CARTA 2
Acredito que o homem é vivido por algo desconhecido. Existe nele um “Isso”, uma espécie de fenômeno que comanda tudo que ele faz e tudo que lhe acontece. A frase “Eu vivo…” é verdadeira apenas em parte; ela expressa apenas uma pequena parte dessa verdade fundamental: o ser humano é vivido pelo Isso. É desse Isso que falarei em minhas cartas. Você concorda?
Mais uma coisa. Desse Isso conhecemos apenas aquilo que está em nosso consciente. A maior parte dele — e de longe a maior parte! – constitui um setor em princípio inacessível. Mas é possível ampliar os limites de nosso consciente através da ciência e do trabalho e com [10] isso penetrar profundamente no inconsciente quando nos decidirmos não mais a “saber” porém a “imaginar”. Coragem, meu belo Doutor Fausto! A capa já está pronta para voar! A caminho, na direção do inconsciente…
Pois raramente alguém se torna adulto e, mesmo assim, apenas superficialmente. Brincamos de adulto assim como uma criança brinca de ser uma pessoa crescida. Para o Isso, não existe uma idade para as coisas e o Isso é nossa própria vida. Examine o ser humano no momento de suas dores mais profundas, de suas alegrias mais intensas: seu rosto se torna infantil, seus movimentos também; sua voz se torna mais flexível, o coração bate como se fosse o de uma criança, os olhos [11] brilham ou se enchem de lágrimas.
[…] o Isso, essa coisa pela qual somos vividos, não distingue nem entre os sexos, nem entre as idades.
CARTA 3
É o Isso inconsciente e não a razão consciente que cria as doenças. Elas não provêm do exterior, como se fossem inimigos; são criações oportunas de nosso microcosmo, de nosso Isso, e são tão racionais quanto a estrutura do nariz e dos olhos que são, também, produtos do Isso. Ou será que você acha inadmissível que um ser que, com filamentos de sêmen e um óvulo, faz um homem possa também suscitar um câncer, uma pneumonia ou uma eliminação de matriz?
Como é difícil falar do Isso! Tange-se uma corda qualquer e, ao invés de um som, produzem-se vários, cujas sonoridades se misturam e se calam, a não ser que provoquem outras, sempre novas, até que se produza uma cacofonia incrível em que se perde todo discurso. Pode acreditar, não é possível falar do inconsciente; só se pode balbuciar algumas coisas a respeito dele ou, melhor, indicar bem baixinho isto ou aquilo a fim de que o bando infernal do universo inconsciente não surja das profundezas dando berros discordantes.
[…] essa também é uma das características do Isso, todas as culpas pensáveis e imagináveis pesam sobre cada um de nós, de modo que se é obrigado a dizer, a respeito do assassino, do ladrão, do hipócrita, do traidor: Mas você também é um deles!
CARTA 6
Eu lhe disse uma vez que era difícil falar do Isso. Quando se trata dele, todas as palavras e todas as noções tornam-se flutuantes, indecisas, porque é próprio de sua natureza introduzir em cada denominação, em cada ato, uma série de símbolos, e é próprio dele também atribuir, associar a essa série ideias de outro tipo, de modo que aquilo que parece bem simples para a razão é, para o Isso, muito complicado. Para o Isso, não há noção que seja, em si, delimitada; ele trabalha com ordens de noções, com complexos produzidos através da obsessão com a simbolização e a associação.
CARTA 7
O amor é uma arte misteriosa que só pode ser aprendida parcialmente; e se é governada por alguma coisa, essa coisa é o Isso.
CARTA 13
Mas a doença também é um símbolo, uma representação de um processo interior, uma encenação do Isso através da qual ele anuncia o que não se atreve a dizer de viva voz. Em outras palavras, a doença, toda doença, nervosa ou orgânica, e a morte, estão tão carregadas de significação quanto a interpretação de uma peça musical, o ato de acender um fósforo ou de cruzar as pernas. Esses atos transmitem uma mensagem do Isso com mais clareza e insistência do que o poderia fazer a fala, a vida consciente. Tat vam asi. . .
CARTA 14
As religiões são criações do Isso.