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Fernandes (FC:131-132) – realidade virtual

domingo 7 de novembro de 2021, por Cardoso de Castro

  

Há um assunto muito delicado, aparentemente superficial e nada transcendental, por naturalístico que é, mas que precisa ser ventilado. O leitor, se já não experimentou, deve ter notícia dessas máquinas que produzem “realidade virtual”. Com um par de fones de ouvido, viseiras especiais, etc. — a limitação dos recursos é apenas contingente, dado o estado atual da tecnologia — podemos passar algum tempo “esquiando” na Suíça, ou “pilotando” um carro de corrida. Mas em que consiste a “virtualidade”, por oposição, presume-se, à “realidade” de tais experiências? Haverá alguma distinção ontologicamente relevante entre a “realidade” e a “realidade virtual”? Entre o sonho da borboleta e o sonho de Chuang Tzu  ? O livro que o leitor tem nas mãos está projetado aí, no espaço, diante dele, e permanecendo no tempo, enquanto ele o lê. A neve, a paisagem, os esquis também estão ali, diante de nós. As viseiras e os fones especiais são, como todas as máquinas, extensões protéticas do corpo humano — no caso, do cérebro humano. Este é um “alucinador” virtual, por excelência. Ou não sabe o leitor que o livro e tudo o mais que ele vê no espaço que o circunda também pode ser descrito como processos neuronais no seu cérebro? Um ente, já vimos, é o que corresponde à sua descrição, ou seja, a identificações materiais. E se temos que “decidir”, então estabelecemos fronteiras habituais entre o que chamaremos de “realidade” qualificada, ou seja, virtual, e “realidade” não qualificada, ou seja, o que não consideramos, ingenuamente, como produzido pelo cérebro. Contemple o leitor a belíssima pintura reproduzida na tela do seu micro computador. Abra, agora, sua “torre”, e só verá circuitos etc. A pintura lhe aparece como virtual relativamente ao hardware por ele examinado. Mas, enquanto o leitor faz isso, um [131] neurocientista lhe abre a caixa craniana, de maneira indolor e imperceptível. Ora, este neurocientista não verá, no córtex exposto do leitor, os circuitos que este vê, mas, sim, neurônios, sinapses etc. (se munidos das necessárias extensões protéticas do olho, como microscópios etc.). Os circuitos vistos pelo leitor parecerão ao neurocientista virtuais relativamente ao hardware por ele examinado. Mas, enquanto o neurocientista faz isto, um segundo neurocientista — neurocientista₂ — abre a caixa craniana do primeiro. E o neurocientista₂ não verá, no córtex exposto do neurocientista₁, os neurônios e os padrões sinápticos que este vê, mas, sim, outros neurônios, outras sinapses etc. E, assim, indefinidamente.

Somos pontos no centro de um círculo. Esses pontos sempre podem projetar-se nas distâncias geradas na estrutura transcendental da intencionalidade: quando cegos, justamente porque não veem a estrutura em si, podem “ver o mundo”; quando videntes, porque tomam alguma estrutura dessas como objeto, cegam-se para o que antes era o “mundo”. Ou vemos com o que não vemos, ou não vemos mais o que víamos, para ver aquilo com que víamos. Mas vemos sempre com o que, ou em virtude do que não vemos. E o que não vemos não traz em si a marca, o critério, do que vemos. Toda realidade é virtual. [1]


Ver online : Sergio L. C. Fernandes


EDELMAN, G. 1987: Neural Darwinism. The Theory of Neuronal Group Selection. Basic Books.

EDELMAN, G. 1989: The Remembered Present: A Biological Theory of Consciousness. Basic Books.

EDELMAN, G. 1992: Bright Air, Brilliant Fire. Basic Books

KOSSLYN, S.M. 1980: Image & Mind. Harvard UP


[1V. KOSSLYN 1980 & EDELMAN 1987, 1989 e 1992.