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Fernandes (FC:161-163) – dizer «eu»

domingo 10 de outubro de 2021, por Cardoso de Castro

  

Vejamos como é necessário que eu diga “eu” sem saber quem sou, ou seja, vejamos como é necessário que eu só possa dizer “eu” na inconsciência, ou fora da consciência. Quando eu “introspecto”, tenho diante de mim um objeto. Que esse objeto seja “eu mesmo”, “meu estado mental”, o que chamo equivocadamente de “minha consciência obscura”, é contingente. Toda “introspecção” é uma extrospecção. Não nego que haja uma diferença entre a maneira pela qual tomo consciência de estados mentais que eu reconheço como “de outrem”, “alheios”, e a maneira pela qual tomo consciência de estados mentais que reconheço como “meus”. Mas essa diferença, por maior que seja — afinal, estamos habituados, habitando “este” ponto — é contingente. Tomo consciência de estados mentais alheios, costumamos dizer, pelo comportamento de corpos, ao passo que tomo consciência de meus próprios estados, não inferencialmente, mas de maneira imediata. Mas se tal distinção fosse necessária, ou correspondesse a algum privilégio de uma presumível “introspecção” sobre a “extrospecção”, como poderia minha consciência permanecer perfeitamente clara — e, nisso, imutável —, seja o seu objeto “um corpo que está pensando em x”, “um corpo lúcido”, “um corpo que parece mentalmente confuso”, “um corpo que vai perder a consciência”, não importando se este “corpo” é o meu ou o corpo de outrem? Não é sequer plausível que eu tenha acesso privilegiado ao meu corpo, em relação ao corpo de outrem — em certos casos, pode ser mais fácil saber que alguém vai desmaiar, quando esse alguém é outrem, do que quando esse alguém “sou eu”. A consciência intencional pode ser a apenas a pontinha de um iceberg. [161]

Como sabemos que o que se mexe, lá no mundo, sou “eu”? Imagine o leitor uma porção de corpos mais ou menos das mesmas proporções todos de malha preta dos pés à cabeça, entrelaçados numa espécie de bola — coisa de contorcionista de circo —, em frente a um enorme espelho. Pois “eu sou” um desses corpos. Vejo no espelho que um braço se levanta e se destaca da “bola”. De quem é o braço? Além de vagos estímulos proprioceptivos, só posso sabê-lo se tentar mexer aquele que chamo de “meu” e ver se algo se altera no espelho. De onde eu me “controlo”, será investigado daqui há pouco. Mas a propriocepção é um caso especial da percepção.

Como sabemos qual dos objetos de nossa consciência somos nós mesmos? A intencionalidade é avessa a curto-circuitos. Ainda que a cobra se volte para o próprio rabo, come um objeto. Um objeto não “engole” a si próprio (uroboros: meu mito é mais “avançado”), mas sempre outro objeto. E de nada adianta aqui apelarmos para um “decreto” metafísico, pois a metafísica é insensível a decretos. Eis um exemplo de “decreto”: aquele (o objeto da minha consciência) “é” (sou) “eu”. O indexical “eu” não pode fazer milagres: pode apenas mapear uma função ... no mundo. Tampouco pode valer-nos, aqui, o apelo ao hábito: “Mas eu sempre acerto!”, “Jamais a pimenta nos olhos dos outros ardeu nos meus!”. Ora, mesmo que em todas as vezes que, diante de objetos intencionais da consciência, “Isso” só diga “eu” de acordo com normas aprovadas pelo grupo (por mim inclusive), este fato, por si só, não estabelece uma relação necessária entre esses objetos: o objeto que se chama “eu” e o objeto que diz “eu”. “Ele” também diz: “eu”. As regras parecem claras: não posso dizer de você, “sofro”. Você não pode dizer de mim, “sofro”. Mas onde está a necessidade de relação entre “eu-no-mundo” e ... eu? Pode parecer incrível, mas essa relação é contingente.

É trivialmente biológico — não biologicamente trivial! — que a evolução limite as vivências de um organismo mais ou menos às fronteiras “econômicas” de sua pele. Pode ter algum valor adaptativo que um organismo seja composto, mentalmente fundido a outro ... mas dentro de certos limites. Na verdade, pensamos pensamentos alheios; a mente é trans-individual; o inconsciente é “coletivo”; a sociedade “pensa” em mim, via linguagem etc.; só sei o que sinto porque o constituí como objeto, batizando-o com um nome — ainda que o “nome” seja indexical, como “aquilo”— ..., mas dentro de certos limites. Se eu me trancar num quarto a sós para pensar num problema “só [162] meu”, é uma multidão que pensa — toda a “máquina” da mente social, linguística etc., mas dentro de certos limites. E se eu me “trancar” no meu corpo? Há alguma diferença essencial? Onde estão os limites? Há alguma necessidade nos seus traçados? Ou, como já afirmei, todas essas fronteiras são contingentes?

Olhamos “para dentro” e nos vemos fingindo, mentindo, vemo-nos sorrindo quando estamos com raiva etc. “Agora encontrei uma relação necessária: estou aqui “escondido”! Ilusão outra vez. É uma das maiores perplexidades do chamado “auto-conhecimento” que o “observador externo” possa ser gradualmente incorporado ou desincorporado em relação ao “sistema que se conhece a si mesmo”. O fato é que o que vemos é um teatro de marionetes, por detrás do pano: o boneco que ri, e o manipulador que está com raiva. Qual deles sou “eu”? Ambos são objetos, se deles tenho consciência intencional. Se eu disser: sou o que finge, o que tem raiva, o que mente, este é um objeto ... a menos que ... eu não tenha consciência deste que finge. Mas, neste caso, só tenho consciência do objeto que ri, e não de um objeto que finge. O fingido, o manipulador da marionete, neste caso, concedo, não é um objeto, mas tampouco é consciente de si, tampouco conhece a si mesmo, tampouco diz “eu” sabendo quem é.

O “sujeito” deve ser necessariamente inconsciente, pelo menos no nível da Identificação Primária. Quando digo “eu” desse modo, ou seja, quando digo “eu” sem consciência deste “eu”, quando digo “eu” inconscientemente, é que há o que venho chamando de Identificação Primária. E toda Identificação Primária é inconsciente. Não chega a ser sequer uma “forma”. São as Identificações Secundárias, como veremos, que são “formas de inconsciência”.

Uma identificação primária, inconsciente, pela qual eu digo “eu”, sem saber quem o diz, é o que me permite identificar secundariamente, “lá fora”, a persona (objeto) que constituo, intencionalmente, como “eu”. Esta é a mesma identificação que ocorre quando viso qualquer objeto intencionalmente. O círculo vicioso é evidente, mas não é falha minha, é uma falha no nosso entendimento habitual do que seja a intencionalidade: se não sei quem sou — e isto, vê-se agora claramente, é a condição mesma da possibilidade de “saber” o que quer que seja —, como posso mapear uma função, no mundo, entre uma persona (lá) e “não sei quem” (aqui)? Para que haja uma relação, há de haver pelo menos dois relata.


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