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Groddeck: o ser humano é vivido pelo Isso

sábado 9 de maio de 2020, por Cardoso de Castro

  

Coelho Netto

Acredito que o homem é vivido por algo desconhecido. Existe nele um “Isso”, uma espécie de fenômeno que comanda tudo que ele faz e tudo que lhe acontece. A frase “Eu vivo...” é verdadeira apenas em parte; ela expressa apenas uma pequena parte dessa verdade fundamental: o ser humano é vivido pelo Isso. É desse Isso que falarei em minhas cartas. Você concorda?

Mais uma coisa. Desse Isso conhecemos apenas aquilo que está em nosso consciente. A maior parte dele — e de longe a maior parte! - constitui um setor em princípio inacessível. Mas é possível ampliar os limites de nosso consciente através da ciência e do trabalho e com [10] isso penetrar profundamente no inconsciente quando nos decidirmos não mais a “saber” porém a “imaginar”. Coragem, meu belo Doutor Fausto! A capa já está pronta para voar! A caminho, na direção do inconsciente.. .

Não é surpreendente que não consigamos recordar nada de nossos três primeiros anos de vida? Um ou outro de nós arranha aqui e ali uma fraca recordação de um rosto, de uma porta, de um papel colorido que acredita ter visto na infância. Mas ainda não consegui encontrar alguém que se lembrasse de seus primeiros passos, da maneira como aprendeu a falar, comer, ver, ouvir. E no entanto, cada uma dessas coisas é um verdadeiro acontecimento. Acredito que a criança que começa a andar pela primeira vez através de seu quarto experimenta sensações muito mais profundas do que um adulto durante uma viagem à Itália. Posso facilmente imaginar que a criança que de repente reconhece sua mãe nesse ser que lhe sorri amorosamente se sente muito mais profundamente emocionada do que o homem que vê sua bem-amada atravessar pela primeira vez os umbrais de sua casa. Por que esquecemos tudo isso?

Havería muito a dizer a respeito. Mas antes de responder, vamos começar eliminando uma primeira objeção: a pergunta está mal formulada. Não nos esquecemos desses três primeiros anos; o que acontece é que a lembrança deles sai de nosso consciente e continua a viver no inconsciente, permanecendo ali de modo tão vivo que tudo o que fazemos decorre desse tesouro de recordações inconscientes: caminhamos do mesmo modo como aprendemos a caminhar naquele momento, comemos, falamos, sentimos do mesmo modo como o fizemos então. Assim, há recordações que são empurradas para fora pelo consciente, embora sejam de vital importância, e que, por serem indispensáveis, são conservadas em regiões de nosso ser que batizamos com o nome de inconsciente. Mas por que o consciente se esquece de experiências sem as quais o ser humano não conseguiría sobreviver?

Posso deixar essa pergunta sem resposta? Serei obrigado a voltar a ela outras vezes. No momento, e sendo você mulher, prefiro que você me diga por que as mães são tão mal informadas a respeito de seus próprios filhos, por que também elas esquecem a parte mais essencial desses três anos? Talvez elas apenas finjam esquecer. A menos que, também nelas, o essencial não chegue igualmente ao consciente.

Você vai se aborrecer porque estou outra vez fazendo pouco das mães. Mas que posso fazer? Essa nostalgia é uma coisa que vive dentro de mim. Quando estou triste, meu coração invoca a mãe e não a encontra. Devo odiar Deus e o Universo por causa disso? Mais vale rir de si mesmo, desse estado de infantilismo do qual nunca conseguimos sair. Pois raramente alguém se torna adulto e, mesmo assim, apenas superficialmente. Brincamos de adulto assim como uma criança brinca de ser uma pessoa crescida. Para o Isso, não existe uma idade para as coisas e o Isso é nossa própria vida. Examine o ser humano no momento de suas dores mais profundas, de suas alegrias mais intensas: seu rosto se torna infantil, seus movimentos também; sua voz se torna mais flexível, o coração bate como se fosse o de uma criança, os olhos [11] brilham ou se enchem de lágrimas. Claro, procuramos esconder tudo isso, mas todas essas reações nem por isso deixam de ser visíveis, e as percebemos sem nos determos nelas porque não distinguimos em nós mesmos esses pequenos sinais, que tanto dizem; e por isso, não os descobrimos nos outros. A gente deixa de chorar quando se torna adulta? É sem dúvida porque isso não faz parte dos hábitos, porque algum idiota baniu as lágrimas da moda. O fato de Aires ter gritado como dez mil homens quando foi ferido sempre foi para mim uma coisa agradável. E o fato de Aquiles ter chorado por Patrocles só o rebaixa aos olhos dos gloriosos. Somos uns hipócritas, essa é a verdade. Não nos atrevemos nem mesmo a rir de modo franco. Mas isso não impede, quando não sabemos alguma coisa, que pareçamos alunos pilhados em flagrante, que assumamos a mesma expressão de angústia de nossa infância, que pequenos detalhes em nosso modo de andar, dormir, falar, nos acompanhem por toda a vida, de modo que os que quiserem vê-los podem dizer: “Olha só, uma criança!” Preste atenção numa pessoa que acha que está sozinha: a criança que existe nela logo aparece, às vezes de modo cômico: ela boceja, coça a cabeça, ou a bunda, enfia o dedo no nariz e — vamos falar a verdade — até peida. Mesmo as senhoras mais distintas peidam. Ou então preste atenção em pessoas completamente absorvidas numa ação qualquer, mergulhadas em meditação, ou então amantes, doentes, velhos; todos, de um modo ou de outro, dão sinais de infantilismo.

Quando se tenta pôr um pouco de ordem nisso tudo, a vida surge como um baile à fantasia durante o qual a gente se disfarça talvez umas dez, doze, cem vezes. Mas na verdade a gente cai no baile tal como é; debaixo da fantasia e no meio daquelas máscaras, a gente continua a ser o que é, e sai do baile do mesmo jeito que entrou nele. Na vida, a gente começa sendo criança e atravessa a idade adulta através de mil caminhos que levam todos a um mesmo ponto: a volta ao estado infantil. A única diferença entre as pessoas é que elas voltam à infância ou tornam-se pueris.

Esse fenômeno, essa coisa que existe em nós, e que se manifesta conforme lhe parece melhor em todos os níveis das idades, pode ser observado também na criança. É notório o fato de que o rosto de um recém-nascido se parece com o de um velho, e isso deu origem a vários comentários. Ande pelas ruas e observe as menininhas de três ou quatro anos — a coisa é mais evidente nelas do que nos meninos, e deve haver uma boa razão para isso —, você verá como elas agem do mesmo modo que suas mães. E todas elas, e não por acaso, se mostram particularmente marcadas pela vida; não é bem isso, é que todas elas têm, num momento ou outro, essa curiosa expressão de velhice. Uma tem a boca torta de uma mulher amarga, outra tem lábios que revelam seu gosto pelos mexericos; numa outra surgem os traços de uma velha e, noutra ainda, uma coquette. E não acontece muitas vezes de descobrirmos uma. verdadeira mãe numa menininha de fraldas? Não se trata apenas de uma questão de mimetismo, é o Isso que se manifesta. Às vezes ele prevalece sobre a idade e decide da roupa que se vai usar hoje ou amanhã.

Jumel

Je pense que l’homme est vécu par quelque chose d’inconnu. Il existe en lui un « Ça », une sorte de phénomène qui préside à tout ce qu’il fait à tout ce qui lui arrive. La phrase « Je vis… » n’est vraie que conditionnellement ; elle n’exprime qu’une petite partie de cette vérité fondamentale : l’être humain est vécu par le Ça. C’est de ce Ça que traitent mes lettres. Êtes-vous d’accord ?

Encore un mot. Nous ne connassons de ce Ça que ce qui s’en trouve dans notre conscient. La plus grande partie — et de loin ! — est un domaine en principe inaccessible. Mais il nous est possible d’élargir les limites de notre conscient par la science et le travail et de pénétrer profondément dans l’inconscient quand nous nous résolvons non plus à « savoir », mais à « imaginer ». Hardi, mon beau docteur Faust ! Le manteau est prêt pour l’envol ! En route pour l’inconscient…

N’est-il pas étonnant que nous ne nous remémorions plus rien de nos trois premières années de vie ? L’un ou l’autre d’entre nous glane çà et là le faible souvenir d’un visage, d’une porte, d’un papier de tenture qu’il croit avoir vu dans sa petite enfance. Mais je n’ai encore rencontré personne qui se rappelât ses premiers pas, la manière dont il a appris à parler, à manger, à voir, à entendre. Et pourtant, ce sont là de véritables événements. Je croirais volontiers que l’enfant qui s’élance pour la première fois à travers sa chambre éprouve des impressions plus profondes qu’un adulte pendant un voyage en Italie. Je me figure sans peine que l’enfant reconnaissant soudain sa mère dans cet être qui lui sourit tendrement en est plus profondément ému que l’homme qui voit sa bien-aimée franchir pour la première fois le seuil de sa porte. Pourquoi oublions-nous tout cela ?

A cela, il y aurait beaucoup à dire. Mais avant de répondre, commençons par éliminer une première objection : la question est mal posée. Nous n’oublions pas ces trois premières années ; leur souvenir ne fait que quitter notre conscient, il continue à vivre dans l’inconscient, y reste si vivace que tout ce que nous faisons découle de ce trésor de réminiscences inconscientes : nous marchons comme nous avons appris à la faire à cette époque, nous mangeons, nous parlons, nous ressentons de la même manière qu’alors. Il existe donc des souvenirs qui sont repoussés par le conscient, bien qu’ils soient d’une importance vitale et qui, parce qu’ils sont indispensables, sont conservés dans des régions de notre être que l’on a baptisées du nom d’inconscient. Mais pourquoi le conscient oublie-t-il des expériences sans lesquelles l’être humain ne pourrait pas subsister ?

Puis-je laisser cette question sans réponse ? Je serai encore souvent obligé d’y revenir. Mais pour l’instant et puisque vous êtes une femme, je tiens davantage à ce que vous m’appreniez pourquoi les mères sont si peu renseignées sur leurs propres enfants, pourquoi elles oublient, elles aussi, l’essentiel de ces trois années ? Peut-être les mères font-elles seulement semblant. A moins que, chez elles également, l’essentiel ne parvienne pas jusqu’à leur conscient.

Vous allez vous fâcher parce que je me moque une fois de plus des mères. Mais comment m’en tirer autrement ? Cette nostalgie vit en moi. Quand je suis d’humeur triste, mon cœur appelle la mère et ne la rencontre pas. Dois-je en vouloir à Dieu et à l’Univers ? Il vaut mieux rire de soi-même, de cet état d’infantilisme duquel on ne sort jamais. Car on est rarement l’adulte comme l’enfant joue à être une grande personne. Pour le Ça, il n’y a pas d’âge et le Ça est notre vie même. Examinez l’être humain au moment de ses douleurs les plus profondes, ses joies les plus intenses : le visage devient enfantin, les mouvements aussi ; la voix retrouve sa souplesse, le cœur bat comme dans l’enfance, les yeux brillent ou se troublent. Certes nous cherchons à dissimuler tout cela, mais ce n’en est pas moins visible et nous le remarquons sans nous y arrêter parce que nous ne discernons pas chez nous-mêmes ces petits signes, qui parlent si haut ; pour cette raison, nous ne les découvrons pas chez les autres. On ne pleure plus quand on est adulte ? Sans doute uniquement parce que ce n’est plus dans les mœurs, parce que quelque idiot a banni les larmes de la mode. Qu’Arès eût crié comme dix mille quand il fut blessé m’a toujours paru plaisant. Et qu’Achille ait versé des larmes sur Patrocle ne l’humilie que dans l’esprit des glorieux. Nous sommes des hypocrites, voilà tout. Nous n’osons même pas rire franchement. Mais cela ne nous empêche pas, quand nous ne savons pas quelque chose, d’avoir l’air d’écoliers pris en faute, que nous avons la même expression d’angoisse qu’à l’époque de notre enfance, que de petits détails dans notre façon de marcher, d’être couché, de parler nous accompagnent tout au long de notre vie et que tous ceux qui veulent bien le voir peuvent dire : « Regarde, un enfant ! » Observez quelqu’un qui se croit seul, et tout de suite surgit l’enfant, parfois sous une forme très comique : on bâille, on se gratte la tête, le derrière, on fourrage même son nez et — il faut bien le dire — on pète. La dame la plus distinguée pète. Ou contemplez des êtres entièrement pris par une action, plongés dans une méditation, voyez des amoureux des malades ou des vieillards ; tous, il donnent, çà et là des signes d’infantilisme.

Quand on essaie de mettre un peu d’ordre dans tout cela, la vie vous apparaît comme un bal masqué à l’occasion duquel on se déguise peut-être dix, douze, cent fois ; en réalité, l’on s’y rend tel que l’on est ; sous le déguisement et au milieu des masques, on reste ce que l’on est et on quitte le bal semblable à ce que l’on était en y arrivant. Dans la vie, on commence par être un enfant et on traverse l’âge adulte par mille chemins aboutissant tous au même point : l’on redevient un enfant ; la seule différence entre les êtres est qu’ils retombent en enfance ou redeviennent enfantins.

Ce phénomène, ce quelque chose qu’il y a en nous, et se manifeste à sa convenance à tous les degrés de l’échelle des âges, s’observe aussi chez l’enfant. L’aspect vieillot d’un visage de nouveau-né est notoire et a donné lieu à mille commentaires. Mais allez dans la rue et observez les petites filles de trois ou quatre ans — car c’est plus évident chez elles que chez les garçons, et il doit exister quelque bonne raison pour cela — elles agissent entre elles comme le feraient leurs mères. Et toutes, pas une par hasard, particulièrement marquée par la vie ; non, toutes ont, à un moment ou à un autre, cette curieuse expression de vieillesse. Celle-ci a la bouche querelleuse d’une femme aigrie, celle-là, des lèvres révélant son goût pour les commérages ; plus loin, nous voyons la vieille fille et là-bas, c’est la coquette. Et puis, n’arrive-t-il pas souvent que l’on découvre déjà la mère dans le plus petit enfançon ? Ce n’est pas seulement une question de mimétisme, c’est le Ça qui se manifeste. Il prévaut parfois sur l’âge et décide du vêtement que l’on portera aujourd’hui ou demain.


Ver online : Groddeck, Georg