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Fernandes (SH:68-70) – Intencionalidade ou intensionalidade

quarta-feira 24 de abril de 2024, por Cardoso de Castro

  

Os medievais, depois Brentano  , Husserl  , etc., ao se referirem a uma suposta “intencionalidade”, deviam estar querendo referir-se à visão ou ponto de vista de um sujeito, não a propriedades metafísicas como a transparência da consciência, ou a enigmáticas capacidades mentais, como a de tomar algo como objeto. O que é, afinal, que eles poderiam estar querendo dizer? Certamente não pensavam em algo cientificamente tão depurado quanto a (realmente enigmática) ideia de “relação semântica” ou “aboutiress” (“ser sobre” ). Seria muito mais correto falar em “consciência não-intencional” do que em “consciência intencional”, se por “intencionalidade” entendêssemos “aboutness” ou a propriedade de “ser sobre”. Pensavam então em “entes intensionais” (com s)?

Mas, de acordo com a concepção de existência que acabei de propor, tais entes existem tanto quanto quaisquer outros que sejam tomados como objeto, independentemente de “critério”, ou seja, como se pudessem, “acertadamente” ou não, sê-lo outra vez. Estariam querendo referir-se ao que parece a um sujeito? Já vimos que isto não funciona: “o que parece a um sujeito” pode, de fato, ser tomado como objeto, seja pelo próprio sujeito, ou por seu psicólogo, mas, se for tomado como objeto será tomado como real, não como aparência. A rigor, um sujeito perderia de vista aquilo que supostamente “visaria” intencionalmente, pois não só a “visada” não poderia ela mesma ser visada, mas também, para visar um objeto, o sujeito teria paradoxalmente que impedir que ele aparecesse como “aquilo que é visado”, mantendo-o fora da aparência, justamente para poder pensar que é ele que transparece.

A pura transparência da Consciência em si mesma não é, portanto, Experiência em si mesma, mas é o próprio Ser em si mesmo, o Ser-enquanto-Ser, que, por sua vez, se estende em Ser-como-Experiência por meio de dois artifícios mentais e inconscientes, que estão, na eternidade, a serviço da Experiência criadora ou Criação consciente: primeiro, a projeção do contraste, do contrário da transparência, que só pode ser a opacidade perfeita do espelho, que pode refletir (voltaremos a isso em detalhes esquemáticos, no final do capítulo); segundo, a Identificação, de cuja análise nos ocuparemos em breve.

Distinguindo-se da pura transparência da Consciência em si mesma, a transparência consciente da Experiência em si mesma ou extensão criadora do Ser-enquanto-Ser, consiste no transparecer daquilo que é projetado pelo instrumento como configuração puramente qualitativa, “constelação” instantânea e eterna, sem duração e ilimitadamente rica em sua estrutura intrínseca. Distinguindo-se tanto da pura transparência da Consciência em si mesma, quanto da transparência consciente da Experiência em si mesma, a transparência da Mente, da reatividade mental inconsciente, ou transparência da intencionalidade, ou ainda transparência do ponto cego, consiste numa forma, que é a forma de valoração, julgamento, rejeição, expulsão ou manutenção do objeto à distância da Experiência, no que se chama de “Existência”. O nome clássico dessa reatividade é “juízo”, mas não somos nós que temos ou não temos juízo, e sim a Mente, o Pensamento e a Linguagem! Ao que é assim mantido à distância, a mente toma como real, para além das aparências, que ela também insiste em tomar como reais.

As noções de “tomar algo como objeto”, “ter algo presente à Mente” (ou à “consciência intencional” ) ou ainda, simplesmente, “pensar em algo”, que correspondem, grosso modo, ao que também chamarei de “objetivação”, tout court, vêm, como se sabe, resistindo a tentativas de redução explicativa à Física   ou à Biologia. A Psicologia, que é um saco de gatos de candidatos a “paradigmas” e que deveria ser Ciência dessas coisas por excelência, ainda não saiu, desde que foi inventada como ciência, no final do século XIX, da fase de engatinhar, ico sabe a respeito desses assuntos, a menos que a consideremos 10 um grupo de “Ciências Cognitivas”, por sua vez largamente spiradas numa espécie ou outra de “psicologia evolucionista”, muito mais biológica que propriamente psicológica. A Psicanálise, r sua vez, não passa, para mim, de uma convoluta tentativa de reduzir a Consciência a uma manifestação do “Inconsciente”, seja lá o que isso for. (V. Filosofia da Consciência, Capítulo 4, bibliografia lá discutida e Apêndice bibliográfico, além de coisas mais recentes, como, por exemplo, Como a Mente Funciona, do Pinker.) Essa resistência se deve, não só ao pântano conceptual em que sobrevivem as noções de “intencionalidade” e de “intensões” (com s), mas também a que a noção de objetivação implica outras, algo vagas, de “significado”, “conteúdo” ou, em geral, a noção de que haveria “fatos semânticos irredutíveis a fatos sintáticos”. Afinal, até mesmo eu concordo que não devemos admitir à existência entes não identificados (’Wo entity without identity” ), mas, como o leitor já viu, pela parafernália que admiti ao mobiliário do mundo (alucinações, unicórnios, etc.), meu conceito de “identidade” deve ser infinitamente mais generoso que o dos “naturalistas” e “realistas científicos”. Seja como for, não há no horizonte perspectivas de encontrarmos critérios de identidade para aquilo a que nos pretendemos referir com os termos que costumamos usar para designar candidatos a objetos da intencionalidade, como, por exemplo, “proposições”, “significados”, “intensões” (com s), etc. Mas haveria critérios de identidade para intenções (com c), um número, uma prova lógica, esta mesa, uma partícula sub-atômica, minha raiva, ou o que chamo de “você” ? Não me venham tirar da manga abstracta, como o “genoma”, ou o “CPF”, pois ambos pressupõem que já teríamos resolvido o problema do critério de identidade. Tampouco me venham com types, como se pudessem tomar-se “precisos” sem tokens; ou tokens, cujo principium individuationis, se não constituísse até hoje um problema em aberto, tornaria redundante boa parte dessa investigação! (Type é tipo, ou tudo que tem exemplos; token é indivíduo, ou tudo que puder ser considerado exemplo de um tipo.)


Ver online : Sergio L. C. Fernandes


FERNANDES, Sérgio L. de C.. Ser Humano. Um ensaio em antropologia filosófica. Rio de Janeiro: Editora Mukharajj, 2005