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Fernandes (SH:26-27) – as ideias fundamentais da Ética

sexta-feira 4 de maio de 2018, por Cardoso de Castro

  

Quais são as ideias fundamentais da Ética disciplinar? Não da "ética" descritiva, o que é uma contradição em termos, pois seria o tomar o normativo com factual. Tampouco da "ética" prudencial, interesseira: "Se quiseres isto, então faça aquilo". Menos ainda da ética "normativa", enquanto pretensão de conhecimento, digamos substantivo, de "valores" éticos determinados. Estes, na verdade, têm muito em comum com aqueles outros "valores" que, em certos lugares públicos onde há escaninhos para guardarmos nossos pertences, deveríamos, por prudência, levar conosco: -favor não deixar valores nos armários". Ou aqueles sobre os quais nos perguntam inspetores, nas barreiras, referindo-se a dinheiro, joias, ou outros objetos de alguma "liquidez": "contém valores?"; -o sr. porta valores?". Eis o Bem, reduzido aos bens.

Quais são as ideias fundamentais? Uma delas, sem dúvida, é naturalista, e relaciona-se justamente aos bens, às "utilidades". Sua origem está em Aristóteles, o único dos grandes filósofos gregos para quem a Ética podia, efetivamente, ser deste mundo, ou "mundana". A Ética aristotélica, apesar de ter atirado a contemplação intelectual para as alturas, é naturalista, relativista e prudencial. Na verdade, aproxima-se do hedonismo, que mergulha o Bem na natureza e, assim como o emotivismo, seria melhor tratado pela Psicologia e as ciências humanas e sociais, senão pela Sociobiologia.

O utilitarismo reduz a Ética a uma justiça cuja balança é concebida na horizontal. Sua posição, em qualquer de suas formas — inclusive as complicadíssimas formas contemporâneas, que nos lembram uma superposição ad hoc de epiciclos ptolomaicos — pertence mais propriamente, se é que pertence à Filosofia, à Filosofia do Direito. Mais próximo do cerne da questão estaria conceber a balança na vertical, um prato na terra, pesando nossas obras, e outro no céu, de onde nos vem a Graça. Mas talvez isto seja assunto para teólogos, ou filósofos da religião?

É nosso mau hábito (mau caráter) só conceber a balança da justiça na horizontal. Mas como poderia a justiça ser quantitativa? Se uma senhora, possuidora de grande quantidade de virtudes, acumuladas a vida inteira, ao saber que seu marido, que só possuíra virtudes em quantidades mínimas, reconciliara-se com Deus à hora da morte e fora para o Céu, ficasse furiosa e clamasse por justiça, ela certamente iria para o Inferno. Se um de meus alunos, recebendo de mim a nota máxima, ao saber que um colega que pouco trabalhou também a recebera, ficasse furioso e clamasse a mim por justiça, que faria? Responda o leitor, se for, como eu, professor. Pessoas "de caráter", convenhamos, estão sempre na defensiva, ofendem-se facilmente, não compreendem a parábola do Filho Pródigo, e tomam-se e a Deus como agentes de atribuição, distribuição e retribuição de justiça. Não entendem que quem dá é que está em "estado de gratidão", se a mão esquerda ignora o que fez a direita.

Onde procurar as ideias fundamentais da Ética? Se não pode ser no jardim de Epicuro   (ataraxia), nem no deserto dos estoicos (apatheia), poderíamos encontrá-las na Meta-ética? Mas a Meta-ética tem sido muito frequentemente reduzida a uma forma ou outra de "ascensão semântica", ou seja, a um modo de fugir do assunto. Que diríamos então de uma fenomenologia do ato de valorar [1], ou talvez de uma ontologia "negativa" dos valores? Esse tipo de reflexão tem-nos levado a impasses. Como podemos ao mesmo tempo ser criadores de valores e ter deles um conhecimento, ou uma intuição? Como podem valores criados por nós constranger-nos a vontade, tornando-a "racional"? Como pode a criatura obrigar o criador, sem aliená-lo? Como é possível conceber a autonomia? Kant   propôs que só um "fim" em si, que não servisse de meio para outro fim, poderia mover a razão, se esta fosse prática. Difícil de entender, pois seria um fim em si ainda um fim, um fim a atingir? Ou, nesse caso, todos os meios é que seriam fins? Que me perdoe o leitor uma equivocação deliberada sobre os sentidos de "razão": Havendo uma correspondência exata entre nossas razões para agir e as consequências que esperamos, como pode uma "razão prática", em toda a sua pureza, não podendo corresponder a uma consequência esperada, ser ainda uma razão para fazermos o que quer que seja?


Ver online : Sergio L. C. Fernandes


[1FERNANDES, Foundations of Objective Logic. London: Reidel, 1985, 6.3.2., p. 244 segs.