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Fernandes (FC:180-183) – resumo das proposições sobre consciência

domingo 10 de outubro de 2021, por Cardoso de Castro

  

A consciência pode bem ser concebida como uma “unidade”, mas o risco é enorme. Arriscamo-nos a identificá-la, primeiro, como o “sujeito que eu sou” e, depois, se tivermos pendores neo-cartesianos, ou seja, fenomenológicos, como o “Sujeito transcendental”. Será essa unidade que a Consciência é, aquilo que faz com que cada um de nós seja cada um de nós? Será aquilo que torna possível que cada um de nós tenha um “ponto de vista” sobre o mundo? Aquilo que torna possível a cada um de nós ser um ponto de vista ... do mundo? Mas, então, o que seria cada um de nós: uma unidade, ou a unidade? No caso de cada um de nós ser uma unidade — “uma” consciência — perde-se a ideia de unidade, pois unidade só poderia ser aqui o que é comum à diversidade. Uma unidade não pode variar em cada um dos casos em que está presente, sem deixar de ser uma unidade. Por outro lado, no caso de cada um de nós ser a unidade — “a” Consciência —, o que se perde agora é a ideia de Consciência. Pois a unidade dos pontos de vista só poderia ser um contra-senso, um “ponto de vista ... de lugar nenhum”. Melhor reservar a metáfora de “unidade” para o caso do sábio, que se recolhe a um ponto.

Fazendo um retrospecto, para continuar, tínhamos destacado a princípio quatro resultados, dentre outros:

(1) Não podemos “perder” a consciência;

(2) A consciência é inalteravelmente transparente;

(3) Não há “estados de consciência”; e

(4) A intencionalidade não é uma relação entre a consciência e algum conteúdo ou coisa;

aos quais acrescentamos os relativos ao Erro de Descartes   (5 a 7) e, agora, podemos acrescentar os seguintes, também escolhidos dentre muitos outros:

( 5 ) Conheço x => Não sou x

Em que a constante “Conheço” pode, por sua vez, funcionar como variável, cujo domínio são todas as “atitudes proposicionais”, percebo, vejo, creio, desejo etc. Demonstrá-la, a essa altura, seria repetir tudo o que escrevi, ou dizê-lo sob outra forma. Tratemo-la, portanto, como se fosse um axioma (o leitor sabe que, se vê o livro que lê, isso implica logicamente que ele se distingue do livro). Mas se (5) é logicamente verdadeiro, então é necessariamente verdadeiro, e não admite exceções. Ora, ponha-se o leitor, ele mesmo, no lugar da variável ‘x’, e compreenderá imediatamente o Erro de Descartes:

(6) (Tenho uma ideia clara e distinta de que) (sou uma substância pensante) => Sou uma substância pensante.

O primeiro parênteses encerra uma “atitude proposicional”; o segundo, seu “objeto”, ou “conteúdo”, e (6) é logicamente falso. O que Descartes deveria ter pensado era:

(7) (Tenho uma ideia clara e distinta de que) (sou uma substância pensante) ➩ Não sou uma substância pensante.

(8) A consciência não “tem” um sujeito;

(9) A consciência não “tem” um objeto;

(10) O que chamamos de “sujeito” é uma forma de inconsciência: o ponto cego;

(11) O que chamamos de “objeto” é uma manifestação do inconsciente: a aparência;

(12) A consciência não é uma relação entre sujeito e objeto;

(13) A consciência tampouco é uma “propriedade intrínseca” de estados mentais (este assunto, que até [180] agora foi apenas “sugerido”, será investigado no próximo Capítulo);

(14) Ainda que a consciência seja tudo que verdadeiramente há, ela não tem uma sede, seja o Absoluto, seja um Ego transcendental, ou seja, ela não é um “Eu”;

(15) O pensamento e a mente são estruturas geradoras de ilusões sistemáticas e aparentemente irresistíveis;

O que chamo de “Identificação”, já vimos, não é algo que a consciência “sofre”, não é algo que lhe “acontece”, pois o próprio tempo é produzido pelas identificações. A consciência não é, por sua vez, uma forma, muito menos uma forma de “inconsciência de si”. A este equívoco eu mesmo já fui levado, pela ilusão transcendental de que as “formas de inconsciência”, ou seja, os estados mentais intencionais pressupõem necessariamente uma “consciência de si” (p. ex., a “unidade” kantiana). Isto é falso. É uma ilusão das mais irresistíveis, pelo menos para um kantiano — que fui —, mas é, contudo, uma ilusão (esta ilusão levou Hegel   aos pináculos do absurdo). Se a consciência é imperdível, não pode ter histórias evolutivas e involutivas, como se se perdesse a si mesma para depois se reencontrar (sic). Se alguém diz: “Fulano agora está bem! Acho que ele se reencontrou!”, repete, na linguagem ordinária, o que Hegel escreveu em muitos volumes. Mas se não há como alguém “encontrar-se”, muito menos pode fazê-lo a consciência. Sei que também venho usando “metáforas”, mas prefiro as minhas. Na verdade, é banalizar a Filosofia, reduzi-la a metáforas: é isto que a ciência usa incessantemente. Em vez de “metáforas”, o filósofo usa mitos (como Platão usou). Expliquei, no Capítulo 1, que o mito é o solo de estruturação simbólica do filosofar autêntico. A Filosofia jamais se contrapõe ao mito. De modo que o símile que escolhi, o Jogo de Luz, é um mito, não uma “metáfora”.

O vício da especulação é deixar-se levar pelo que se reflete no espelho. A palavra “Si” pode levar o pensamento a uma fantástica estupidez. “O para-si se funda”, observa Gois e Silva, em sua análise minuciosa do contorcionismo fenoemnológico-reflexivo de Sartre  , n’O Ser e o Nada, “negando de si um si, o ser-em-si. Mas o ser-em-si, assim manipulado, não pode ser, senão si, o em-si que sou. O para-si é presença a “siJ\ Mas esse “si” não deve ser apreendido como se fosse um ser plenamente real”... etc. [1] Sartre aponta para um alvo errado — a Existência Humana — e erra o alvo errado, quando a define como “falta de coincidência com ela mesma” [2]. Em primeiro lugar, só se pode compreender o que está fora do Ser — a Existência — à luz do Ser, ou seja, se apontarmos para o alvo certo, o Ser. Em segundo lugar, se alguma coisa “define” a existência humana, é o contrário de uma “falta de coincidência com ela mesma”, ou seja, são as Identificações Primária e Secundária. (Sartre dá a isso que são seus erros, o nome de “fracasso”. O fracasso, evidentemente, é dele.) Quanto à consciência, tampouco ela pode ser um “para-si” — V. meus resultados, (1) a (5) ), acima. Sartre, é claro, acerta em muitas outras coisas. Mas quando acerta em não identificar a consciência com o Ego, acerta pelas razões erradas [3]. Erra alvos errados e alvos certos. Sua melhor “jogada” é o jogo de palavras pelo qual o para-si é o que não é, e não é o que é. Mas quando chega a isto, não há mais alvo.

Como pode haver “consciência de si”, se todo objeto é uma opacidade e todo sujeito a sombra por ela projetada? O que eu uma vez chamei, erroneamente, de “consciência de si”, era flatus voeis. O que há é uma distinção entre o que se repete nas identificações e as identificações que se repetem. O que se repete nas identificações é sempre a inconsciência sob alguma “forma”. As identificações que se repetem são nossas mentiras sistemáticas. Ter um ponto de vista é simplesmente ser ignorante, ignorar o que se é, ignorar os “outros” pontos de vista, ser “alguém”, ter uma identidade, estar identificado, estar apavorado com a perspectiva de deixar de existir, estar aterrorizado pela morte: é desejar, e estar por isso condenado a uma frustração irremediável, pois é estar no tempo, ter começo e fim, e estar localizado no espaço, estar aqui porque não se está ali. Quando respondemos à pergunta “Quem é você”, apontamos sempre para um objeto. E não nos enganamos: jamais nos passa despercebido que estamos mentindo. Quem é você? O Professor Fulano. A Professora Fulana, o marido, a mulher, o pai, a mãe, o aluno, a aluna, o Diretor, aquele que faz isso, aquela que faz aquilo, o que sente isso, o que sente aquilo, o que tem tais e tais memórias, o filho ou a filha de Fulano [182] e Sicrano; tudo isso nada mais é do que construção da mente, biológica e social. Essas construções jamais poderão ser o que alguém é, não porque possa haver alguém ali, onde há uma personalidade, mas porque o pensamento é a produção do falso em cadeia. Não há “identificações” verdadeiras. Aquilo que, ao ser conhecido, deixa de ser o que é, justamente por ter sido conhecido, é o Falso: trata-se do que jamais se revela tal qual é, mas sempre como não é — símbolo, o que está sempre no lugar de outra coisa. É uma ironia do que Heráclito   chamou de “destino”, que expressões como “eu consciente”, “ego fortalecido”, “bem estruturado” etc., sejam corriqueiras. Uma questão de “caráter”. Por isso a resposta do sábio à pergunta sobre quem ele é só pode ser o silêncio. Ou então a mais longa das respostas: “Sou isto, e aquilo, e aquilo ...”, indefinidamente. Aos nossos resultados, podemos, portanto, acrescentar:

(16) Não há “consciência de si”.

Mas este não é um resultado que um neo-cartesiano, ou um fenomenólogo, aceitem facilmente. Algo me diz que ainda tenho com eles algumas contas a ajustar. Pois ele ainda poderia redarguir: “Embora você diga que as coisas são de fato assim, elas não parecem ser assim”. Ora, uma boa maneira de encaminhar uma conversa desse tipo é, por exemplo, fazê-la girar em torno do que chamarei de “Falácia Descritiva”. Afinal, a Fenomenologia é descritiva.


Ver online : Fernandes, Sergio L de C


FERNANDES, Sérgio L. de C.. Filosofia e Consciência. Uma investigação ontológica da Consciência. Rio de Janeiro: Areté Editora, 1995


[1GOIS E SILVA, C. 1995: Liberdade e Consciência no Existencialismo de Jean-Paul Sartre. Tese de Mestrado. PUC-Rio, p. 43.

[2Ibid., p. 46.

[3Ibid. p. 51.