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Fernandes (FC:204-208) – A invenção recente da consciência

terça-feira 9 de novembro de 2021, por Cardoso de Castro

  

Gostaria de mostrar ao leitor de que maneira a consciência pode ser compreendida como parte do que chamamos de “natureza”; em outras palavras, tentarei eu mesmo compreender a “natureza” da consciência, ou seja, a relação entre a Aparência da consciência e suas “projeções” ou hipóteses, como uma “Realidade” no Universo. É a Realidade uma “parte”, ou “aspecto” da mente humana, ou esta uma “parte”, ou “aspecto”, daquela? Pelo que vimos no Segundo Capítulo, esta questão não pode ter uma resposta “empírica”: só poderia ser respondida a priori, ou ser objeto de “decisões” pragmáticas. Por “Primeira Natureza”, como vimos, entendo a físico-química e a biológica; por “Segunda Natureza”, entendo os sistemas simbólicos, linguísticos, culturais, ideológicos etc. Portanto, se a consciência há de ter uma “natureza”, o que para mim é o mesmo que harmonizar-se à “natureza”, teremos que investigá-la — não direi “à luz”, mas — “à sombra” da Ciência.

A Revolução Científica — a única que conhecemos, até hoje — consistiu na aplicação do velho método de análise e síntese [1], ou seja, o método da matemática e da geometria, à Natureza como um todo, e na valorização da “experiência” como critério de decisão acerca de hipóteses e teorias. Mas a Revolução Científica deixara de fora a Vida e a Mente. Se considerarmos que a Revolução data, digamos, do século XVI — para adotarmos uma data “média” —, a Vida só viria a incorporar-se à Ciência três séculos mais tarde, com Darwin, e, no sentido estrito, quatro séculos mais tarde, com a microbiologia do século XX. Quanto à mente, só seria concebida como um “fenômeno biológico” neste século [2]. Mas o que se incorporou à Ciência foi a “mente inconsciente”, não a consciência. Essa incorporação não se deu apenas na Biologia, mas na Psicologia, com Freud  , na Ciência Política, com Marx  , e, a partir da década de 60, com as novas formas de behaviorismo psicológico chamadas de “cognitivismo”.

Ainda hoje, parece bem claro à maioria dos cientistas que se pode explicar praticamente tudo o que importa na “mentalidade inteligente”, sem trazer à baila a consciência. Há “pensamento” inconsciente e subconsciente. A ausência de “fenomenologia” em casos [204] de “visão cega” [3], “agnosia”, “percepção subliminar”, “escuta dicotômica” [4], e todos os casos de aprendizagem inconsciente em pacientes incapazes de adquirir novas memórias conscientes, a partir de lesões no lobo temporal médio, é evidência bastante, sem que precisemos mencionar a Psicanálise [5]. A consciência, no estado atual do desenvolvimento da ciência, não é necessária para:

receber, processar e estocar informação; tomar ‘decisões’ ou fazer ‘escolhas’ baseadas na aplicação de procedimentos efetivos àquela informação; executar movimentos físicos complicados e precisos, baseados naquela informação, naquelas decisões e naquelas escolhas; e exibir e comunicar tais informações, decisões e escolhas. [6]

A mente, por sua vez, só pôde incorporar-se à Ciência às custas de uma “Revolução subsidiária”, contra o cartesianismo. Descartes   havia legado à sua posteridade dois dogmas, pelo menos: o primeiro, que todo estado mental é um estado consciente; o segundo, que a “consciência” é uma “propriedade intrínseca”, “simples”, “não analisável”, dos estados mentais (1964-75, VII, 246: “nenhum pensamento pode existir em nós sem que dele tenhamos consciência (lat. ecce conscius; fr. avoir connaissance de) no momento mesmo em que ele existe em nós”; VII, 160: a palavra ‘pensamento’ aplica-se a tudo o que existe em nós ... imediatamente; e VII, 107, 232, 246; III, 273; VIII, 1, 7 etc.). Como poderia uma propriedade puramente qualitativa, atômica, não-analisável, homogênea, fenomenologicamente imediata, incorrigível, privada, particular, pessoal, subjetiva, inefável — pois o que nos permitiria identificá-la não seria intersubjetivamente comparável — tornar-se objeto de explicações científicas? Seria algo que eu conheço, e o leitor conhece, com absoluta certeza, mas que nem eu, nem o leitor, podemos compartilhar, no sentido estritamente qualitativo, de modo que o que eu conheço, quanto ao meu “estar consciente”, só eu conheço; e o que o leitor conhece, quanto ao seu “estar consciente”, só ele conhece. Não é sem razão que a “revolução” cartesiana [205], que fundou a Filosofia Moderna, tem sido às vezes chamada de “Catástrofe Cartesiana”. Kathleen Wilkes cita um manuscrito inédito de N. A. Hayes (Oxford), que explica exatamente porque se trata de uma “catástrofe”: de acordo com os dogmas cartesianos, “um sistema”, diz Hayes, “que aprende sem que os produtos de sua aprendizagem estejam à disposição de processos que possam inspecioná-los, relatá-los e, se necessário, modificá-los, está essencialmente fora de controle” [7]. Nas palavras de Richard Rorty  :

Enquanto os corpuscularistas estavam ocupados drenando dos planetas, das rochas, dos animais, suas naturezas intrínsecas, e expulsando causas formais e finais, os filósofos cartesianos tiveram que trabalhar duro (sob os olhares incrédulos de gente como Hobbes   e Gassendi) para criar a “consciência” como um refúgio para as noções aristotélicas de substância, essência e intrinsicalidade. Mas foram bem sucedidos. Graças aos seus esforços, mesmo depois que os conteúdos coloridamente diversos da natureza aristotélica foram difamados, todos juntos, num rodamoinho de corpúsculos — uma grande substância chamada “matéria” — restou, aqui embaixo, uma outra substância: a mente ... Se o século XVII tivesse tratado as Meditações de Descartes apenas como um pedaço infeliz de aristotelismo residual, perdoável no autor de um grande tratado sobre mecânica corpuscular ... Wundt, Helmholz e James ... teriam descrito o que faziam (como Freud o fez no Projeto) como marcando lugares a serem preenchidos pela Neurologia do futuro. [8]

Com efeito, parece que o cartesianismo foi, para a mente e a consciência, o que a física   aristotélica fora para as ciências da natureza. A consciência, parece ser um desenvolvimento tardio da mentalidade humana, inexistente, p. ex. — na forma introspectiva à qual nos acostumamos — na época homérica [9]. Já uma pesquisa [206] linguisticamente orientada teria enorme dificuldade de encontrar, antes do século XVII, seja em línguas europeias, seja em Grego antigo, Chinês ou Croata, termos equivalentes a “mente” ou “consciência” [10]. O que é “óbvio” e “central” para nós, hoje, é, historicamente, uma verdadeira “novidade”. Embora o Oxford English Dictionary de 1971 mencione, como o primeiro uso da palavra “consciente” no sentido de “introspectivamente cônscio” (”Consciência de Si”), sua ocorrência num sermão de 1620, do Arcebispo de Usher, em 1651 Hobbes ainda usava o termo na acepção etimológica de “conhecimento partilhado” [11]:

Quando dois ou mais homens conhecem um e o mesmo fato, diz-se que eles estão “conscientes” dele, um para o outro; o que equivale a conhecê-lo juntos ... Mais tarde, os homens fizeram uso da mesma palavra metaforicamente, para o conhecimento de seus próprios fatos secretos, e pensamentos secretos ...” [12].

Nicholas Humphrey compara a evolução da palavra “consciência” à evolução da palavra inglesa “window”: de “abertura por onde o vento entra”, passou a “abertura por onde o vento não entra” [13]. Em Grego antigo, o termo mais próximo que se pode encontrar para “consciência” é psyche, cuja acepção mudou muito, entre Homero   e Aristóteles [14], mas que significava, acima de tudo, “estar vivo” — em Aristóteles, a “forma” das coisas vivas. O “biológico” incluía o “psicológico”, numa unidade mente-corpo (o “intelecto-agente” aristotélico não se distinguia do corpo, como se fosse algo “mental”). Wilkes destaca, dentre vários autores, que notaram que os gregos ignoravam a “consciência” enquanto tal, a obra de Hamlyn, Aristotle’s De Anima Books II, III [15].

A pergunta fenomenológica recomeça a insinuar-se: mas o que é que os gregos ignoravam? A transição entre psyche e mente é [207] feita por Descartes, já no Discurso sobre o Método [16], mas, sobretudo, na Segunda Meditação [17], que reuniu raros precedentes helenísticos, estoicos e agostinianos: Mas o que, então, eu sou? Uma coisa que pensa. (res cogitans) O que é uma coisa que pensa? Uma coisa que “duvida” etc. A mente tornava-se assim um palco privado de um Teatro, o Teatro Cartesiano, em que as coisas se passavam para um espectador, o Olho Interno.

Para o empirismo, o dogma era inquestionável: Locke   afirma que “a consciência é inseparável do pensar... e essencial a ele; sendo impossível para qualquer um perceber sem perceber que ele percebe ... e é isso que torna cada um o que ele chama de “eu” [18]. Nem Hume   foi abalado: “as percepções da mente são perfeitamente conhecidas” [19]. Ao que tudo indica, antes de Descartes ninguém duvidava — e tampouco se preocupava com o fato — de que a mente é algo imensamente maior do que a consciência: a consciência não era uma “linha divisória entre duas espécies radicalmente diferentes de coisas: mente e corpo, o mental e o físico” [20]. Não há, com efeito, outra explicação para a exortação grega: “Conhece-te a ti mesmo!”, que não o reconhecimento da opacidade da mente para si mesma.


Ver online : Sergio L. C. Fernandes


BORNSTEIN, R. & PITTMAN, T. eds. 1992: Perception Without Awareness. Cognitive, Clinical and Social Perspectives. Guilford P.

CRITCHLEY, M. 1966: The Parietal Lobes. Hague

CROOK, J.H. 1980: The Evolution of Human Consciousness. Clarendon.

FERNANDES, S.L. de C. 1985: Foundations of Objective Knowledge. Reidel.

FLANAGAN, D. 1992: Consciousness Reconsidered. MIT

HODGSON, D. 1991: The Mind Matters: Consciousness and Choice in a Quantum World. OUP/Clarendon

HUMPHREY, N. 1991: A History of Mind. Evolution and Birth of Consciousness. Simon & Schuster (Ed. Bras.)

HUMPHREYS, G. & DAVIES, M. eds. 1992: Approaches to Consciousness. Blackwell.

LACKNER, S. & GARRETT, M. 1973: Resolving Ambiguity: Effects of Biasing Context in the Unattended Ear. Cognition.

MARR, D. 1982: Vision. Freeman

ORNSTEIN, R. 1991: The Evolution of Consciousness. Prentice-Hall. (ed. bras. Best Seller)

RORTY, R. 1993: Holism, Intrinsicality and the Ambition of Transcendence.

WEISKRANTZ, L. 1986 : Blindsight: A case Study and Implications. Clarendon

WILKES, K.V. 1988: WILKES , yèshi, duh, um, and Consciousness. MARCEL & BISIACH


[1FERNANDES 1985, Cap. 3.

[2CROOK 1980; ORNSTEIN 1991; HUMPHREY 1991 etc.

[3CRITCHLEY 1966; WEISKRANTZ 1986, 1988.

[4LACKNER & GARRET 1973.

[5MARR 1982; FLANAGAN 1992; BORNSTEIN & PITTMAN 1992.

[6HODGSON 1991, p. 170.

[7WILKES 1988, p.24.

[81993, p. 193-4; 201 n13.

[9JAYNES 1976.

[10WILKES 1988.

[11Conscire, conscius; WILKES 1988, 18; HUMPHREYS 1992, p. 118.

[12HOBBES, Leviathan, Routledge, vol. I, 37; apud WILKES 1988, p. 18.

[13Id. 1992, p. 119.

[14WILKES 1988, p. 19.

[15Id. 1968, Clarendon, p. ex., p. xiii.

[16Em Francês, 1637.

[17Em Latim, 1641; Francês, 1642.

[18Essay, apud WILKES 1988; Locke usa “self”; embora o Inglês, como o Português, disponha de quatro palavras para essa ideia, elas não são intertraduzíveis em todos os contextos: nem sempre “I” é o “Eu”; nem sempre “me” é o nosso “mim”; e o Português não conta com algo semelhante ao “seif” inglês. Do mesmo modo, há duas palavras para “consciência” em Inglês: “consciousness” e “awareness”, sendo esta última, como o “self”, intraduzível em Português, no sentido estrito.

[19Enquiries, apud WILKES 1988, id.

[20WILKES, p. 24.