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Schopenhauer (MVR1): negação da vontade

quinta-feira 25 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

  

No encadeamento do nosso modo de consideração encontramos como conteúdo da noção de INJUSTIÇA aquela índole da conduta de um indivíduo na qual este estende tão longe a afirmação da vontade que aparece em seu corpo que ela vai até a NEGAÇÃO DA VONTADE que aparece num corpo alheio. Também indicamos em exemplos bastante gerais o limite onde começa o domínio da injustiça, ao determinar, ao mesmo tempo, suas gradações desde os mais elevados graus até os mais baixos, por meio de alguns conceitos elementares. Em conformidade com tudo o que foi dito, o conceito de INJUSTIÇA é originário e positivo: o oposto a ele, o de JUSTIÇA, é derivado e negativo. Temos assim de ater-nos não às palavras, mas aos conceitos. Noutros termos, jamais se falaria de JUSTIÇA se não houvesse injustiça. O conceito de JUSTIÇA contém meramente a negação da injustiça: a ele será subsumida toda ação que não ultrapasse o limite acima exposto, vale dizer, não seja NEGAÇÃO DA VONTADE alheia em favor da mais forte afirmação da própria vontade. O referido limite recorta, conseguintemente, em referência a uma simples e pura determinação MORAL, todo o domínio das possíveis ações em injustas ou justas. Desde que uma ação, na maneira acima descrita, não invada a esfera de afirmação alheia da vontade, negando a esta, ela não é injusta. Por isso, a recusa em ajudar alguém numa situação urgente de necessidade, ou considerar com calma a morte alheia por inanição em meio ao próprio excedente, de fato são atitudes cruéis e satânicas, porém não injustas: todavia, e isso pode-se dizer com plena segurança, quem é capaz de levar a insensibilidade e a dureza de coração a um tal ponto decerto será capaz de praticar qualquer injustiça tão logo seus desejos o exijam e nenhuma coerção os impeça. [MVR1: §62]

Do exposto acima segue-se que o BOM, segundo o seu conceito, é algo referente a algo, portanto todo bom é essencialmente relativo, pois tem sua essência apenas em relação a uma vontade cobiçosa. Dessa forma, BOM ABSOLUTO é uma contradição: bom supremo, summum bonum significa a mesma coisa, indicando uma satisfação final da vontade além da qual nenhum novo querer apareceria, noutros termos, um último motivo cujo alcançamento proporcionaria um contentamento indelével da vontade. Mas, segundo nossa atual consideração neste último livro, tal ordem das coisas é impensável. É tão impossível a vontade deixar de querer de novo através de uma satisfação quanto é o tempo começar ou findar. Inexiste para a vontade um preenchimento duradouro que gere uma perfeita e permanente satisfação dos seus apetites. É como o tonel das Danaides: não há bom supremo algum, bom absoluto algum para a vontade, mas sempre apenas um bom temporário. Todavia, caso queiramos conferir uma posição honorífica ou, por assim dizer, emérita a uma antiga expressão que não gostaríamos de deixar por completo em desuso, podemos, metafórica e figurativamente, chamar a total autossupressão e NEGAÇÃO DA VONTADE, sua verdadeira ausência, unicamente o que acalma e cessa o ímpeto da vontade para todo o sempre e que exclusivamente proporciona o contentamento que jamais pode ser de novo perturbado, a verdadeira redenção do mundo e que logo mais adiante trataremos na conclusão de todo o nosso pensamento — podemos chamar essa total autossupressão e NEGAÇÃO DA VONTADE de bom absoluto, summum bonum, e vê-la como o único e radical meio de cura da doença contra a qual todos os outros meios são simples paliativos, meros anódinos. Nesse sentido o termo grego e a expressão latina finis bonorum correspondem melhor ao que estamos discutindo. É o suficiente sobre as palavras BOM e MAU; agora passemos à matéria mesma. [MVR1: §65]

Se as obras oriundas de motivos e resoluções ponderadas fossem aquelas que conduzissem à bem-aventurança, então a virtude, de qualquer ângulo que se a observasse, nada seria senão um egoísmo prudente, metódico, perspicaz. — Porém, a fé com a qual a Igreja cristã promete a salvação é esta: assim como todos nós, através do pecado original do primeiro humano, participamos do pecado e estamos destinados à morte e à perdição, assim também só pela graça e pelo divino mediador que assume a nossa culpa é que podemos ser redimidos, e isso, em realidade, sem mérito algum nosso da pessoa, pois o que pode provir do ato intencional das pessoas determinado por motivos, ou seja, as suas obras, jamais pode por sua natureza mesma nos justificar, precisamente porque é um ato INTENCIONAL, produzido por motivos, portanto opus operatum. Essa fé, portanto, implica que o nosso estado originário é essencialmente sem salvação, em relação ao qual, portanto, precisamos de REDENÇÃO; nós mesmos pertencemos em essência ao que é mau e somos tão firmemente atados ao mau que nossas obras, segundo lei e prescrição, isto é, conforme motivos, jamais podem satisfazer suficientemente à justiça nem nos redimir, mas a redenção só pode ser ganha por meio da fé, isto é, por um modo de conhecimento convertido; e essa fé mesma só pode dar-se mediante a graça, portanto, como que chega de fora: isso significa que a salvação é algo completamente alheio à nossa pessoa e aponta para uma negação e supressão necessária à salvação dessa pessoa. As obras e a observância das leis enquanto tais nunca podem justificar, porque sempre são um agir a partir de motivos. LUTERO observa em De libertate christiana que, após a fé ter entrado em cena, as boas obras seguem-se naturalmente da fé, como se fossem seus sintomas, seus frutos; certamente não como obras que em si mesmo visem à vantagem, à justificação, à recompensa, mas realizam-se de maneira completamente espontânea e gratuita. — Assim, vimos que, pela visão cada vez mais límpida que transpassa o principium individuationis, primeiro resultam a justiça espontânea, em seguida o amor que vai até a supressão completa do egoísmo, por fim a resignação ou NEGAÇÃO DA VONTADE. Recorri aqui aos dogmas da religião cristã, eles mesmos estranhos à filosofia, apenas para mostrar que a ética oriunda da nossa consideração, que é coerente e concordante com todas as partes desta, embora nova e surpreendente em sua expressão, de modo algum o é em sua essência; ao contrário, concorda totalmente com todos os dogmas propriamente cristãos e no essencial já se achava nestes; também concorda com a mesma exatidão com as doutrinas e os preceitos éticos que foram expostos de forma bem diferente nos livros sagrados da Índia. Ao mesmo tempo, a recordação dos dogmas da Igreja cristã serve para esclarecer e elucidar a aparente contradição entre, de um lado, a necessidade de todas as exteriorizações do caráter quando os motivos são dados, e, de outro, a liberdade que a vontade em si tem para negar-se e, assim, suprimir o caráter e toda a necessidade dos motivos baseada no caráter. [MVR1: §70]

Se, todavia, insistíssemos absolutamente em adquirir algum conhecimento positivo daquilo que a filosofia só pode exprimir negativamente como NEGAÇÃO DA VONTADE, nada nos restaria senão a remissão ao estado experimentado por todos aqueles que atingiram a perfeita NEGAÇÃO DA VONTADE e que se cataloga com os termos êxtase, enlevamento, iluminação, união com Deus etc. Tal estado, porém, não é para ser denominado propriamente conhecimento, porque ele não possui mais a forma de sujeito e objeto, e só é acessível àquele que teve a experiência, não podendo ser ulteriormente comunicado. [MVR1: §71]