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Schopenhauer (MVR1): nossa vontade

quinta-feira 25 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

  

Um grau ainda mais elevado do sentimento do sublime pode ser ocasionado pela natureza em agitação tempestuosa: semiescuridão e nuvens trovejantes, ameaçadoras; rochedos escarpados, horríveis na sua ameaça de queda e que vedam o horizonte; rumor dos cursos d água espumosos; ermo completo; lamento do ar passando pelas fendas rochosas. Aí aparece intuitivamente diante dos olhos a nossa dependência, a nossa luta contra a natureza hostil, a NOSSA VONTADE obstada; porém, enquanto as aflições pessoais não se sobrepõem e permanecemos em contemplação estética, é o puro sujeito do conhecer quem mira através daquela luta da natureza, através daquela imagem da vontade obstada, e apreende as ideias de maneira calma, imperturbável, indiferente, precisamente naqueles objetos que são ameaçadores e terríveis para a vontade. Nesse contraste reside o sentimento do sublime. [MVR1: §39]

A demonstrada diferença na maneira como o animal e o ser humano são movimentados mediante motivos exerce ampla influência sobre o ser de ambos e contribui bastante para a profunda e evidente diferença de suas existências. De fato, enquanto o animal é sempre motivado apenas por uma representação intuitiva, o ser humano, ao contrário, esforça-se em excluir completamente esse tipo de motivação, ao procurar determinar-se exclusivamente por motivos abstratos, utilizando assim sua prerrogativa da razão em vista da maior vantagem possível, e, independentemente do presente, não se limita a escolher ou evitar a fruição ou a dor passageiras, mas pondera as consequências de cada uma delas. Na maioria das vezes, tirante as ações inteiramente insignificantes, são os motivos abstratos e pensados que nos determinam, não as impressões do presente. Eis por que toda privação individual e momentânea nos é suportável, enquanto toda renúncia nos é bastante difícil, pois a primeira concerne só ao presente passageiro, enquanto a outra concerne ao futuro e, por conseguinte, contém em si inumeráveis renúncias das quais é a equivalente. Portanto, a causa de nosso sofrimento, bem como de nossa alegria, reside na maioria dos casos não no presente real, mas só em pensamentos abstratos: são estes que amiúde nos são insuportáveis, criam tormentos, em comparação com os quais o sofrimento do mundo animal é bastante pequeno; em realidade, até mesmo nossa dor propriamente física com frequência não é sentida, visto que, até mesmo no caso de sofrimentos espirituais intensos, causamo-nos sofrimentos físicos só para desviar a atenção daqueles: é por isso que nas maiores dores espirituais a pessoa arranca os cabelos, golpeia-se no peito, arranha o rosto, atira-se ao chão: tudo sendo propriamente apenas meios violentos de distração em face de um pensamento de fato insuportável. E justamente porque a dor espiritual, como a mais aguda de todas, torna alguém insensível à dor física, o suicídio é bastante fácil para quem se encontra desesperado ou imerso em desânimo crônico, embora antes, em seu estado confortável, tremesse com tal pensamento. De maneira semelhante, preocupações e paixões, portanto o jogo do pensamento, abalam o corpo muito mais frequente e intensamente que deficiências físicas. Em conformidade com tudo isso, Epicteto   diz com acerto: Perturbant homines non res ipsae, sed de rebus decreta, e Sêneca: Plura sunt, quae nos terrent, quam quae premunt, et saepius opinione quam re laboramus. Também Eulenspiegel satirizava admiravelmente a natureza humana quando subia a montanha rindo e a descia chorando. Amiúde crianças que se feriram choram não devido à dor, mas antes ao pensamento da dor, despertado após nos condoermos delas. Tão grande diferença no agir e na vida deriva da diversidade dos modos animal e humano de conhecimento. Ademais, a entrada em cena do caráter individual distinto e decidido, o que no fundo diferencia o ser humano do animal, é igualmente condicionada pela escolha entre diversos motivos, possível apenas por meio de conceitos abstratos. Pois somente após a escolha ter sido feita é que as daí resultantes diversas decisões dos diversos indivíduos são um signo do caráter individual, diferente em cada um; já o agir animal depende só da presença ou ausência de impressão, pressupondo-se que esta é em geral um motivo para sua espécie. Portanto, exclusivamente no ser humano é a decisão, e não o mero desejo, uma indicação válida de seu caráter, para si mesmo e para os outros. Mas tanto para si mesmo quanto para os outros a decisão só é certa pelo ato. O desejo é simples consequência necessária da impressão presente, de excitação exterior ou de disposição interior passageira, e é, por conseguinte, tão imediatamente necessário e sem ponderação quanto à ação dos animais: por isso, igual à ação animal, o desejo exprime simplesmente o caráter da espécie, não o individual, ou seja, apenas indica o que O HUMANO EM GERAL seria capaz de fazer, não o INDIVÍDUO que sente o desejo. Só o ato — visto que, como ação humana, sempre precisa de certa ponderação e, via de regra, o ser humano é senhor de sua razão, portanto possui clarividência, vale dizer, decide-se conforme motivos abstratos pensados — é a expressão das máximas inteligíveis de sua conduta, o resultado de seu querer mais íntimo, e é como uma letra na palavra que exprime seu caráter empírico, o qual é apenas a manifestação temporal de seu caráter inteligível. Por isso somente atos, não desejos nem pensamentos, pesam na consciência moral de uma mente sadia. Pois apenas os nossos atos são o espelho de NOSSA VONTADE. O tipo de ato antes mencionado, praticado de forma inteiramente imponderada e em verdade desencadeado por afeto cego, é em certa medida um intermediário entre o mero desejo e a decisão: por isso, mediante verdadeiro arrependimento, que se mostra também como ato, pode ser apagado como um risco mal traçado na imagem de NOSSA VONTADE chamada decurso de vida. — Ademais, como comparação especial, seja aqui feita a observação de que a relação entre o desejo e o ato possui uma analogia inteiramente casual, mas exata, com aquela entre a acumulação e a descarga elétricas. [MVR1: §55]

Assim como os acontecimentos sempre ocorrem de acordo com o destino, isto é, de acordo com o encadeamento infindo das causas, assim também nossos atos sempre se dão de acordo com o nosso caráter inteligível: e da mesma forma como não conhecemos de antemão o destino, igualmente não nos é possível uma intelecção a priori do caráter inteligível; só a posteriori, através da experiência, aprendemos a conhecer a nós mesmos e aos outros. Se o caráter inteligível implica que só podemos conceber uma boa decisão após uma longa batalha contra uma má inclinação, esta batalha tem de advir em primeiro lugar e ser esperada. A reflexão sobre a imutabilidade do caráter, sobre a unidade da fonte de onde brotam todos os nossos atos, não nos autoriza a antecipar um ou outro lado na tomada de decisão do caráter: só a resolução definitiva nos fará ver o tipo de pessoa que somos: nossos atos serão um espelho de nós mesmos. Daí se explicam a satisfação ou o peso de consciência com que olhamos retrospectivamente para nosso caminho de vida: os dois não nascem de os atos passados ainda possuírem existência: eles passaram, foram e não são mais; contudo, a grande importância deles para nós deve-se à sua significação, ao fato de serem a expressão do caráter, o espelho da vontade, no qual miramos e reconhecemos o nosso si mesmo, o núcleo de NOSSA VONTADE. Ora, como não temos a experiência disso de antemão, mas só depois, ocorre de nos esforçarmos e lutarmos no tempo simplesmente para que a imagem produzida por nossos atos apareça de tal maneira que sua visão nos acalme o máximo possível, em vez de nos pesar na consciência. Mas, como dito, a significação de semelhante calma ou pesar será investigada mais adiante. Aqui, entretanto, cabe a seguinte consideração. [MVR1: §55]

Ao lado do caráter inteligível e do empírico deve-se ainda mencionar um terceiro, diferente dos dois anteriores, a saber, o CARÁTER ADQUIRIDO, que se obtém na vida pelo comércio com o mundo e ao qual é feita referência quando se elogia uma pessoa por ter caráter ou se a censura por não o ter. — Talvez se pudesse naturalmente supor que, como o caráter empírico, enquanto aparência do inteligível, é inalterável e, tanto quanto qualquer fenômeno natural, é em si consequente, o ser humano também sempre teria de aparecer de maneira consequente igual a si mesmo, com o que não seria necessário adquirir artificialmente por experiência e reflexão um caráter. Mas não é o caso. Embora sempre sejamos as mesmas pessoas, nem sempre nos compreendemos; amiúde nos desconhecemos, até que, em certo grau, adquirimos o autoconhecimento. O caráter empírico, como simples impulso natural, é em si arracional: sim, sua exteriorização é perturbada pela razão, e tanto mais quanto mais alguém possui maior clarividência e força de pensamento, a fazerem pairar diante de si aquilo que diz respeito AO SER HUMANO EM GERAL, como caráter da espécie, tanto em termos de desejo quanto de realizações. No entanto, dessa maneira torna-se difícil a intelecção daquilo que, devido à individualidade, uma pessoa quer e pode em meio a tantas coisas. Dentro de si encontra disposições para todas as diferentes aspirações e habilidades humanas; contudo, os diferentes graus destas na própria individualidade não se tornam claros sem o concurso da experiência: e se a pessoa segue apenas as aspirações que são conformes ao seu caráter, sente, em certos momentos e disposições particulares, o estímulo para aspirações exatamente contrárias as primeiras, e assim incompatíveis com aquelas: ora, se quiser seguir aquelas primeiras sem incômodo, estas últimas têm de ser completamente refreadas. Pois assim como nosso caminho físico sobre a Terra não passa de uma linha, em vez de uma superfície, assim também, na vida, caso queiramos alcançar e possuir uma coisa, temos de renunciar e abandonar à esquerda e à direita inumeráveis outras. Se não podemos nos decidir a fazer isso, mas, igual a crianças no parque de diversões, estendemos a mão a tudo o que excita e aparece à nossa frente, então esta é a tentativa perversa para transformar a linha do nosso caminho numa superfície: andamos em zigue-zague, ao sabor dos ventos, sem chegar a lugar algum. — Ou, para usar outra comparação: assim como, de acordo com a doutrina do direito de Hobbes  , todos têm originariamente um direito a todas as coisas, mas a nada em exclusivo, e no entanto se pode obter o direito exclusivo a coisas individuais renunciando-se ao direito a todas as demais, enquanto os outros fazem o mesmo em relação ao que escolheram; exatamente assim também se passa na vida, quando só podemos seguir com seriedade e sucesso alguma aspiração determinada, seja por prazer, honra, riqueza, ciência, arte ou virtude, após descartarmos todas as aspirações que lhe são estranhas, renunciando a tudo o mais. Para isso o mero querer e a mera habilidade em fazer algo não são suficientes em si mesmos, mas um ser humano também precisa SABER o que quer e SABER o que pode fazer: tão somente assim mostrará caráter, para então poder consumar algo consistente. Antes que chegue a este ponto, apesar da consequência natural do caráter empírico, ainda é sem caráter; e, embora no todo permaneça fiel a si e tenha e siga o próprio caminho guiado por seu demônio interior, descreverá não uma linha reta, mas sim uma torta e desigual, hesitando, vagueando, voltando atrás, cultivando para si arrependimento e dor: tudo porque nas grandes e pequenas coisas vê diante de si o quanto é possível e alcançável pelo ser humano em geral, sem saber todavia qual parte de tudo isso é conforme à sua natureza e realizável apenas por si, sim, fruível apenas por si. Dessa forma, a muitos invejará em virtude de posição e condição que, no entanto, convêm exclusivamente ao caráter deles, não ao seu, e nas quais se sentiria antes infeliz, até mesmo sem as conseguir suportar. Pois assim como o peixe só se sente bem na água, o pássaro no ar, a toupeira debaixo da terra, todo ser humano só se sente bem na sua atmosfera apropriada; do mesmo modo, por exemplo, o ar da corte não é respirável por todos. Por falta de intelecção suficiente nessa ordem das coisas, muitos fazem os mais diversos e fracassados tipos de tentativa, violam o próprio caráter no particular e ainda têm de se render novamente a ele no todo: aquilo que conseguem tão penosamente contra a própria natureza não lhes dá prazer algum; o que assim aprendem permanece morto; até mesmo do ponto de vista ético, um ato demasiado nobre para o seu caráter e nascido não de um impulso puro, imediato, mas de um conceito, de um dogma, perderá todo mérito até mesmo aos seus olhos num posterior arrependimento egoístico. Velle non discitur. Assim como só pela experiência nos tornamos cônscios da inflexibilidade do caráter alheio e até então acreditávamos de modo pueril poder através de representações abstratas, pedidos e súplicas, exemplos e nobreza de caráter, fazê-la abandonar seu caminho, mudar seu modo de agir, renunciar ao seu modo de pensar, ou até mesmo ampliar suas capacidades; assim também se passa conosco. Temos primeiro de aprender pela experiência o que queremos e o que podemos fazer: pois até então não o sabemos, somos sem caráter, e muitas vezes, por meio de duros golpes exteriores, temos de retroceder em nosso caminho. — Mas se finalmente aprendemos, então alcançamos o que no mundo se chama caráter, o CARÁTER ADQUIRIDO. Este nada mais é senão o conhecimento mais acabado possível da própria individualidade: trata-se do saber abstrato e distinto das qualidades invariáveis do nosso caráter empírico, bem como da medida e direção das nossas faculdades espirituais e corporais, logo, trata-se de saber dos pontos fortes e fracos da nossa individualidade. Isso nos coloca na condição de agora guiar, com clarividência e metodicamente, o papel para sempre invariável de nossa pessoa, que antes naturalizávamos sem regra, e preencher, segundo a instrução de conceitos fixos, as lacunas abertas por humores e fraquezas. O modo de agir necessário e conforme a nossa natureza individual foi doravante trazido à consciência, em máximas distintas e sempre presentes, segundo as quais nos conduziremos de maneira tão clarividente como se fôramos educados sem erro provocado pelos influxos passageiros da disposição, ou da impressão do momento presente, sem a atrapalhação da amargura ou doçura de uma miudeza encontrada no meio do caminho, sem hesitação, sem vacilas, sem inconsequências. Não mais, feito noviços, vamos esperar, ensaiar, tatear para ver o que de fato queremos e o que estamos aptos a fazer, mas já o sabemos de uma vez por todas e temos apenas de em cada escolha aplicar princípios universais em casos particulares, para assim rápido tomar a decisão. Conhecemos NOSSA VONTADE em geral e não nos permitimos ser seduzidos por disposições ou exigências exteriores em vista de decidir no particular o que iria contrariar a vontade em geral. Conhecemos, portanto, o gênero e a medida de nossos poderes e fraquezas, economizando assim muita dor. Pois, propriamente dizendo, nenhum prazer é comparável ao do uso e sentimento das próprias faculdades, e a dor suprema é a carência percebida de faculdades lá onde são necessárias. [MVR1: §55]