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Fernandes (FC:67-72) – a questão do método

domingo 10 de outubro de 2021, por Cardoso de Castro

  

A noção de “metodologia é muito ambiciosa, pois a logia da palavra ‘metodologia’ sugere que se possa usar a lógica para [67] conhecer o método. Ora, “método”, por sua vez, é o caminho para uma meta. De que maneira a lógica nos poderia ajudar a conhecer esse caminho? A implicação material parece ser a única relação lógica não-trivial, neste caso. Mas como interpretar, aqui, o nosso “p implica g” ou “a premissa implica materialmente a conclusão”? Será o caminho a premissa, que implica a meta, como conclusão? Ou, inversamente, é a meta a premissa, que implica o caminho, como conclusão? A implicação material é verdadeira se a premissa e a conclusão forem verdadeiras ou se a premissa for falsa. Este último caso pode ser desprezado, pois não iremos muito longe imaginando que um descaminho, um caminho errado, possa conduzir-nos, seja à meta ou a uma falsa meta. Ou que uma “falsa meta”, a meta que não é verdadeiramente a meta, possa conduzir-nos tanto ao caminho certo como ao caminho errado. Já o primeiro caso, em que a premissa e a conclusão são verdadeiras, é, aparentemente, promissor. Se a metodologia é apenas o estudo das relações possíveis entre a meta e o caminho, podemos colocar a meta ou o caminho no lugar da conclusão. Mas se a metodologia é algo mais ambicioso do que isso, ou seja, é a maneira, digamos, “lógica”, de descobrirmos qual é o caminho que nos leva à nossa meta, então o correto é colocar o caminho no lugar da conclusão. Colocar o caminho no lugar da conclusão significa que esperamos conhecê-lo, não como resultado da análise da noção que temos da meta a atingir. Lembre-se de que “método” é o caminho “correto”: “metodologia” é uma noção normativa. Por isso, como já disse, descartamos a implicação lógica. Seria demais pedir à razão que a ideia do caminho estivesse presente no conteúdo da ideia da meta, de modo que nos bastasse inspecionar, com olhos de racionalista, nossa noção de meta a atingir, para descobrirmos o “como” chegar a produzí-la, ou realizá-la; o procedimento, o tipo de ação, a prática correta — dentre tantas — que nos levaria a satisfazer nosso desejo.

Mas se, por um lado, o racionalismo em metodologia pede demais à razão, por outro, o pedir menos parece insuficiente. Pois colocar o caminho no lugar da conclusão de uma implicação material que tem como premissa a meta é justamente a interpretação tradicional de “metodologia” que constitui nossa noção teleológica de “racionalidade”. Se você quer tal efeito, aplique tal causa. Se a meta que você quer atingir é B, então o procedimento correto é A. Ora, esse tipo de conhecimento de qual é o procedimento correto — a conclusão — pressupõe o conhecimento de que é verdadeira a implicação inversa, ou seja, a de que a causa, ou o procedimento correto, ou o método A, [68] implica materialmente o fim a atingir, a meta, ou o efeito B. Como se isso não bastasse, essa implicação, sob tal interpretação, só se sustenta se o enunciado que descreve a causa for asserido em conjunção com um enunciado universal do tipo “Para todo x, se Ax, então Bx”. Mas havendo múltiplas premissas alternativas, umas verdadeiras e outras falsas, implicando materialmente a mesma conclusão verdadeira, há múltiplos procedimentos, corretos ou incorretos, produzindo o mesmo resultado. De modo que nossa noção do que fazer, racionalmente, para obter um resultado, é apenas a noção do que “basta”, ou é suficiente fazer, não a do que deva necessariamente ser feito, suposta uma interpretação extensional do enunciado universal, compatível com a mera coincidência. Pois que não haja exceção é compatível com a ideia de que todos os resultados obtidos o foram por mera coincidência. Como podemos, então, saber que o que fazemos é realmente o que temos que fazer para obter um determinado resultado?

Não há, portanto, um método, ou seja, o conhecimento de um caminho que leve, necessariamente, de onde estamos para onde desejamos ir. Na verdade, o caminho estará onde nós o pusermos e nunca o pomos onde nós estamos. Tudo o que fazemos com o objetivo de obter um resultado é feito, em última análise, às cegas, como quem aposta irracionalmente que o futuro repetirá o passado. Mesmo sem considerar a dificuldade adicional de que as consequências de cada ação são infinitas e, portanto, imprevisíveis na sua totalidade, de modo que cada consequência pretendida, correspondendo a uma razão para agir, acaba por fazer de nós, de qualquer modo, aquele que age sem razão, a expectativa da repetição, ou da semelhança do futuro com relação ao passado, é pura ignorância. E essa ignorância é que tem gerado todas as perplexidades tradicionais da ciência e da chamada “metodologia”. E a Metodologia da Filosofia não é exceção.

Mas tranquilize-se o leitor. Meu objetivo, ao encerrar este Capítulo metafilosófico, não é fatigá-lo com o caráter insolúvel do problema pragmático da indução. Filosofia, já disse, é para mim uma espécie sui generis de atividade, e o que interessa, aqui, é compreender que toda atividade arregimentada por um método será reação, jamais ação. É preciso compreender o ponto cego de toda atividade, sobretudo da atividade filosófica. É preciso compreender a raiz dessa ignorância mesma, constitutiva de toda reação. Ora, se não há método, se “metodologia” é apenas um nome pretensioso que damos à nossa irracionalidade, então, a rigor, em última análise, jamais [69] sabemos o que fazemos, no sentido do porquê o fazemos. Somos, literalmente, aqueles que, a exemplo dos animais irracionais, não sabem o que fazem. Somos aqueles que, segundo as Escrituras, são irresponsáveis, não sabem verdadeiramente o que fazem, e por isso devem ser perdoados. Qual é o significado de tudo isso?

Tudo isso deveria ser óbvio, pois o que nos move, nossas intenções, ou razões para fazer algo, nada mais são do que as consequências esperadas, desejadas, e não podemos prever as infinitas consequências de cada uma de nossas ações. O ponto de parada de nossas considerações será necessariamente arbitrário. A decomposição do que consideramos ser “uma” ação em partes, em sub-ações, assim como a nossa ideia da composição de uma ação a partir dos nossos movimentos também é, em última análise, arbitrária. A delimitação do que consideramos ser “uma” causa, ou “um” efeito, depende estritamente de nossas expectativas teóricas. E estas serão sempre compatíveis com a mera coincidência. Como deveria, então, parecer-nos tola nossa preocupação com os métodos! A dualidade de meios e fins, de ações e resultados desejados, constitui nossa ignorância. E essa ignorância tem um significado. Ela significa que nos concebemos a nós mesmos como agentes, como aqueles que fazem, os autores, as causas dos supostos efeitos produzidos pelas ações. Na verdade, dizer que há vários caminhos para a mesma meta — várias “metodologias alternativas”—, que há várias causas possíveis para um mesmo efeito, que há várias ações para um mesmo resultado, não traduz nenhum conhecimento: é a expressão mesma da nossa ignorância a respeito do fazer, e do que fazemos. Somos como o idiota que viaja de trem carregando nos próprios ombros o que considera ser a “sua” bagagem, quando é o trem que nos carrega a todos, supostas “bagagens” inclusive.

Não sabemos sequer porque fazemos o que fazemos, mas julgamos acerca do valor, da correção do que fazemos. “Metodologia” é conhecimento normativo. Não adianta descrever apenas o que se faz de fato, pois o que se faz de fato pode estar errado. Ou será que a Árvore se conhece pelos frutos? Ou será que os fins justificam os meios? É evidente que das metas atingidas não podemos inferir a correção dos métodos. Se desejamos manter, como me parece correto, e apesar da Bíblia, que os meios não justificam os fins, então há algo errado com todos os consequencialismos, com todos os utilitarismos e, — porque não acrescentar — com todas as [70] metodologias. Definitivamente: não podemos conhecer o valor dos métodos a partir do valor de seus resultados, assim como não podemos, por razões lógicas, conhecer o método a partir dos resultados pretendidos. Não podemos conhecer o caminho a partir da nossa representação do lugar a que desejamos ser conduzidos.

Face a tudo isso, não me parece haver alternativa senão considerar o caminho como a própria meta, os meios como fins em si mesmos, as ações que têm em vista um resultado como o próprio resultado, a árvore como o próprio fruto. O que nos deveria interessar não é “o que vem depois”, mas o presente. O que nos deveria mover não é a astúcia, mas a atenção. Isto pode ser paradoxal, mas não vejo outra maneira de compreender o que há de errado com a chamada “Questão das Metodologias”. O que se vem chamando de “método” simplesmente não é real, é uma ilusão. Não há caminho para atingir uma meta, porque não há “caminho-para...”, só há caminho, tout court. Todos os meios são fins em si.

Como já disse, não posso estar atento ao que está separado de mim pela imensa — e normalmente tirânica — distância de um “método”. E muito menos atento estarei ainda se o próprio método, ou caminho, é o que eu penso que tenho que descobrir, ou inventar. Tenho que descobrir as causas, tenho que descobrir o valor da árvore. Mas eu jamais poderei compreender as causas a partir dos efeitos, ou o valor da árvore pelo sabor dos frutos da ação, ou o valor dos meios a partir dos fins, ou o valor dos métodos a partir dos seus resultados, ou qual é o caminho, a partir do lugar para onde imagino que o caminho vai. Vários caminhos levam a Roma? Ou todos? Mas como tornar essa questão algo não trivial?

A chamada “problemática metodológica” trai uma distração sistemática a nos afastar do presente, uma fuga da realidade. O esquema tradicional de racionalidade não nos leva a lugar nenhum. Tente invertê-lo! Em vez de pôr o caminho no lugar da conclusão, considere-o a premissa, e veremos logo que perdemos de vista a noção de “meta”. Na verdade o caminho é a meta, e não “conduz” a ela. Não é o caminho que leva a Roma, Roma é que é o caminho. A philia jamais poderia ser o caminho para a sophia; a amizade, por mais competente, jamais poderia ser o caminho para a Sabedoria, se não fôssemos, desde sempre, essencialmente sábios. Conhecer não é adquirir. Conhecer é despojar-se do que nos torna ignorantes. Se o método é conhecer-nos a nós mesmos, é porque nós mesmos somos o método, [71] nós mesmos somos o caminho. Não podemos caminhar para onde jamais deixamos de estar. O método filosófico não é, nem a dialética, nem a análise, nem a síntese, nem a hermenêutica, nem a “suspensão” fenomenológica, nem qualquer “positivação” do desejo. É a pergunta sustentada, energizada, por quem sou eu, a pergunta que se dissolve por si mesma, porque não tem resposta. O resultado é nulo. Só o vazio produz bons frutos.

A “Questão do Método” voltará sempre, insistente: mas como dissolver-se, como realizar o vazio, como nos dar conta do vazio? Não havendo um Mestre Zen por perto, o jeito é tomar a pergunta como um koan. O paradoxo está em que o obstáculo é a própria pergunta. E a resolução do paradoxo está em compreender o próprio paradoxo. O problema filosófico por excelência está na própria palavra ‘filosofia’, que admite explicitamente nossa incompetência. O que nos separa da Sabedoria é “apenas” isso: esse pensamento mesmo, essa ilusão aparentemente irresistível, de que não somos sábios.


Ver online : Sergio L. C. Fernandes