, diante do tribunal, leva aquele que assim quer a ser condenado como injusto. Por seu turno, vontade e disposição enquanto tais não são de maneira alguma assuntos de Estado, mas apenas o ATO, e este o é em virtude de seu correlato, vale dizer, o SOFRIMENTO da outra parte: para o Estado, portanto, o ato, a ocorrência, é a única coisa real; a disposição íntima, a intenção, é investigada tão somente na medida em que, a partir dela, conhece-se a significação do ato. Por isso o Estado não proibirá ninguém de portar continuamente pensamentos sobre assassinato e envenenamento, desde que saiba com certeza que o medo do carrasco e da guilhotina a todo o momento obstará os efeitos desse querer. Noutros termos, o Estado de modo algum tem o plano tolo de eliminar a inclinação, a disposição má para a prática da injustiça, mas apenas contrapõe a cada motivo possível para cometer injustiça outro mais poderoso, que leva ao abandono do primeiro, vale dizer, contrapõe a punição inexorável. De acordo com o dito, o código penal é um registro o mais completo possível de contramotivos opostos a todas as ações criminais presumíveis — tudo isso in abstracto, para fazer aplicação in concreto quando o caso ocorrer. A ciência política, ou legislação, tomará de empréstimo à moral em vista de tais fins aquele seu capítulo que é a doutrina do direito e que, ao lado da significação interior da justiça e da injustiça, também determina os limites precisos entre estas, porém única e exclusivamente com o objetivo de servir-se do reverso delas e considerar por outro lado todos os limites intransponíveis estabelecidos pela moral se não se quer PRATICAR injustiça, como limites cuja transposição, por outros, não deve ser suportada se não se quer SOFRER injustiça: do contrário tem-se o DIREITO de rechaçar os transgressores: em consequência, esses limites, tanto quanto possível, são bloqueados por leis que levam em conta o lado passivo. Eis por que, assim como de maneira bastante engenhosa denominou-se o historiador um profeta às avessas, o legislador é um moralista às avessas; por extensão, até mesmo a jurisprudência no sentido estrito do termo, ou seja, a doutrina dos DIREITOS que podem ser assertados, é moral às avessas, lá no capítulo em que esta ensina os direitos que não podem ser violados. O conceito de injustiça e sua negação da justiça, conceito de injustiça que é originariamente MORAL, torna-se JURÍDICO pela mudança do ponto de partida do lado ativo para o passivo, ou seja, por inversão. Isso, ao lado da doutrina do direito de Kant  , que do imperativo categórico deduz falsamente a fundação do Estado como um dever moral, deu origem aqui e ali nos novos tempos ao erro bastante esquisito de que o Estado é uma instituição para o fomento da moralidade e originou-se do esforço em promovê-la, sendo, portanto, assim orientado contra o egoísmo. Como se a disposição íntima, a VONTADE LIVRE e eterna, única à qual concerne a moralidade ou imoralidade, pudesse ser modificada do exterior e alterada por influência! Mais disparatado ainda é o teorema de que o Estado é condição da liberdade em sentido moral e, com isso, da moralidade: em verdade, a liberdade encontra-se além da aparência, para não dizer além das instituições humanas. O Estado, como disse, está tão pouco orientado contra o egoísmo em geral que, ao contrário, deve sua origem precisamente ao egoísmo, que, chegando a compreender a si mesmo e procedendo metodicamente, passa do ponto de vista unilateral ao ponto de vista universal e, dessa forma, por somatório, é o egoísmo comum a todos; Estado que existe exclusivamente para servir a este egoísmo, tendo sido instituído sob a correta pressuposição de que a pura moralidade, isto é, a conduta justa a partir de fundamentos morais, não é uma coisa que se deva esperar; do contrário, o Estado mesmo seria supérfluo. Portanto, o Estado, intentando o bem-estar, não foi de modo algum instituído contra o egoísmo, mas pura e simplesmente contra as consequências desvantajosas dele, oriundas da pluralidade dos indivíduos egoístas, reciprocamente afetados e perturbados em seu bem-estar. Por isso ARISTÓTELES já disse: Finis civitatis est bene vivere, hoc autem est beate et pulchre vivere. Também HOBBES   explanou de maneira correta e primorosa essa origem e fim do Estado; a mesma coisa indica o antigo princípio fundamental de toda ordem estatal: salus publica prima lex esto. — Se o Estado atingir completamente o seu objetivo, produzirá a mesma aparência que seria esperada se a perfeita justiça governasse em toda parte a disposição mental. Entretanto, a essência íntima e origem das duas aparências será o inverso: no último caso, a situação seria que ninguém quereria PRATICAR injustiça; mas, no primeiro, seria que ninguém quereria SOFRER injustiça e os meios apropriados para este fim seriam perfeitamente empregados. Pois a mesma linha pode ser traçada em direções opostas e um animal carnívoro com um açaime é tão inofensivo quanto um animal herbívoro. — Porém o Estado não pode ir além desse ponto: não pode, portanto, mostrar uma face que nasceria da benevolência e do amor recíprocos e universais. Pois vimos que o Estado, de acordo com a sua natureza, não proibiria uma prática da injustiça à qual não correspondesse um sofrer injustiça do outro lado; mas, simplesmente porque isto é impossível, proíbe então qualquer prática da injustiça; inversamente, em conformidade com sua tendência orientada para o bem-estar de todos, o Estado de bom grado até cuidaria para que cada um EXPERIMENTASSE benevolência e obras de caridade de todo gênero; porém estas têm o correlato inevitável na REALIZAÇÃO de benevolência e de obras de caridade; todavia, cada cidadão irá querer assumir o papel passivo, nenhum o ativo, não havendo motivo algum para atribuir o segundo papel a um em vez de a outro cidadão; por conseguinte, apenas o negativo, que constitui precisamente o DIREITO, pode ser IMPOSTO, não o positivo, o qual se entendeu sob a rubrica de deveres de caridade ou deveres imperfeitos. [MVR1: §62]

Se Kant, como ele aqui pretende e também só aparentemente o fez em ocasiões anteriores, simplesmente inferiu a coisa em si, e além disso com a grande inconsequência de uma conclusão por ele mesmo absolutamente proibida, que acaso estranho seria que, precisamente aqui, no momento em que pela primeira vez chega mais perto da coisa em si e a ilumina, logo reconhecesse nela a VONTADE, a VONTADE LIVRE que dá sinais de si no mundo só através de aparências temporais! — Ora, eu de fato assumo, embora não o possa demonstrar, que Kant, todas as vezes que falava da coisa em si, na profundeza mais escura de seu espírito sempre já pensava indistintamente na vontade. Uma prova disso é dada no prefácio da segunda edição da Crítica da razão pura. [MVR1: Apêndice: Crítica da Filosofia Kantiana]

Outro erro que, por ofender a sensibilidade de cada um, é com frequência censurado e foi satirizado por Schiller num epigrama é o pedante preceito de que um ato, para ser verdadeiramente bom e meritório, tem de ser executado única e exclusivamente a partir do respeito à lei reconhecida e segundo uma máxima conhecida pela razão in abstracto, mas não por inclinação, não a partir da benevolência sentida em relação aos outros, não a partir da simpatia terna, compaixão ou sentimentos do coração, os quais são até mesmo nocivos às pessoas bem pensantes, porque confundem suas máximas deliberadas; ao contrário, o ato tem de ser praticado de mau grado e por auto-constrangimento. Que se leve aí em conta que a esperança da recompensa não deve exercer influência alguma, para medir-se o grande absurdo da exigência. Porém, e isto é ainda mais significativo, tudo isso é diretamente oposto ao espírito da virtude: não o ato, mas a boa vontade nele, o amor, do qual provém e sem o qual é uma obra morta, constitui ali o elemento meritório. Por isso o cristianismo ensina, com justeza, que todas as obras exteriores são sem valor, caso não provenham daquela genuína disposição de caráter que consiste na verdadeira boa vontade e amor puro; também ensina que não são as obras executadas, mas a fé, a disposição autêntica de caráter, exclusivamente concedida pelo Espírito Santo, não produzida pela VONTADE LIVRE e deliberada que apenas tem a lei em vista, aquilo que torna alguém bem-aventurado e redimido. — Com aquela exigência kantiana, de que toda ação virtuosa deva acontecer friamente e sem inclinação alguma a partir do respeito puro e ponderado à lei, e de acordo com as suas máximas abstratas e em verdade contra a inclinação, é precisamente como se afirmássemos que toda autêntica obra de arte teria de nascer mediante um emprego bem ponderado de regras estéticas. Uma coisa é tão pervertida quanto a outra. A questão, já antes tratada por Platão e Sêneca, se a virtude pode ser ensinada, deve ser respondida negativamente. Por fim temos de reconhecer — o que também deu origem à doutrina cristã da eleição pela graça — que no principal e em seu interior a virtude é em certa medida inata como o gênio e, assim, os professores de estética, com todas as suas forças reunidas, são tão incapazes de atribuir a alguém a capacidade de produções geniais, isto é, de autênticas obras de arte, quanto o são todos os professores de ética e pregadores da virtude de transformar um caráter não nobre num caráter virtuoso e nobre. Impossibilidade muito mais óbvia que a transformação do chumbo em ouro. A procura de uma ética e de um princípio supremo dela que teriam influência prática e efetivamente iriam transformar e melhorar o gênero humano assemelha-se à procura da pedra filosofal. — Mas já falei suficientemente no fim do quarto livro da presente obra sobre a possibilidade de uma completa mudança na mentalidade humana, não por conhecimento abstrato, mas por conhecimento intuitivo. O conteúdo de tal livro me isenta em geral da necessidade de aqui demorar-me mais tempo no assunto. [MVR1: Apêndice: Crítica da Filosofia Kantiana]