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Hegel: Um homem eticamente virtuoso não é já por si mesmo moral

domingo 5 de janeiro de 2020, por Cardoso de Castro

  

Observemos mais atentamente o ponto de vista da moral como hoje no melhor sentido da palavra podemos tomá-lo e logo veremos que seu conceito não coincide imediatamente com o que antes se denominava em geral de virtude, eticidade, honradez e assim por diante. Um homem eticamente virtuoso não é já por si mesmo moral. Pois à moral pertence a reflexão e a consciência determinada sobre o que é conforme ao dever e ao agir a partir desta tomada de consciência prévia. O dever mesmo é a lei da vontade que o homem estabelece livremente a partir de si, e ele deve decidir-se segundo este dever em vista do dever e de seu cumprimento, na medida em que somente faz o bem porque adquiriu a certeza de que isso é o bem. Mas esta lei, este dever que é escolhido e seguido como norma pelo dever a partir de uma certeza livre e consciência interior, é para si a universalidade abstrata da vontade, que possui sua contraposição direta na natureza, nos impulsos sensíveis, nos interesses egoístas, nas paixões e em tudo que, em resumo, se denomina ânimo e coração. Nesta contraposição, um lado é tratado de tal modo que anula [alfhebt] o outro, e dado que os dois estão presentes no sujeito como opostos, este possui a possibilidade de a partir de si decidir seguir um ou outro. Mas tal decisão e ação decorrente desta decisão somente serão morais segundo este ponto de vista quando, por um lado, emanarem da livre certeza do dever e, por outro lado, da vitória não apenas sobre a vontade particular, os impulsos naturais, as inclinações, as paixões e assim por diante, mas também sobre os sentimentos [Gefühle] nobres e impulsos superiores. Pois a moderna concepção moral parte da firme contraposição da vontade em sua universalidade espiritual e em sua particularidade sensível natural e não consiste na mediação completa destes lados opostos, mas numa luta mútua de opostos que traz consigo a exigência de que os impulsos em sua disputa com o dever se afastem dele.

Esta contraposição não surge, pois, apenas para a consciência no âmbito limitado da ação moral, mas se distingue como uma cisão e oposição radicais do que é em si e para si e do que é realidade exterior e existência. Tomada de modo totalmente abstrato, trata-se da contraposição do universal, que é fixado para si contra o particular do mesmo modo como este, por seu lado, é fixado contra o universal; mais concretamente, ela aparece na natureza como contraposição da lei abstrata e da plenitude dos fenômenos singulares, para si também peculiares. No espírito ela se mostra no que é sensível e espiritual no homem, como a luta do espírito contra a carne; do dever pelo dever, da lei fria com o interesse particular, o ânimo caloroso, as inclinações e propensões sensíveis e o individual em geral; como a dura contraposição entre a liberdade interior e a necessidade da natureza exterior; além disso, como a contradição entre o conceito morto, em si mesmo vazio, e a vitalidade completa e concreta, entre a teoria, o pensamento subjetivo e a existência objetiva e a experiência.

Estas são contraposições que não foram inventadas pela argúcia da reflexão ou pelo parecer escolar da filosofia, mas desde antigamente ocuparam e inquietaram de Forma variada a consciência humana. mesmo que tenham sido apenas apresentadas de modo mais claro pela formação recente e tenham sido por ela elevadas ao topo da mais dura contradição. A formação espiritual, o entendimento moderno produz no homem esta contraposição que o torna anfíbio, pois ele precisa viver em dois mundos que se contradizem, de tal sorte que a consciência, nesta contradição, também se dirige para lá e para cá e, jogada de um lado para o outro, é incapaz de satisfazer-se por si tanto num quanto noutro lado. Pois, por um lado, vemos o homem aprisionado na efetividade comum e na temporalidade terrena, oprimido pela carência e miséria, importunado pela natureza, sufocado na matéria, nos fins sensíveis e seu prazer, dominado e arrebatado por impulsos naturais e paixões; por outro lado, ele se ergue para as ideias eternas, para um reino do pensamento e da liberdade, fornece para si enquanto vontade leis universais e determinações, despe o mundo de sua efetividade viva e florescente e o redime em abstrações, na medida em que o espírito reivindica seu direito e sua dignidade na ilegitimidade e na sevícia da natureza, a quem devolve a miséria e violência que dela experimentou. Mas mediante esta discrepância entre a vida e a consciência apresenta-se para a formação moderna e seu entendimento a exigência de que tal contradição se solucione. O entendimento, contudo, não consegue separar-se da solidez das contraposições; a solução para a consciência permanece, por isso, num mero dever [Sollen] e o presente e a efetividade se movimentam apenas na inquieta oscilação entre duas alternativas, na busca de uma reconciliação sem encontrá-la. Surge então a questão se tal contraposição, penetrante e universal, que não consegue ultrapassar o mero dever [Sollen] e o postulado da solução, é o verdadeiro em si e para si e o supremo fim último em geral. Se a formação universal incorreu em tal contradição, torna-se tarefa da filosofia superar estas contraposições, isto é, mostrar que nem um em sua abstração nem outro em idêntica unilateralidade possuem a verdade, mas ambos se solucionam por si; a verdade está apenas na reconciliação e mediação de ambos e esta mediação não é uma mera exigência, mas o que em si e para si está realizado [Vollbrachte] e o que constantemente se realiza [Vollbringende]. Este conhecimento coincide imediatamente com a crença e volição espontâneos, que justamente tem constantemente esta contraposição solucionada na representação e a estabelecem e realizam para si como finalidade na ação. A filosofia apenas fornece o conhecimento pensante da essência da contraposição, na medida em que mostra que a verdade é apenas sua solução e, na verdade. não no sentido de que a contraposição e seus lados não estão na reconciliação, mas que estão nela.


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