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Schopenhauer (MVR1): vontade de vida

quinta-feira 25 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

  

Para quem bem apreendeu isso e sabe distinguir a vontade da ideia e esta da sua aparência, os eventos do mundo têm significação não em e por si mesmos, mas só na medida em que são as letras a partir das quais se pode ler a ideia de humanidade. Não mais acreditará, como a maioria das pessoas, que o tempo cria algo efetivamente novo e significativo; que, através do tempo, ou nele, algo absolutamente real alcança a existência, ou que o tempo mesmo como um todo tenha princípio e fim, plano e desenvolvimento, ou tenha como objetivo último algo assim como o aperfeiçoamento supremo da geração última que vive há trinta anos. Muito menos, como Homero  , povoará todo o Olimpo com deuses para comandarem os eventos temporais, nem, semelhante a Ossian, considerará as figuras das nuvens como seres individuais; pois, como dito, tudo isso é indiferente em referência à ideia que ali aparece. Considerará como permanente e essencial, tanto nas variadas figuras da vida humana quanto na incessante mudança dos eventos, apenas a ideia na qual a VONTADE DE VIDA alcança a sua objetidade mais perfeita, e mostra seus diversos lados nas qualidades, paixões, falhas e méritos do gênero humano, na vanglória, no ódio, no amor, no temor, na coragem, na frivolidade, na obtusidade, na argúcia, no engenho, no gênio etc.; tudo isso convergindo e cristalizando-se em milhares de figuras, isto é, indivíduos, cujas ações produzem continuamente as histórias local e universal, sendo aqui indiferente se o que os põe em movimento são nozes ou coroas. Por fim notará que no mundo acontece como nos dramas de Gozzi, nos quais entram em cena sempre as mesmas pessoas, com igual intenção e igual destino: os motivos e acontecimentos são obviamente diferentes em cada peça, mas o espírito dos acontecimentos é o mesmo: as pessoas de uma peça não sabem o que se passa em outra, na qual elas próprias, não obstante, atuaram: por isso, depois de todas as experiências das peças anteriores, Pantaleão não se torna mais ágil ou generoso, nem Tartaglia mais escrupuloso, nem Brighella mais corajoso ou Colombina mais modesta. [MVR1: §35]

54. Espero que os três primeiros livros tenham produzido o conhecimento claro e certo de que no mundo como representação a vontade encontrou o seu espelho, no qual ela conhece a si mesma em graus crescentes de distinção e completude, sendo o mais elevado o ser humano; a essência humana, entretanto, só adquire plena expressão por meio da série conexa das nossas ações. A conexão autoconsciente destas ações é tornada possível pela faculdade de razão, que continuamente nos permite olhar o todo in abstracto. A vontade que, considerada puramente em si, destituída de conhecimento, é apenas um ímpeto cego e irresistível- como a vemos aparecer na natureza inorgânica e na natureza vegetal, assim como na parte vegetativa da nossa própria vida — atinge, pela entrada em cena do mundo como representação, o conhecimento do seu querer e daquilo que ela quer, a saber, nada senão este mundo, a vida, precisamente como esta existe. Por isso denominamos o mundo aparente seu espelho, sua objetidade; e, como o que a vontade sempre quer é a vida, justamente porque a vida nada é senão a exposição daquele querer para a representação, é indiferente e tão somente um pleonasmo se, em vez de simplesmente dizermos “a Vontade”, dizemos “a VONTADE DE VIDA”. [MVR1: §54]

As filosofias de Bruno e Espinosa   também poderiam conduzir a esse mesmo ponto de vista naquela pessoa cuja convicção não fosse enfraquecida e perturbada pelos erros e imperfeições desses sistemas. À filosofia de Bruno não possui uma ética propriamente dita, e a ética da filosofia de Espinosa não procede absolutamente da essência de sua doutrina, mas, apesar de bela e louvável, é adicionada a ela simplesmente por meio de fracos e palpáveis sofismas. — Sobre o ponto de vista descrito, por fim, muitas pessoas situar-se-iam, caso seu conhecimento acompanhasse passo a passo seu querer, isto é, caso estivessem em condição de clarearem distintamente a própria condição de vida, livrando-se de quaisquer ilusões. Pois, para o conhecimento, esse ponto de vista é o da completa AFIRMAÇÃO DA VONTADE DE VIDA. [MVR1: §54]

A vontade afirma a si mesma, significa: quando em sua objetidade, ou seja, no mundo e na vida, a própria essência lhe é dada plena e claramente como representação, esse conhecimento não obsta de modo algum seu querer, mas exatamente esta vida assim conhecida é também enquanto tal desejada; se até então sem conhecimento, como ímpeto cego, doravante com conhecimento, consciente e deliberadamente. — O oposto disso, a NEGAÇÃO DA VONTADE DE VIDA, mostra-se quando aquele conhecimento leva o querer a findar, visto que, agora, as aparências individuais conhecidas não mais fazem efeito como MOTIVOS do querer, mas o conhecimento inteiro da essência do mundo, que espelha a vontade, e provém da apreensão das IDEIAS, torna-se um QUIETIVO da vontade e, assim, a vontade suprime a si mesma livremente. Espero que tais conceitos, até agora totalmente desconhecidos e dificilmente compreensíveis nessa forma geral de expressão, tornem-se distintos mediante a exposição que logo a seguir farei de fenômenos, modos de ação nos quais se exprimem, de um lado, a afirmação em seus diversos graus e, de outro, a negação. Pois ambas surgem pelo CONHECIMENTO; não um conhecimento abstrato que é expresso em palavras, mas sim um conhecimento vívido e independente de dogmas e que é expresso exclusivamente em atos e condutas e permanece livre de dogmas, os quais, como conhecimento abstrato, concernem à razão. Meu único fim, pois, só pode ser expor a afirmação e a negação, trazendo-as a conhecimento distinto da faculdade racional, sem prescrever nem recomendar uma ou outra, o que seria tão tolo quanto inócuo, pois a vontade em si é absolutamente livre e determina por inteiro a si mesma, não havendo lei alguma para ela. — Contudo, antes de passar à exposição anunciada, temos em primeiro lugar de elucidar e determinar mais precisamente essa LIBERDADE e sua relação com a necessidade; em seguida, ainda inseriremos algumas considerações gerais sobre a vida, cuja afirmação ou negação é o nosso problema. Por meio de tudo isso deverá ser facilitado o conhecimento por nós intentado da significação ética das condutas humanas de acordo com a sua essência íntima. [MVR1: §54]

56. Essa liberdade e onipotência da vontade — cuja exteriorização e cópia é todo o mundo visível, sua aparência, que se desenvolve progressivamente conforme as leis traz idas pela forma do conhecimento — pode também exteriorizar-se de uma nova maneira e justamente lá onde, em sua aparência mais acabada, surgiu o conhecimento perfeitamente adequado de sua própria essência; pois aqui, no ápice de sua clarividência e consciência de si, ou a vontade quer o mesmo que antes queria, porém cega e desconhecendo-se, e assim o conhecimento lhe permanece sempre um MOTIVO tanto no particular quanto no todo, ou, ao contrário, esse conhecimento torna-se-lhe um QUIETIVO, silenciando e suprimindo todo querer. Tem-se aí a afirmação ou negação da VONTADE DE VIDA, anteriormente estabelecidas em termos gerais e que, enquanto exteriorizações universais e não particulares da vontade em relação à conduta do indivíduo, não modificam de modo perturbador o desenvolvimento do caráter nem se expressam em ações particulares; mas, antes, a afirmação ou negação expressam de forma viva a máxima que a vontade adotou livremente de acordo com o conhecimento agora obtido, e isso se dá seja pela emergência acentuadamente mais vigorosa do modo de ação anterior ou, ao contrário, pela supressão do mesmo. — O desenvolvimento mais claro de tudo isso, o tema capital deste último livro, foi-nos preparado e facilitado pelas considerações entrementes expostas sobre liberdade, necessidade e caráter: porém, nossa tarefa será ainda mais fácil se a adiarmos mais uma vez, e primeiro dirigirmos o nosso olhar para a vida mesma, cujo querer ou não querer é a grande questão; e de tal maneira que em geral procuraremos conhecer o que a vontade mesma, que em toda parte é a essência íntima desta vida, vem a ser em sua afirmação; que tipo de satisfação ela obtém daí e até onde vai, sim, até que ponto ela pode satisfazer-se; numa palavra, qual deve ser em geral e no essencial o seu estado neste mundo que lhe pertence em todos os aspectos? [MVR1: §56]

A conservação do corpo através de suas próprias forças é um grau tão débil de afirmação da vontade que, se voluntariamente as coisas permanecessem nesse estado, poderíamos admitir que, com a morte do corpo, a vontade que nele aparece também se extinguiria. Por seu turno, a satisfação do impulso sexual já ultrapassa a afirmação da própria existência e afirma a vida por um tempo indeterminado para além da morte do indivíduo. A natureza, sempre verdadeira e consequente, aqui até mesmo inocente, exibe de maneira bastante explícita a significação íntima do ato de procriação. A nossa consciência, a veemência do impulso, nos ensina que neste ato se expressa de maneira pura e sem adição a mais decidida AFIRMAÇÃO DA VONTADE DE VIDA; depois, no tempo e na série causal, isto é, na natureza, uma nova vida aparece como consequência do referido ato: diante do procriador aparece o procriado, o qual é diferente do primeiro apenas em aparência, mas em si mesmo, conforme a ideia, é idêntico a ele. Por conseguinte, esse é o ato mediante o qual as espécies dos viventes se ligam a um todo e, dessa forma, perpetuam-se. A procriação, em relação ao procriador, é apenas a expressão, o sintoma de sua decidida afirmação da VONTADE DE VIDA: em relação ao procriado a procriação não é o fundamento da vontade que nele aparece, visto que a vontade em si não conhece fundamento nem consequência: antes, como toda causa, é tão somente causa ocasional da aparência desta vontade neste tempo e neste lugar. Como coisa em si, a vontade do procriador e a do procriado não são diferentes, pois apenas a aparência, não a coisa em si, está submetida ao principium individuationis. Ora, naquela afirmação, que vai além do próprio corpo até a apresentação de um novo, também co-afirmam-se sofrimento e morte como pertencentes à aparência da vida, e a possibilidade de redenção produzida pela mais perfeita capacidade de conhecimento é agora declarada infrutífera. Aqui reside a razão profunda da vergonha associada ao ato da cópula. — Semelhante visão é miticamente exposta no dogma da doutrina da fé cristã de que todos compartilhamos a queda pecaminosa de Adão e, em virtude dela, somos culpáveis por sofrimento e morte. Com isso, tal doutrina de fé vai além da consideração segundo o princípio de razão e reconhece a ideia de humano; cuja unidade é restabelecida, de sua dispersão em inumeráveis indivíduos, por meio do laço amalgamador da procriação. Em conformidade com isso, aquela doutrina considera cada indivíduo de um lado como idêntico a Adão, o representante da afirmação da vida e, nesse sentido, entregue ao pecado original, ao sofrimento e à morte; de outro, o conhecimento da ideia mostra cada indivíduo como idêntico ao redentor, ao representante da negação da VONTADE DE VIDA e, nesse sentido, participe de seu autossacrifício, redimido por seus méritos e salvo das amarras do pecado e da morte, isto é, do mundo. [MVR1: §60]

Outra exposição mítica de nossa concepção da satisfação sexual como afirmação da VONTADE DE VIDA além da vida individual e como uma entrega à vida, consumada primeiramente por aquele ato, ou, por assim dizer, como um consentimento renovado a ela, é o mito grego de Proserpina: o retorno desta do mundo subterrâneo ainda era possível enquanto não tivesse experimentado os frutos dele; porém, ali ficou para sempre abandonada, pois saboreou uma romã. O sentido claro desse mito nos é expresso numa exposição incomparável de Goethe  , em especial naquele momento em que, tendo saboreado a romã, soa de súbito o coro invisível das parcas: És nossa! / Em abstenção podias retomar: / Mas a mordida da maçã te faz nossa. É notável como CLEMENTE DE ALEXANDRIA   descreve o tema com a mesma imagem e a mesma expressão: Qui se castrarunt ab omni peccato, propter regnum coelorum, ii sunt beati, a mundo jejunantes. [MVR1: §60]

O impulso sexual também confirma-se como a mais decidida e forte afirmação da vida pelo fato de, tanto para o ser humano natural quanto para o animal, ele ser o fim último, o objetivo supremo da vida. Autoconservação é seu primeiro esforço e, tão logo esta seja assegurada, empenha-se só pela propagação da espécie: enquanto mero ser natural, não pode aspirar a nada mais. A natureza, cuja essência íntima é a VONTADE DE VIDA, impulsiona com todas as forças o ser humano e o animal para a propagação. Após a natureza ter alcançado pelo indivíduo o seu objetivo, ela se torna por inteiro indiferente ao sucumbir dele, visto que, como VONTADE DE VIDA, preocupa-se tão somente com a conservação da espécie, o indivíduo sendo-lhe insignificante. — Ora, em virtude de a essência íntima da natureza, a VONTADE DE VIDA, expressar-se da maneira mais forte no impulso sexual, os poetas e filósofos antigos, dentre eles Hesíodo   e Parmênides  , disseram bastante significativamente que EROS é o primeiro, o criador, o princípio do qual emergem todas as coisas. Ferécides disse: Jovem, cum mundum fabricare vellet, in cupidinem sese transformasse. — Um tratamento detalhado desse tema por G. F. SCHOEMANN veio recentemente a lume sob o título De cupidine cosmogonico, 1852. O mãyã dos indianos, cuja obra e tecido é todo o mundo aparente, também foi parafraseado por amor. [MVR1: §60]

Já consideramos detalhadamente no início deste livro quarto como a VONTADE DE VIDA em sua afirmação tem de observar sua relação com a morte, noutros termos, esta não a afeta, porque a morte existe como algo incluído e pertencente à vida, enquanto o seu oposto, a procriação, mantém o perfeito equilíbrio; e, apesar da morte do indivíduo, a vida é segura e certa, em todo tempo, à VONTADE DE VIDA; para expressar tal estado de coisas os indianos deram ao deus da morte, Siva, o lingam como atributo. Também já expusemos como alguém que se coloca com perfeita clarividência no ponto de vista da decidida afirmação da vida encara a morte sem temor. Por conseguinte, não falaremos mais aqui sobre o assunto. Porém, a maioria dos seres humanos se coloca nesse ponto de vista sem perfeita clarividência e afirma a vida continuamente. O mundo existe como espelho dessa afirmação, com inúmeros indivíduos no tempo e espaço sem fim, no sofrimento sem fim, entre procriação e morte sem fim. — Contudo, de lado algum pode-se elevar um lamento, pois a vontade desempenha a grande tragicomédia arcando com os próprios custos, sendo igualmente espectadora de si mesma. O mundo é precisamente assim porque a vontade, da qual ele é a aparência, é como é, e quer dessa maneira. A justificativa para o sofrimento é o fato de a vontade afirmar-se a si nessa aparência, e esta afirmação é justificada e equilibrada pelo fato de a vontade portar o sofrimento. Aqui já se descortina uma mirada na JUSTIÇA ETERNA e universal; mais adiante reconhecê-la-emos mais de perto, em detalhes e em particular. Primeiro, entretanto, temos de falar da justiça temporal e humana. [MVR1: §60]

Uma fonte capital de sofrimento, que apontamos acima como essencial e inevitável a toda vida, é aquela ERIS, a luta de todos os indivíduos: expressão da contradição que afeta a VONTADE DE VIDA em seu interior e que se torna visível através do principium individuationis: um meio cruel para a visualização imediata e crua dessa ordem das coisas são as lutas entre animais. Em tal cisão originária, que agora vamos considerar mais de perto, encontra-se uma fonte inesgotável de sofrimento, a despeito das precauções que se possa tomar. [MVR1: §61]

62. Já foi examinado que a primeira e mais simples afirmação da VONTADE DE VIDA é apenas afirmação do próprio corpo, isto é, exposição da vontade através de atos no tempo, na medida em que o corpo, em sua forma e finalidade, já expõe essa mesma vontade espacialmente, e não mais. Essa afirmação mostra-se como conservação do corpo no emprego das próprias forças. A ela liga-se imediatamente a satisfação do impulso sexual, que pertence sim a ela, visto que os genitais pertencem ao corpo. Eis por que a renúncia VOLUNTÁRIA da satisfação desse impulso, não baseada em MOTIVO algum, já é negação da VONTADE DE VIDA; trata-se de uma autossupressão voluntária do querer mediante a entrada em cena de um conhecimento que atua como QUIETIVO. Em conformidade com o dito, a negação do próprio corpo já se expõe como uma contradição da vontade com sua aparência, pois, embora também aqui o corpo objetive nos genitais a vontade de propagação, esta propagação, no entanto, não é desejada. Ora, exatamente porque essa renúncia é negação ou supressão da VONTADE DE VIDA, ela é uma autossuperação difícil e dolorosa. — Na medida, entretanto, em que a vontade expõe aquela AUTOAFIRMAÇÃO do próprio corpo em inumeráveis indivíduos um ao lado do outro, tal autoafirmação, em virtude do egoísmo inerente a todos, vai muito facilmente além de si mesma até a NEGAÇÃO da mesma vontade como esta aparece em outros indivíduos. De fato, a vontade de um invade os limites da afirmação da vontade alheia, seja quando o indivíduo fere, destrói o corpo de outrem, ou ainda quando compele as forças de outrem a servirem à SUA vontade, em vez de servir à vontade que aparece no corpo alheio; logo, quando da vontade que aparece como corpo alheio são subtraídas as forças para assim aumentar a força a serviço de SUA vontade para além daquela do seu corpo, por conseguinte afirmar sua vontade para além do próprio corpo mediante a negação da vontade que aparece no corpo alheio. — Semelhante invasão dos limites da afirmação alheia da vontade foi conhecida distintamente em todos os tempos, e o seu conceito foi designado pelo nome INJUSTIÇA, devido ao fato de as duas partes reconhecerem instantaneamente o ocorrido, embora não como aqui, em distinta abstração, mas como sentimento. Quem sofre a injustiça sente a invasão na esfera de afirmação do próprio corpo, via negação deste por um indivíduo estranho, como uma dor imediata, espiritual, completamente separada e diferente do sofrimento físico infligido pelo ato, ou do pesar provocado pela perda. Por outro lado, a quem pratica a injustiça apresenta-se por si mesmo o conhecimento de que ele, em si, é a mesma vontade que também aparece no outro corpo, afirmando-se com tanta veemência numa única aparência que, ao transgredir os limites do próprio corpo e de suas forças, torna-se negação exatamente dessa vontade na outra aparência e, por conseguinte, tomada como vontade em si, entra em conflito consigo mesma precisamente por meio dessa veemência, cravando os dentes na própria carne; — também a quem pratica a injustiça, eu digo, esse conhecimento apresenta-se instantaneamente não in abstracto, mas como um sentimento obscuro, o qual se denomina remorso, ou, mais de acordo com o presente caso, sentimento de INJUSTIÇA COMETIDA. [MVR1: §62]

Ora, SOFRER INJUSTIÇA é um evento que se dá na experiência e, como dito, aí se manifesta mais distintamente do que em qualquer outro lugar o aparecimento do conflito da VONTADE DE VIDA consigo mesma, advindo da pluralidade de indivíduos e do egoísmo, que são condicionados pelo principium individuationis, esta forma do mundo como representação para o conhecimento do indivíduo. Também vimos acima que uma grande cota do sofrimento essencial à vida humana tem sua fonte constantemente fluida precisamente naquele conflito dos indivíduos. [MVR1: §62]

A aparência, a objetidade de uma única e mesma VONTADE DE VIDA, é o mundo em toda a pluralidade de suas partes e figuras. A existência mesma, bem como o tipo de existência, no todo e em cada parte, é apenas a partir da vontade, que é livre, onipotente. Em cada coisa a vontade aparece exatamente como ela se determina a si mesma, em si, exteriormente ao tempo. O mundo é tão somente o espelho desse querer: e toda finitude, todo sofrimento, todo tormento contidos no mundo pertencem à expressão daquilo que a vontade quer e são o que são em virtude de a vontade querer dessa forma. Em conformidade com isso, todo ser assume com a mais estrita justiça a existência em geral, logo, a existência da sua espécie e da própria individualidade, precisamente como é, e nas circunstâncias dadas em um mundo tal como é, ou seja, regido pelo acaso e o erro, temporal, transitório, sempre sofrendo: mas em tudo o que acontece ou pode acontecer a cada um a justiça sempre lhe é feita. Pois sua é a vontade: e tal como a vontade é, é o mundo. A responsabilidade pela existência e índole deste mundo só este mundo mesmo pode assumir, ninguém mais; pois como outrem poderia ter assumido essa responsabilidade? — Caso se queira saber, em termos morais, o que valem os humanos no todo e em geral, considere-se o seu destino no todo e em geral: trata-se de carência, miséria, penúria, tormento e morte. A justiça eterna prevalece: se os seres humanos tomados como um todo não fossem tão indignos, então o seu destino tomado como um todo não seria tão triste. Nesse sentido podemos dizer: o mundo mesmo é o tribunal do mundo. Pudesse alguém colocar toda a penúria do mundo em UM prato da balança, e toda a culpa no outro, o fiel permaneceria no meio. [MVR1: §63]

Um traço mais marcante, embora muito mais raro, da natureza humana, que expressa aquela exigência de adaptar a justiça eterna ao domínio da experiência, isto é, da individuação, e assim ao mesmo tempo indica uma consciência sentida de que, como acima expus, a VONTADE DE VIDA encena a grande tragicomédia à própria custa, e, dessa forma, é a mesma e única vontade que vive em todas as aparências — um semelhante traço, ia dizer, é o seguinte: às vezes vemos uma pessoa tão profundamente indignada em face de uma grande iniquidade sofrida, sim, talvez apenas vivenciada na qualidade de testemunha, que ela coloca deliberada e irremediavelmente toda a sua vida em função de exercer a vingança no praticante da ofensa. Vemo-la perseguir durante anos um opressor poderoso, a fim de finalmente matá-lo e em seguida morrer ela mesma no cadafalso, como já antevira, porém sem amiúde procurar evitá-lo, pois a sua vida tinha valor apenas como meio para a vingança. — Especialmente entre os espanhóis encontram-se tais exemplos. Se considerarmos com cuidado o espírito dessa exigência de retaliação, notamos que é bem diferente da vingança comum, que quer mitigar o sofrimento padecido por meio da visão de um sofrimento causado: notamos assim que aquilo objetivado pela retaliação não deve ser chamado vingança, mas antes punição: nesta reside, propriamente dizendo, a intenção de um fazer efeito sobre o futuro, por meio do exemplo, e em verdade sem nenhuma finalidade egoística, seja para o indivíduo vingativo, pois este ali sucumbe, seja para a sociedade, que garante a segurança do indivíduo por meio de leis: pois aquela punição é aplicada pelo indivíduo, não pelo Estado; não é o cumprimento de uma lei, mas antes diz respeito sempre a um ato que o Estado não queria ou não podia punir e cuja punição condena. Parece-me que a indignação que impulsiona uma pessoa tão além dos limites de todo amor-próprio nasce da consciência mais profunda de que ela mesma é toda a VONTADE DE VIDA que aparece em todos os seres através de todos os tempos, e que, assim, o mais distante futuro e o presente pertencem igualmente a si, não podendo ser indiferente diante deles: afirmando a vontade, pretende que no drama que expõe sua vida nunca se apresente uma tão monstruosa iniquidade e deseja, mediante o exemplo de uma vingança — contra a qual não existe muralha de defesa, pois a pena de morte não detém o vingador-, intimidar toda prática futura da ofensa. A VONTADE DE VIDA, embora ainda se afirmando, não adere mais aqui à aparência particular, ao indivíduo, mas abarca a ideia de humanidade e quer conservar a aparência desta ideia purificada de tal iniquidade monstruosa e revoltante. É um traço raro de caráter, deveras significativo, até mesmo sublime, através do qual o indivíduo sacrifica a si na medida em que se empenha para tornar-se o braço da justiça eterna, cuja essência propriamente dita ele ainda desconhece. [MVR1: §64]

A um indivíduo humano sempre inclinado a praticar a INJUSTIÇA, assim que a ocasião se apresente e nenhum poder o coíba, denominamos MAU. Conforme nossa explanação da injustiça, isso significa que tal indivíduo afirma não somente a VONTADE DE VIDA tal qual esta aparece em seu corpo, mas, nesta afirmação, vai tão longe que nega a vontade que aparece em outros indivíduos; isso se mostra no fato de exigir as forças deles para o serviço da própria vontade e ainda em procurar aniquilar as suas existências, caso se oponham aos esforços dela. A fonte última dessa atitude é um elevadíssimo grau de egoísmo, cuja essência já foi por mim acima explanada. Duas coisas aqui são óbvias: PRIMEIRO, que num tal indivíduo se exprime uma VONTADE DE VIDA veemente ao extremo, que em muito ultrapassa a afirmação do próprio corpo; SEGUNDO, que seu conhecimento, devotado inteiramente ao princípio de razão e restrito ao principium individuiationis, permanece fixado à total diferença estabelecida por este último entre a própria pessoa e todas as demais; por conseguinte, procura apenas o próprio bem-estar, totalmente indiferente ao dos outros, cuja essência antes lhe é totalmente estranha, separada da sua por um amplo abismo, sim, os vê propriamente só como máscaras sem realidade alguma. — Essas duas características são os elementos básicos do mau caráter. [MVR1: §65]

Fora o sofrimento descrito e inseparável da maldade, ainda se associa a ela, como brotando de uma única raiz, ou seja, de uma vontade veemente ao extremo, outro tormento bem diferente e especial, sofrido em qualquer má ação, seja esta na forma de injustiça provocada pelo egoísmo ou de pura maldade, e que, de acordo com o tempo de duração do tormento, se chama REMORSO, ou PESO DE CONSCIÊNCIA. — Ora, quem se lembra e tem em mente o conteúdo até agora exposto deste quarto livro, em especial a verdade apresentada no seu início de que à VONTADE DE VIDA, a vida mesma é sempre certa, e portanto também se lembra da exposição da justiça eterna, notará que, em conformidade com aquelas considerações, o remorso não pode ter outra significação senão a que adiante se segue, ou seja, seu conteúdo, expresso abstratamente, é o seguinte. [MVR1: §65]

Se, como exceção rara, encontramos um ser humano dotado de uma considerável fortuna, mas que usufrui muito pouco dela, doando todo o resto aos necessitados, enquanto ele mesmo renuncia a muitos gozos, ao conforto, e se a partir disso tentamos elucidar para nós mesmos os seus atos, notaremos que, tirante no todo os dogmas pelos quais ele mesmo quer tornar concebíveis os seus atos à sua razão, em verdade a expressão simples e geral e o caráter essencial da sua conduta é que ele ESTABELECE MENOS DIFERENÇA DO QUE A USUALMENTE ESTABELECIDA ENTRE SI MESMO E OS OUTROS. Se precisamente esta diferença é aos olhos de muitos tão grande que o sofrimento alheio torna-se para o malvado uma alegria imediata e para o injusto um meio bem-vindo ao próprio bem-estar; se quem é simplesmente justo limita-se a não causar sofrimento; por fim, se em geral a maioria das pessoas sabe e conhece em sua proximidade inumeráveis sofrimentos de outros seres sem entretanto decidirem-se a aliviá-las, visto que assim sofreriam alguma privação; se, portanto, em todos esses casos, parece instituir-se uma diferença poderosa entre o eu pessoal e o eu alheio — ao contrário, naquele ser humano nobre que aqui temos em mente essa diferença é insignificante; o principium individuationis, a forma da aparência, não mais o ata tão firmemente, mas o sofrimento visto em outros o afeta quase tanto como se fosse seu; procura então restabelecer o equilíbrio: renuncia aos gozos, aceita privações para aliviar o sofrimento alheio. Quem é nobre nota que a diferença entre si e outrem, que para o mau é um grande abismo, pertence apenas a uma aparência efêmera e ilusória: reconhece imediatamente e sem cálculos que o Em si da sua aparência é também o Em si da aparência alheia, a saber, aquela VONTADE DE VIDA que vive em tudo e constitui a essência de qualquer coisa: sim, que esta essência estende-se até mesmo aos animais e a toda a natureza, logo, ele também não causará tormento a animal algum. O direito do ser humano à vida e à força dos animais baseia-se no fato de que, com o aumento da clareza de consciência, cresce em igual medida o sofrimento, e a dor, que o animal sofre através da morte, ou do trabalho, não é tão grande quanto aquela que o ser humano sofreria com a privação de carne, ou de força do animal; o ser humano, pois, na afirmação de sua existência, pode ir até a negação da existência do animal, e a VONTADE DE VIDA no todo suporta aí menos sofrimento que no caso inverso. Isso ao mesmo tempo determina o grau de uso que se pode fazer das forças animais, sem cometer injustiça, o que, entretanto, é frequentemente desrespeitado, particularmente em relação aos animais de carga e aos cães de caça; contra o que, portanto, a sociedade protetora dos animais em especial orienta sua atividade. Aquele direito do ser humano, em minha opinião, não se estende à vivisseção, sobretudo em animais superiores. Já o inseto, por outro lado, não sofre tanto através da sua morte quanto o ser humano sofre com a sua picada. — Isto os hindus não conseguem ver. [MVR1: §66]

Agora lhe é impossível permitir aos outros que padeçam na miséria enquanto ele mesmo possui em abundância inclusive o supérfluo, como alguém que num dia sofrerá de fome, para no seguinte ter ainda mais do que efetivamente pode consumir. Pois àquele que pratica obras de amor o véu de mãyã torna-se transparente e a ilusão do principium individuationis o abandona. Reconhece a si mesmo, à sua vontade em cada ser, consequentemente também em quem sofre. Está livre da perfídia com a qual a VONTADE DE VIDA, desconhecendo-se a si mesma, aqui em um indivíduo goza volúpias efêmeras e enganadoras, acolá em OUTRO padece por isso na miséria e, dessa forma, inflige e suporta o tormento sem reconhecer que, como Tiestes, devora faminta a própria carne, e lamenta aqui o sofrimento imerecido, enquanto acolá comete crimes sem medo de Nemesis, sempre porque desconhece a si na aparência de outrem e, portanto, não percebe a justiça eterna, pois está enredada no principium individuationis, logo, no modo de conhecimento guiado pelo princípio de razão. Ser curado dessa ilusão e engano de mãyã, e praticar obras de amor, são uma única e mesma coisa. Estas últimas obras são sintomas inevitáveis e infalíveis daquele conhecimento. [MVR1: §66]

Entretanto, antes que eu prossiga e no final da minha exposição mostre como o amor, cuja origem e essência reconhecemos na visão que transpassa o principium individuationis, conduz à redenção, a saber, à renúncia completa da VONTADE DE VIDA, isto é, de todo querer, e como outro caminho menos suave, no entanto mais comum, leva o ser humano ao mesmo fim, antes tenho de expressar e explanar uma sentença paradoxal; não apenas porque é paradoxal, mas porque é verdadeira e pertence à totalidade do pensamento que estou expondo. Trata-se da sentença: “Todo amor é compaixão”. [MVR1: §66]

68. Após essa digressão sobre a identidade entre o amor puro e a compaixão, sendo que o retorno desta última ao próprio indivíduo ocasiona o fenômeno do choro, tomo de novo em mãos o fio condutor da nossa interpretação do significado ético da conduta para, assim, mostrar como, da mesma fonte de onde brota toda bondade, amor, virtude e nobreza de caráter, também nasce aquilo que denomino negação da VONTADE DE VIDA. [MVR1: §68]

Portanto, aqui talvez tenhamos pela primeira vez expresso abstratamente e purificado de todo elemento mítico a essência íntima da santidade, da auto-abnegação, da mortificação da vontade própria, da ascese, como NEGAÇÃO DA VONTADE DE VIDA que entra em cena após o conhecimento acabado de sua própria essência ter-se tornado o quietivo de todo querer. Por outro lado, isso foi imediatamente conhecido e expresso em atos por todos os santos e ascetas que, apesar do mesmo conhecimento íntimo, empregavam todavia uma linguagem bem diferente, segundo os dogmas uma vez absorvidos em sua razão, e devido aos quais um santo indiano ou cristão ou lamaísta tem de fornecer um relato muito diferente dos seus atos, que todavia é irrelevante em referência à coisa mesma. Um santo pode estar convencido das mais absurdas superstições, ou, ao contrário, ser um filósofo: é indiferente. Apenas a sua conduta o evidencia como santo: pois só ela, em termos morais, procede não do conhecimento abstrato, mas sim do conhecimento imediato do mundo e da sua essência, apreendido intuitivamente, e expresso por ele em dogmas apenas para satisfazer a sua faculdade racional. Nesse sentido é tão pouco necessário o santo ser um filósofo quanto o filósofo ser um santo: assim como não é necessário a uma pessoa perfeitamente bela ser um grande escultor, ou um grande escultor ser ele mesmo uma pessoa bela. Em geral é uma estranha exigência feita a um moralista a de que ele não deve recomendar outra virtude senão a possuída por ele mesmo. Repetir abstratamente de maneira distinta e universal, por conceitos, toda a natureza íntima do mundo e assim depositá-la como imagem refletida nos conceitos permanentes, sempre disponíveis da razão: isso, e nada mais, é filosofia. Recordo aqui a passagem de Bacon de Verulam citada no primeiro livro desta obra. [MVR1: §68]

Assim, minha descrição acima feita da negação da VONTADE DE VIDA, ou da conduta da bela alma, da conduta de um santo resignado que voluntariamente penitencia, é meramente abstrata, geral e, por conseguinte, fria. Como o conhecimento do qual procede a negação da vontade é intuitivo e não abstrato, ele encontra a sua expressão perfeita não em conceitos abstratos, mas apenas nos atos e na conduta. Assim, para se compreender por completo o que expressamos filosoficamente como a negação da vontade, é preciso conhecer os exemplos da experiência e da realidade. Decerto não cruzaremos com eles na experiência cotidiana: nam omnia praeclara tam difficilia quam rara sunt, diz Espinosa de maneira admirável. Portanto, a não ser que tenhamos a sorte especial e favorável de testemunhá-lo, temos de contentar-nos com as biografias de tais pessoas. A literatura indiana, a julgar pelo pouco que podemos conhecer do até agora traduzido, é bastante rica em descrições da vida de santos, penitentes, samãnas, sannyasis etc. Até mesmo a conhecida Mythologie des lndous de Mad. de Polier, de maneira alguma elogiável em outros aspectos, contém muitos excelentes exemplos desse tipo. Também entre os cristãos não faltam exemplos em favor das elucidações aqui intentadas. Leiam-se as na maioria das vezes pessimamente escritas biografias daquelas pessoas denominadas almas santas ou pietistas, quietistas, entusiastas pios etc. Coleções dessas biografias foram feitas em várias épocas, como a Vida das almas santas de Tersteegen, a História dos renascidos de Reiz; em nossos dias confira-se a coleção de Kanne, que, misturada ao muito de ruim, contém várias coisas boas, entre as quais a Vida da Beata Sturmin. A essa categoria pertence por inteiro a vida de São Francisco de Assis  , verdadeira personificação da ascese e modelo de todos os monges mendicantes. Sua vida, descrita por seu contemporâneo São Bonaventura, famoso escolástico, foi de novo publicada, Vita S. Francisci a S. Bonaventura concinnata, logo após ter aparecido na França uma biografia dele bem cuidada e detalhada, servindo-se de todas as fontes: Histoire de S. François dAssise, de Chavin de Mallan (1845). — Como paralelo oriental a tais escritos monásticos temos o livro de Spence Hardy: Eastern monachism, an account of the order of mendicants founded by Gotama Budha (1850) , que mostra a mesma coisa, porém sob uma vestimenta diferente. Também se vê aqui o quanto é indiferente se semelhantes casos procedem de uma religião teísta ou ateia. — Antes de tudo, porém, como exemplo especial bem circunstanciado e elucidação factual das concepções por mim expostas, recomendo a autobiografia de Madame Guyon, esta bela e grandiosa alma, cuja lembrança sempre me enche de reverência, autobiografia que deve ser gratificante a todo espírito nobre conhecer, e fazer justiça a excelência de sua disposição de caráter, vendo com indulgência as superstições de sua razão, apesar de eu saber que às pessoas de espírito comum, isto é, a maioria, aquele livro sempre terá um péssimo crédito, pois em geral e em toda parte cada um só pode apreciar aquilo que lhe é de algum modo análogo e para o qual tem ao menos uma fraca inclinação. Isto é válido tanto para o aspecto intelectual quanto para o ético. Poderíamos aqui incluir como um exemplo parecido, dando certo desconto, até mesmo a conhecida biografia de Espinosa, se usarmos como chave para ela a sua excelente introdução ao deficiente ensaio De emendatione intellectus; pois se trata do introito mais eficiente que conheço como calmante para a tempestade das paixões, e que recomendo. Por fim, inclusive Goethe, por mais grego que fosse, não considerou indigno de sua pena mostrar-nos em límpido espelho da poesia esse lado mais belo da humanidade, quando expôs de forma idealizada a vida da senhorita Klettenberg, em Confissões de uma bela alma; mais tarde, na sua própria biografia, também nos deu relatos históricos disso; e ainda nos narrou duas vezes a vida de São Felipe Neri. — A história universal sempre silenciará, e em realidade tem de fazê-lo, acerca das pessoas cuja conduta é a melhor e a única elucidação suficiente desse importante ponto de nossa consideração. Pois o estofo da história universal é de natureza completamente outra, sim, oposta, a saber, não a negação e renúncia da VONTADE DE VIDA, mas precisamente sua afirmação e aparecimento em incontáveis indivíduos — nos quais entra em cena, no ponto mais elevado de sua objetivação e com perfeita distinção, a sua discórdia consigo mesma e assim traz-nos diante dos olhos ora a superioridade do indivíduo pela inteligência, ora a violência da maioria mediante a massa, ora o poder do acaso personificado como sorte, e sempre a vaidade e nulidade de todo esforço. Nós, entretanto, que neste momento não seguimos o fio das aparências no tempo, mas procuramos investigar a significação ética das ações, e tomamos estas como a única medida para o que nos é significativo e importante, reconheceremos intimoratos, em face da sempre permanente unanimidade do rasteiro vulgo, que o grande e mais significativo acontecimento que o mundo pode exibir não é o conquistador do mundo, mas o ultrapassador do mundo; portanto, em realidade, nada senão a tranquila e despercebida conduta de vida de uma pessoa que chegou àquele conhecimento em virtude do qual renuncia e nega a VONTADE DE VIDA, esta que em tudo se esforça e a tudo preenche e impulsiona, cuja liberdade apenas aqui, só nele, entra em cena, pelo que sua conduta é precisamente o contrário da conduta ordinária. Nesse aspecto, pois, as descrições da vida dos indivíduos santos e auto-abnegados são para o filósofo — apesar de na maioria das vezes serem muito mal escritas e narradas com uma mescla de superstição e absurdo —, devido ao significado de seu estofo, incomparavelmente mais instrutivas e importantes até mesmo que Plutarco   e Lívio. [MVR1: §68]

O conhecimento mais preciso e completo daquilo que, na abstração e na universalidade de nosso modo de exposição, expressamos como negação da VONTADE DE VIDA será bastante facilitado pela consideração dos preceitos éticos dados nesse sentido por indivíduos plenamente tomados de semelhante espírito, o que ao mesmo tempo mostrará o quanto nossa visão é antiga, por mais nova que possa ser a pura expressão filosófica da mesma. Em primeiro lugar, o que nos está mais próximo é o cristianismo, cuja ética está totalmente no espírito mencionado, e conduz não apenas ao grau mais elevado de amor humano, mas à renúncia; o gérmen disso já se encontra presente de forma distinta nos escritos dos apóstolos, entretanto só mais tarde desenvolveu-se plenamente e foi explicite expresso. Pelos apóstolos encontramos prescrito o amor ao próximo como se fosse a nós mesmos, as boas obras, o pagamento do ódio com o amor e a boa ação, a paciência, a candura; o suportar todas as possíveis afrontas e injúrias sem resistência, a frugalidade na alimentação para sofrear o prazer, a resistência ao impulso sexual. Vemos aqui já os primeiros graus da ascese ou negação propriamente dita da vontade: expressão esta que justamente diz aquilo que nos evangelhos   é denominado abnegação de si e carregar a própria cruz. Essa tendência foi gradativamente desenvolvida e deu origem aos penitentes, aos anacoretas, aos monges; mas essa origem, em si pura e santa, justamente por essa razão não podia ser seguida pela grande maioria das pessoas, e, assim, o que daí se desenvolveu só podiam ser hipocrisias e infâmias, pois abusus optimi pessimus. No cristianismo mais letrado vemos aquele gérmen ascético desabrochar em vistosa flor nos escritos dos santos e místicos. Estes pregam, junto com o mais puro amor, também completa resignação, voluntária e absoluta pobreza, verdadeira serenidade, indiferença completa pelas coisas mundanas, mortificação da própria vontade e renascimento em Deus, completo esquecimento da própria pessoa e imersão na intuição de Deus. Uma exposição completa disso encontra-se na Explication des maximes des Saints sur la vie intérieure de Fénélon. Todavia em parte alguma encontramos o espírito do cristianismo tão perfeita e vigorosamente expresso nesse seu desenvolvimento do que nos escritos da mística alemã, portanto em Meister Eckhard e no, com justeza famoso, livro Teologia alemã, do qual Lutero diz, no prefácio a ele aditado, que de nenhum livro, excetuando-se a Bíblia e Agostinho, mais aprendeu o que seja Deus, Cristo e o ser humano, — contudo, só obtivemos aquele texto autêntico e verídico no ano de 1851, edição Stuttgart de PFEIFFER. Os preceitos e as doutrinas ali fornecidos são a mais completa apresentação nascida do convencimento mais profundo do que expus como a negação da VONTADE DE VIDA. Ali, portanto, tem-se muito mais a aprender sobre o assunto, e não nos discursos sobre ele com convicção judaico-protestante. Textos admiráveis no mesmo espírito, embora não iguais em valor, são a Imitação da vida pobre de Cristo de TAULER  , ao lado de sua Medulla animae. Ao meu ver, as doutrinas desses autênticos místicos do cristianismo estão para as do Novo Testamento como o espírito vinifico está para o vinho; ou: o que no Novo Testamento nos é, por assim dizer, visível envolto em véu e névoa aparece-nos desvelado nas obras dos místicos com total clareza e distinção. Por fim, também se poderia considerar o Novo Testamento como a primeira, os místicos como a segunda iniciação. [MVR1: §68]

Porém, ainda mais desenvolvido e expresso de maneira multifacetada, exposto mais vivamente do que poderia ocorrer na Igreja cristã e no mundo ocidental, encontramos o que denominamos negação da VONTADE DE VIDA justamente nas obras ancestrais da língua sânscrita. Que essa importante visão ética da vida tenha aqui alcançado um desenvolvimento mais amplo e decisivo deve talvez ser atribuído antes de tudo ao fato de essa visão não ter sido limitada por um elemento que lhe seja completamente estranho, como é o caso do cristianismo pela doutrina judaica, em que o sublime fundador do cristianismo teve necessariamente de adaptar-se em parte conscientemente, em parte talvez inconscientemente, ao judaísmo, de modo que o cristianismo é composto de dois elementos bastante heterogêneos, dentre os quais prefiro o puramente ético, nomeando-o exclusivamente cristão, para distingui-la do dogmatismo judeu com o qual é confundido. Se — como amiúde temeu-se, em especial nos dias atuais — aquela religião excelente e salutar entrar definitivamente em decadência, eu procuraria a razão disso apenas no fato de ela consistir não de um elemento simples, mas de dois elementos originariamente heterogêneos postos em combinação pelo curso mundano dos eventos; ora, daí só poderia resultar a dissolução devida à degeneração provocada por afinidade desigual e reação ao moderno espírito de época; no entanto, após isto, o lado puramente ético ainda teria de permanecer intacto, pois é indestrutível. — Na ética dos hindus como a encontramos expressa variada e vigorosamente nos Vedas  , nos Purãnas, em obras poéticas, em mitos e lendas dos seus santos, bem como em aforismos e regras de vida, vemos prescritos: amor ao próximo com total renúncia a todo amor-próprio; amor em geral não restrito só ao gênero humano, mas englobando todos os viventes; caridade até o ponto de doar aquilo que foi conquistado com o suor diário; paciência ilimitada em relação a toda ofensa; retribuição de todo mau, por pior que seja, com bondade e amor; resignação voluntária e alegre em face de qualquer ignomínia; abstenção completa de alimentação animal; absoluta castidade e renúncia a todo prazer para os que aspiram à verdadeira santidade; despojamento das propriedades, abandono da habitação e dos parentes, profunda e imperturbável solidão absorvida na contemplação silenciosa com voluntária expiação, assim como a terrível e lenta autopunição para a completa mortificação da vontade, o que ao fim pode conduzir à morte voluntária mediante jejum, também mediante o atirar-se aos crocodilos ou o precipitar-se do pico sagrado do alto do Himalaia ou ser sepultado vivo, e também mediante o lançar-se sob as rodas do carro colossal que passeia as imagens de deuses entre o canto, o júbilo e a dança das bailadeiras. Tais preceitos, cuja origem remonta a mais de quatro milênios, são ainda hoje vividos por indivíduos até os maiores extremos, ainda que aquele povo se encontre degenerado em muitos outros aspectos. O que permaneceu em prática durante tanto tempo, apesar dos mais duros sacrifícios exigidos, num povo que compreende tantos milhões, não pode ser uma fantasia arbitrariamente inventada, mas tem de possuir o seu fundo na essência da humanidade. Mas, apesar de tudo isso, não podemos surpreender-nos suficientemente sobre a coincidência que encontramos ao lermos a vida de um penitente ou santo cristão e a de um penitente indiano. A despeito dos dogmas, dos costumes e das regiões tão fundamentalmente diferentes, a aspiração e a vida interior deles é em absoluto a mesma; também os seus preceitos: por exemplo, Tauler fala da pobreza completa que se deve procurar e que consiste na renúncia total a tudo aquilo que pode proporcionar um consolo ou gozo mundano; evidentemente porque tudo isto fornece nova alimentação à vontade, cuja mortificação completa é intentada: e como contrapartida indiana vemos nos preceitos de Fo ao sannyasi, sem habitação e sem qualquer propriedade, não permanecer com frequência sob a mesma árvore, para assim evitar algum tipo de preferência ou inclinação por ela. Místicos cristãos e grandes mestres da filosofia vedanta concordam no fato de considerarem todas as obras exteriores e as práticas religiosas como supérfluas àquela pessoa que atingiu a perfeição. — Tanta concordância em épocas e povos tão diferentes é uma prova factual de que aqui se expressa não uma excentricidade ou um distúrbio mental, como a rasteira visão otimista gosta de afirmar, mas um lado essencial da natureza humana e que, se raramente aparece, é tão só em virtude da sua qualidade superior. [MVR1: §68]

Acabei de mencionar as fontes de onde pode-se obter um conhecimento imediato, haurido na vida, do fenômeno no qual a negação da VONTADE DE VIDA se apresenta. Em certa medida este é o ponto mais importante de toda a nossa consideração; todavia, explanei-o apenas de maneira geral, pois o melhor é remeter àqueles que falam a partir da experiência imediata, em vez de aumentar desnecessariamente este livro pela repetição enfraquecida das coisas ditas por eles. [MVR1: §68]

Quero aqui apenas adicionar algo mais para a descrição geral desse estado. Vimos acima que o indivíduo mau, pela veemência do seu querer, padece sem cessar um corrosivo tormento interior e, ao fim, quando esgotam-se todos os objetos do querer, sacia a sua sede no espetáculo do tormento alheio; ao contrário, o indivíduo no qual surgiu a negação da VONTADE DE VIDA é cheio de alegria interior e verdadeira paz celestial, por mais pobre, destituído de alegria e cheio de privação que seja o seu estado quando visto de fora. Não se tem aqui o ímpeto de vida turbulento, a alegria esfuziante que tem como condição anterior ou posterior o sofrimento veemente, como no caso da conduta típica de quem é apegado à vida; mas se tem uma paz inabalável, uma profunda calma e jovialidade interior, um estado que, se trazido diante dos nossos olhos ou da imaginação, não pode ser visto sem o mais forte dos anelos, pois o reconhecemos de imediato até mesmo como o único justo, que ultrapassa infinitamente todos os demais, e perante o qual nosso espírito melhor sentencia altissonante o grande sapere aude. Sentimos que toda satisfação dos nossos desejos advinda do mundo assemelha-se à esmola que mantém hoje o mendigo vivo, porém prolonga amanhã a sua fome; a resignação, ao contrário, assemelha-se à fortuna herdada: livra o herdeiro para sempre de todos os cuidados. [MVR1: §68]

Contudo, não se deve imaginar que, após a negação da VONTADE DE VIDA ter entrado em cena pelo conhecimento tornado quietivo, não há oscilação e assim se pode para sempre permanecer nela como numa propriedade herdada. Não, antes, a negação precisa ser renovadamente conquistada por novas lutas. Pois, visto que o corpo é a vontade mesma apenas na forma da objetidade, ou como aparência no mundo como representação; segue-se que enquanto o corpo viver, toda a VONTADE DE VIDA existe segundo sua possibilidade e constantemente esforça-se para aparecer na realidade efetiva e de novo arder em sua plena intensidade. Por isso, ao encontrarmos na vida de indivíduos santos aquela calma e bem-aventurança que descrevemos como a florescência nascida da constante ultrapassagem da vontade, vemos também como o solo onde se dá essa floração é exatamente a contínua luta contra a VONTADE DE VIDA: pois sobre a face da Terra ninguém pode ter paz duradoura. Em consequência, lemos as histórias da vida interior dos indivíduos santos cheias de conflitos espirituais, tentações e abandono da graça, isto é, daquele modo de conhecimento que, ao tornar todos os motivos ineficientes, emudece como quietivo universal qualquer querer e proporciona a mais profunda paz e abre o portão da liberdade. Conseguintemente, também vemos os que uma vez atingiram a negação da VONTADE DE VIDA manterem-se com todo empenho neste caminho através de todo tipo de renúncias autoimpostas, mediante um modo de vida duro, penitente e pela procura do desagradável: tudo tendo em vista suprimir a vontade que renovadamente se esforça. Ao fim, como já conhecem o valor da redenção, cuidam angustiosamente para conservar a salvação alcançada, desenvolvem escrúpulos de consciência em cada prazer inocente ou em cada pequena agitação da própria vaidade; vaidade esta que também morre por último e, entre todas as inclinações do ser humano, é a mais difícil de destruir, a mais ativa e a mais tola. — Sob o termo por mim amiúde empregado de ASCESE entendo, no seu sentido estrito, essa quebra PROPOSITAL da vontade, pela recusa do agradável e pela procura do desagradável, o modo de vida penitente voluntariamente escolhido e a auto-castidade, tendo em vista a mortificação contínua da vontade. [MVR1: §68]

Tudo isso pode ser observado na prática das pessoas que já atingiram a negação da vontade e tentam mantê-la; por outro lado, o sofrimento em geral trazido pelo destino torna-se um segundo caminho para atingir a negação: sim, podemos assumir que a maioria das pessoas só chega ao mencionado fim por esta via, e que é o sofrimento pessoalmente sentido, não o meramente conhecido, o que produz com mais frequência a completa resignação, e na maioria das vezes com a proximidade da morte. Em realidade, só entre alguns poucos o simples conhecimento que transpassa o principium individuationis é suficiente para conduzir à negação da vontade, primeiro ao produzir a mais perfeita bondade na disposição de caráter e o amor universal à humanidade, por fim ao permitir reconhecer em todo sofrimento do mundo o próprio sofrimento. Mesmo aqueles que se aproximam deste ponto, o estado tolerável da sua pessoa, a adulação do momento, as promessas da esperança, a satisfação da vontade que se oferece sempre de novo, isto é, a satisfação do prazer, são quase sempre um constante obstáculo à negação da vontade e uma constante sedução para a sua renovada afirmação. Nesse sentido tais tentações sempre foram personificadas na figura do diabo. Por conseguinte, na maioria dos casos a vontade tem de ser quebrada pelo mais intenso sofrimento pessoal, antes de a sua autonegação entrar em cena. Então vemos o ser humano, trazido às raias do desespero após haver sofrido todos os graus de uma aflição crescente sob os reveses mais violentos, subitamente retirar-se em si mesmo, reconhecer a si mesmo e ao mundo, mudar todo o seu ser, elevar-se por sobre a própria pessoa e por todo sofrimento, como se fora purificado e santificado por este, em paz inabalável, em beatitude e sublimidade, livremente renunciando a tudo o que antes queria com a maior veemência, e receber alegremente a morte. Eis aí a mirada argêntea que subitamente surge da flama purificadora do sofrimento; a mirada da negação da vontade, ou seja, da redenção. Mesmo aqueles que eram indivíduos muito maus, vemo-los às vezes purificados até este grau mediante a mais profunda dor: tornam-se outros, completamente convertidos. Seus atos criminosos de outrora não mais angustiam a sua consciência moral; penitenciam tais atos de bom grado com a morte, e livres veem findar a aparência daquela vontade, que agora lhes é estranha e gera repugnância. Acerca dessa negação da vontade advinda da grande infelicidade e do desespero em face de qualquer resgate, temos uma distinta e intuitiva exposição feita pelo magnânimo Goethe em sua obra-prima imortal Fausto, exposição esta a meu ver inigualável poeticamente, ou seja, a história do sofrimento de Gretchen. Esta é um perfeito modelo do segundo caminho que conduz à negação da vontade, que não se dá, como no primeiro, pelo simples conhecimento adquirido livremente sobre o sofrimento de um mundo inteiro, mas através da dor excessiva sentida na própria pessoa. Em verdade, muitas tragédias ao fim levam seus heróis, violentamente desejosos, a este ponto de completa resignação, quando então, via de regra, findam simultaneamente a VONTADE DE VIDA e a sua aparência: mas nenhuma exposição por mim conhecida traz diante dos olhos o essencial daquela conversão de maneira tão distinta e purificada de todo supérfluo quanto a mencionada do Fausto. [MVR1: §68]

Na vida real vemos pessoas infelizes que tiveram de amargar grande medida de sofrimento irem de encontro a uma morte vergonhosa, violenta, amiúde uma morte atroz no cadafalso, em completo vigor mental, e também amiúde as vemos convertidas dessa maneira. Não devemos de modo algum assumir que entre o seu caráter e o da maioria dos seres humanos existe uma grande diferença, como parece sugerir a sua sorte, mas temos de atribuir esta última em grande parte às circunstâncias: porém os humanos são culpados e maus em grau considerável. Contudo, vemos muitos dentre eles convertidos da maneira mencionada, após a completa perda de esperança. Mostram agora autêntica bondade e pureza na disposição de caráter, verdadeira aversão pela prática de qualquer ato minimamente mau ou destituído de caridade: perdoam seus inimigos, mesmo aqueles em cujas mãos padeceram inocentemente, e não só com palavras por algum temor hipócrita em face dos juízes do mundo subterrâneo, mas realmente perdoam com íntima seriedade, sem desejarem vingança alguma. Em última instância seu sofrer e morrer tornam-se agradáveis para si, pois a negação da VONTADE DE VIDA entrou em cena: com frequência evitam a salvação oferecida, morrem de bom grado, tranquilos, bem-aventurados. A eles revelou-se no excesso de dor o último mistério da vida, vale dizer, por mais que o padecimento e a maldade, o sofrimento e o ódio, o torturado e o torturador se mostrem diferentes segundo o conhecimento que segue o princípio de razão, em si mesmos são uma coisa só, aparências daquela VONTADE DE VIDA que objetiva seu conflito consigo mesma via principium individuationis: conheceram ambos os lados, a maldade e o padecimento em sua plena intensidade, e, quando notam em última instância a identidade de ambos, rejeitam-nos simultaneamente, negam a VONTADE DE VIDA. Como dissemos, é totalmente indiferente por quais mitos e dogmas esse conhecimento intuitivo, imediato, e essa conversão são transferidos à sua faculdade racional. [MVR1: §68]

Proximidade da morte e falta de esperança não são absolutamente necessárias para semelhante purificação através do sofrimento. Também sem elas e mediante grande desgraça e dor pode o conhecimento da contradição da VONTADE DE VIDA consigo mesma impor-se violentamente a nós, com o que a nulidade de todo esforço é percebida. Por isso com frequência se veem pessoas que levavam uma vida bastante agitada no ímpeto das paixões, reis, heróis, aventureiros, subitamente mudarem, entregando-se à resignação e à penitência, tornando-se eremitas e monges. A essa categoria pertencem todas as histórias genuínas de conversão, por exemplo também a de Raimund Lullius, que, finalmente convidado ao quarto da bela dama por quem tanto tempo se enamorou, lá chega e, já antegozando a satisfação de todos os seus desejos, de repente a vê abrir o corselete para mostrar-lhe o peito corroído por um terrível câncer. Deste momento em diante, como se tivesse visto o inferno, converte-se, abandona a corte do rei de Mallorca e vai penitenciar no deserto. Esta história de conversão é bastante semelhante à do Abade Rancé, que contei brevemente no capítulo 48 do segundo tomo desta obra. Se considerarmos como em ambos os casos a transição do prazer ao horror da vida foi a ocasião para se converterem, então isso nos dá uma explanação do notável fato de que a nação mais mundana, jovial, sensual e alegre da Europa, a França, é aquela na qual foi fundada a de longe mais severa ordem monástica, a dos trapistas, que depois de sua dissolução foi restabelecida por Rancé e, apesar das revoluções, reformas da Igreja e espírito de incredulidade crescente, conserva-se ainda hoje em sua pureza e extrema severidade. [MVR1: §68]

Entretanto, o tipo de conhecimento acima mencionado sobre a índole desta existência pode também de novo esvair-se com o esvaecimento daquilo que o ocasionou, de modo que a VONTADE DE VIDA, e com ela o caráter anterior, pode mais uma vez entrar em cena. Assim se deu com o apaixonado Benvenuto Cellini, que foi pela primeira vez convertido dessa maneira quando estava na prisão e outra vez quando de uma grave doença; contudo, após o sofrimento desaparecer, de novo recaiu no antigo estado. Em geral a negação da VONTADE DE VIDA de modo algum procede do sofrimento com a necessidade com que o efeito procede da causa, mas a vontade permanece livre. Pois aqui é precisamente o único ponto no qual sua liberdade entra em cena imediatamente na aparência; por isso o espanto tão fortemente expresso por Asmus sobre a “conversão transcendental”. Em realidade, para cada sofrimento é possível pensar em uma vontade que o supera em veemência, sendo esta então inconquistável por aquele. Por isso Platão conta no Fedro   que algumas pessoas, até bem antes da sua execução, festejam, bebem, gozam prazeres sexuais, assim afirmando a vida mesmo na morte. Shakespeare   nos apresenta na figura do Cardeal de Beaufort o terrível fim de um facínora que morre cheio de desespero, pois nem sofrimento nem morte podem quebrar a sua vontade veemente, que ia até o extremo da crueldade. [MVR1: §68]

De tudo o que foi dito até agora segue-se que a negação da VONTADE DE VIDA ou, o que é o mesmo, a resignação completa, a santidade, sempre procede do quietivo da vontade, que é o conhecimento do seu conflito interno e da sua nulidade essencial, a expressarem-se no sofrimento de todo vivente. A diferença que expusemos como dois caminhos reside em se o conhecimento advém do simples e puro sofrimento CONHECIDO e livremente adquirido por intermédio da visão que transpassa o principium individuationis, ou do sofrimento SENTIDO imediatamente. Salvação verdadeira, redenção da vida e do sofrimento, é impensável sem a completa negação da vontade. Até então cada um não passa dessa vontade, cuja aparência é uma existência efêmera, um esforço sempre nulo e continuamente malogrado, o mundo tal qual o expusemos como cheio de sofrimento, ao qual todos pertencem irrevogavelmente de maneira igual. Pois encontramos acima que à VONTADE DE VIDA a vida é sempre certa e sua única forma verdadeira é o presente, do qual ela não escapa, por mais que nascimento e morte governem na aparência. Um mito indiano exprime isso quando diz: “eles renascerão”. A grande diferença ética encontrada nos caracteres tem a seguinte significação: o indivíduo mau encontra-se infinitamente distante de atingir o conhecimento a partir do qual provém a negação da vontade e, por conseguinte, é em verdade EFETIVAMENTE preso de todos os tormentos que aparecem na vida como POSSÍVEIS, pois até mesmo o estado atual e feliz de sua pessoa nada é senão uma aparência mediada pelo principium individuationis, ilusão de mãyã, sonho feliz de um mendigo. O sofrimento que na veemência e fúria do seu próprio ímpeto volitivo inflige aos outros é a medida do sofrimento cuja experiência em sua pessoa não quebra a vontade nem a conduz à negação final. Por outro lado, todo amor puro e verdadeiro, sim, até mesmo toda justiça livre, já resulta da visão que transpassa o principium individuationis, a qual, caso entre em cena com sua plena clareza, produz a completa salvação e redenção, cujo fenômeno é o acima descrito estado de resignação, a paz inabalável que o acompanha e a suprema alegria na morte. [MVR1: §68]

Reconhecidamente de tempos em tempos repetem-se casos nos quais o suicídio é estendido às crianças: o pai mata os filhos que tanto ama, e em seguida a si próprio. Se tivermos em mente que a consciência moral, a religião e todos os conceitos tradicionais fazem reconhecer no assassinato o pior crime, porém o pai o comete na hora da própria morte, e em verdade sem ter nessa ocasião motivo egoístico algum, então o ato só pode ser explanado como se segue: a vontade do indivíduo se reconhece imediatamente nas crianças, todavia enredada na ilusão que envolve a aparência como se esta fosse a essência em si e, ademais, profundamente abalado pelo conhecimento da miséria de toda vida, ele acredita que ao suprimir a aparência também suprime a essência mesma; portanto, deseja resgatar-se e aos seus filhos da existência e das suas penúrias. — Ora, um caminho tão errado quanto este corresponde à suposição de que se pode atingir aquele mesmo fim, ao qual se chega pela voluntária castidade, abortando-se os fins da natureza na fecundação, ou até mesmo quando, na consideração do sofrimento inevitável da vida, provoca-se a morte do recém-nascido em vez de fazer todo o possível para assegurar a vida àqueles que são a esta impelidos. Pois se a VONTADE DE VIDA existe como o exclusivo metafísico ou a coisa em si, violência alguma pode quebrá-la, mas tão somente destruir a sua aparência, neste lugar, neste tempo. A Vontade não pode ser suprimida por nada, senão pelo CONHECIMENTO, por isso o único caminho de salvação é este: que a vontade apareça livremente, a fim de nesta aparência CONHECER a sua essência. Só em virtude deste conhecimento pode suprimir a si mesma e assim também pôr fim ao sofrimento inseparável de sua aparência: isso, entretanto, não é possível por violência, como a destruição do embrião, ou a morte do recém-nascido, ou o suicídio. A natureza conduz a vontade à luz porque só na luz a vontade pode encontrar a sua redenção. Eis por que se deve fomentar de todas as formas os fins da natureza, desde que a VONTADE DE VIDA, o seu íntimo, tenha decidido. [MVR1: §69]

Totalmente diferente do suicídio comum parece ser outro bem especial e que talvez ainda não tenha sido suficientemente constatado. Trata-se da morte livremente escolhida por inanição, resultado do mais elevado grau de ascese, cujo aparecimento, todavia, sempre foi acompanhado por diversos delírios religiosos e até mesmo fanatismos e desse modo obscurecido. Parece, no entanto, que a completa negação da vontade pode atingir um grau em que falta até mesmo a vontade necessária para a conservação da vida vegetativa do corpo por ingestão de alimento. Muito longe de resultar da VONTADE DE VIDA, tal tipo de suicídio provém simplesmente de o asceta, já por inteiro resignado, cessar de viver, simplesmente porque cessou por inteiro de querer. Nenhum outro tipo de morte por fome pode no presente contexto ser cogitável, pois a intenção de diminuir o tormento já seria um grau de afirmação da vontade. Os dogmas que preenchem a razão desse penitente espelham a ilusão de que um ser de natureza superior lhe ordenou o jejum ao qual impele sua tendência interior. Antigos exemplos disso podem ser encontrados em Breslauer Sammlung von Natur-und Medicin-Geschichten; em Nouvelles de la république   des lettres, de Bayle; em Zimmermann, Über die Einsamkeit; na Histoire de lacadémie des sciences de 1764, um informe de Houttuyn; o mesmo informe é repetido na Sammlung für praktische Aerz. Relatos ulteriores são encontrados no Journal für praktische Heilkunde; também na Zeitschrift für psychische Aerzte; no Edinburgh medical and surgical Journal. No ano de 1833 todos os jornais noticiaram que o historiador inglês Dr. Lingard morreu de morte livremente escolhida por inanição, no mês de janeiro em Dover. Porém, na maioria desses relatos, os indivíduos são apresentados como loucos e é impossível estabelecer até que ponto foi este de fato o caso. No entanto, quero apresentar um relato mais recente desse tipo de caso, nem que seja apenas para preservar um dos mais raros exemplos de acontecimento surpreendente, extraordinário, da natureza humana, e que, em certa medida, aparentemente pertence ao domínio no qual gostaria de inseri-lo, do contrário dificilmente explanável. Esse recente relato encontra-se no Nürnberger Korrespondent, com os seguintes termos: “Foi reportado de Berna que se achou numa densa floresta perto de Thürnen uma cabana na qual encontrava-se o cadáver decomposto de um homem morto há aproximadamente um mês. Suas roupas davam pouca informação sobre a sua posição social. Havia camisas finas ao seu lado. O objeto mais significativo era uma Bíblia, intercalada com páginas em branco, parcialmente manuscritas pelo morto. Ali anota o dia de sua partida e em seguida diz que fora impelido ao ermo pelo espírito de Deus, a fim de rezar e jejuar. Durante sua jornada já havia jejuado sete dias, em seguida comera de novo. Instalado em sua cabana, iniciou outro jejum por vários dias. Cada dia era agora indicado com um risco, tendo-se encontrado cinco destes, após os quais o peregrino provavelmente morreu. Encontrou-se também uma carta para um clérigo versando sobre um sermão que o morto havia ouvido do mesmo; porém faltava o endereço.” [MVR1: §69]

70. Talvez se pudesse considerar toda a exposição recém-feita sobre o que denominei negação da vontade, inconsistente com a anterior discussão sobre a necessidade que concerne à motivação ou a qualquer outra figura do princípio de razão, em consequência do que os motivos, igual às outras causas, não passam de causas ocasionais em que o caráter desdobra a sua essência e a manifesta com a necessidade de uma lei natural, razão pela qual neguei de forma peremptória a liberdade como liberum arbitrium indifferentiae. Longe de omitir este assunto, relembro-o aqui; em verdade, a liberdade propriamente dita, isto é, a independência do princípio de razão pertence tão somente à vontade como coisa em si, não à sua aparência, cuja forma essencial em toda parte é o princípio de razão, o elemento da necessidade. O único caso no qual aquela liberdade também pode tomar-se imediatamente visível na aparência é aquele em que põe fim ao que aparece; ora, devido ao fato de a mera aparência, o corpo vivo, ser um membro na cadeia: das causas, continuando a existir no tempo, que contém apenas aparências, resulta disso que o corpo entra em contradição com a vontade que se manifesta a si mesma através desta aparência, na medida em que a vontade nega o que a aparência expressa. Num tal caso, por exemplo, os genitais, como visibilidade do impulso sexual, estão ali saudáveis, entretanto no mais íntimo nenhuma satisfação sexual é desejada: o corpo inteiro é apenas expressão visível da VONTADE DE VIDA, e, contudo, os motivos correspondentes à vontade não fazem mais efeito: sim, a dissolução do corpo, o fim do indivíduo e por aí a grande cravação da vontade natural são bem-vindos e desejados. Em realidade, a contradição entre, de um lado, as minhas colocações acerca da necessidade da determinação da vontade por motivos conforme o caráter e, de outro, sobre a possibilidade da completa supressão da vontade quando os motivos tornam-se impotentes, é apenas a repetição na reflexão filosófica da contradição REAL que surge da intervenção imediata da liberdade da vontade em si, que não conhece necessidade alguma, na necessidade da sua aparência. A chave para a solução dessas contradições reside no fato de que o estado no qual o caráter se exime do poder dos motivos não procede imediatamente da vontade, mas de uma forma modificada de conhecimento. Assim, enquanto o conhecimento é envolto no principium individuationis e segue de maneira absoluta o princípio de razão, o poder dos motivos é também irresistível; quando, entretanto, se olha transpassando o principium individuationis, quando as ideias, quando a essência da coisa em si é imediatamente reconhecida como a mesma vontade em tudo e, a partir desse conhecimento, resulta um quietivo universal do querer, então os motivos individuais tornam-se sem efeito porque a forma de conhecimento correspondente a eles é obscurecida e posta em segundo plano por um conhecimento por inteiro diferente. Por isso o caráter nunca pode mudar parcialmente, mas tem de, com a consequência de uma lei natural, realizar como um todo no particular a vontade da qual ele é a aparência: mas precisamente este todo, o caráter mesmo, pode ser completamente suprimido pela antes mencionada modificação do conhecimento. Essa supressão é aquela que surpreende Asmus, como antes foi citado, e que ele descreve como “conversão católica, transcendental”: esta é justamente a que, na Igreja cristã, é muito apropriadamente denominada RENASCIMENTO, e o conhecimento, do qual provém, EFEITO DA GRAÇA. — Portanto não se trata aqui de uma alteração, mas de uma supressão completa do caráter, e, por mais diferentes que tenham sido os caracteres antes de chegarem a essa supressão, eles mostram, no entanto, após ela, uma grande semelhança na maneira de agir, embora cada um deles FALE diferente, de acordo com os seus conceitos e dogmas. [MVR1: §70]

Ora, visto que aquela AUTOSSUPRESSÃO DA VONTADE procede do conhecimento, no entanto todo conhecimento e intelecção como tais são independentes do arbítrio, segue-se que também aquela negação do querer, aquela imersão na liberdade, não é obtida por força de resolução, mas procede da relação mais íntima entre o conhecimento e o querer no ser humano; chega, em consequência, subitamente e como de fora voando. Por isso justamente a Igreja denominou esse acontecimento EFEITO DA GRAÇA: contudo, assim como a Igreja o faz depender da aceitação da graça, assim também o efeito do quietivo é em última instância um ato de liberdade da vontade. Ora, como em consequência de tal efeito da graça toda a essência do ser humano é radicalmente mudada e convertida, de tal forma que ele nada quer do que até então veementemente queria e um novo ser humano substitui o antigo; a Igreja denominou RENASCIMENTO essa consequência do efeito da graça. Pois o que ela chama de homem natural, a quem nega toda capacidade para o bom, é justamente a VONTADE DE VIDA, que tem de ser negada caso a redenção de uma existência como a nossa deva ser alcançada. Em realidade, por trás da nossa existência encrava-se algo outro, só acessível caso nos livremos do mundo. [MVR1: §70]

Em conformidade com tudo o que foi dito, segue-se, que a fonte verdadeira do conceito de liberdade de maneira alguma é essencialmente uma inferência da ideia especulativa de uma causa incondicionada ou de um imperativo categórico que a pressuponha, mas surge imediatamente da consciência, na qual cada um reconhece a si mesmo, sem mais, como VONTADE, isto é, aquilo que, como coisa em si, não tem o princípio de razão por forma, aquilo mesmo que não depende de nada, mas, ao contrário, de que tudo depende; contudo, ao mesmo tempo, cada um não se reconhece, com crítica filosófica e clareza de consciência, como aparência determinada desta vontade já surgida no tempo, ou seja, poder-se-ia assim dizer, como um distinto ato volitivo daquela VONTADE DE VIDA mesma e, por isso, em vez de reconhecer toda sua existência como ato de liberdade própria, ao contrário, antes procura a esta em suas ações particulares. Aqui remeto o leitor ao meu escrito premiado sobre a liberdade da vontade. [MVR1: Apêndice: Crítica da Filosofia Kantiana]

Em vez de tudo isso, o procedimento claro e aberto teria sido partir imediatamente da vontade, reconhecida sem intermediação alguma, e demonstrá-la como o em si da nossa própria aparência, e, após realizar a exposição do caráter empírico e do inteligível, demonstrar como todas as ações, embora tornadas necessárias por motivos, contudo, tanto por seu agente quanto pelo julgador independente, são única, necessária e absolutamente atribuídas ao próprio agente como pura e simplesmente dependentes dele, ao qual culpa e mérito são atribuídos de acordo com o que aconteceu. — Só este seria o caminho direto para o conhecimento daquilo que não é aparência, consequentemente também não é encontrado segundo as leis da aparência, mas é aquilo que se manifesta pela aparência, torna-se cognoscível, objetiva-se, a VONTADE DE VIDA. Em seguida esta teria de ser exposta, meramente por analogia, como o em si de cada aparência. Mas então, decerto, não poderia ser dito que na natureza destituída de vida, sim, na natureza animal mesma, nenhuma outra faculdade é pensável senão a sensivelmente condicionada; o que, na linguagem de Kant  , quer dizer propriamente que a explanação segundo a lei de causalidade também esgotaria a essência mais íntima das aparências, com o que, então, muito inconsequentemente, a coisa em si é neles abolida. — Através das passagens incorretas e da inferência tortuosa nelas feitas, que a exposição da coisa em si recebeu de Kant, também todo o conceito de coisa em si foi falseado. Pois, encontrada pela investigação de uma causa incondicionada, a vontade, ou coisa em si, entra aqui em cena relacionada à aparência como uma causa ao seu efeito. Esta relação, contudo, tem lugar apenas internamente à aparência, portanto já a pressupõe e não pode ligar a aparência com aquilo que reside fora desta e desta é toto genere diferente. [MVR1: Apêndice: Crítica da Filosofia Kantiana]