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Charles Taylor: Individualismo

terça-feira 28 de janeiro de 2020, por Cardoso de Castro

  

Carvalho

A primeira fonte de preocupação é o individualismo. É claro que individualismo também denomina o que muita gente considera a maior conquista da civilização moderna. Nós vivemos em um mundo no qual as pessoas possuem o direito de escolher por si mesmas o próprio modo de vida, de decidir conscientemente quais convicções abraçar, de determinar o formato de sua vida em uma série de maneiras que seus antepassados não podiam controlar. E esses direitos geralmente são defendidos por nossos sistemas legais. Em princípio, as pessoas não são mais sacrificadas às demandas de ordens supostamente sagradas que as transcendem.

Pouquíssimas pessoas querem retroceder nessa conquista. Na realidade, muitas acham que ela ainda está incompleta, que arranjos econômicos ou padrões da vida em família, ou as noções tradicionais de hierarquia, ainda restringem muito a liberdade de sermos nós mesmos. Mas muitos de nós também somos ambivalentes. A liberdade moderna foi ganha por nossa fuga dos antigos horizontes morais. As pessoas costumavam se ver como parte de uma ordem maior. Em alguns casos, esta era uma ordem cósmica, “a grande cadeia do Ser”, na qual os homens figuravam em lugar determinado, assim como os anjos, corpos celestiais, e as criaturas terrenas, nossos pares. Essa ordem hierárquica no universo se refletia nas hierarquias da sociedade humana. As pessoas eram frequentemente fixadas em determinado lugar, papel e estrato que eram propriamente delas e dos quais era quase impensável se desviar. A liberdade moderna surgiu pelo descrédito de tais ordens.

Mas, ao mesmo tempo que nos limitavam, essas ordens davam significado ao mundo e às atividades da vida social. As coisas que nos circundavam não eram apenas matéria-prima ou instrumentos potenciais para nossos projetos, mas tinham o significado dado a elas por seu lugar na cadeia do ser. A águia não era apenas mais um pássaro, mas a líder de todo um domínio da vida animal. Da mesma forma, os rituais e normas da sociedade tinham mais do que um significado meramente instrumental. O descrédito dessas ordens é o que tem sido chamado de “desencantamento” do mundo. Com ele, as coisas perderam parte de seu encanto.

Um forte debate acerca de isso ter sido uma coisa boa inequivocamente vem ocorrendo há dois séculos. Mas não é o que eu quero focar aqui. Prefiro olhar para o que alguns viram serem as consequências para a vida humana e seu significado.

A preocupação de que o indivíduo perdeu algo importante com os horizontes sociais e cósmicos maiores de ação tem sido expressa de maneira repetida. Alguns têm escrito sobre isso como a perda da dimensão heroica da vida. As pessoas não possuem mais a sensação de um propósito maior, de algo pelo qual vale a pena morrer. Alexis de Tocqueville por vezes falou desse modo no século passado, referindo-se aos “prazeres pequenos e vulgares” que as pessoas tendem a buscar na era democrática. [1] Articulado de outra forma, nós sofremos de falta de paixão. Kierkegaard   viu o “tempo presente” nesses termos. E os “últimos homens” nietzschianos estão no limiar final desse declínio; eles não possuem mais nenhuma aspiração na vida a não ser um “lamentável conforto” [2].

Tal perda de propósito estava ligada a um estreitamento. As pessoas perderam a visão mais abrangente porque se centraram na vida individual. A igualdade democrática, diz Tocqueville, orienta o indivíduo para si mesmo, “et menaee de le renfermer enfin tout entier dans la solitude de son propre coeur” [3]. Em outras palavras, o lado sombrio do individualismo é o centrar-se em si mesmo, que tanto nivela quanto restringe nossa vida, tornando-a mais pobre em significado e menos preocupada com os outros ou com a sociedade.

Recentemente, essa preocupação veio à tona novamente no que diz respeito aos frutos de uma “sociedade permissiva”, os feitos da “geração eu”, ou a prevalência do “narcisismo”, para tomar apenas três das mais conhecidas formulações contemporâneas. O sentido de que vidas foram niveladas e estreitadas, e de que isso está ligado a uma autoabsorção anormal e lamentável, voltou em formas específicas à cultura contemporânea. Isto define o primeiro tema do qual quero tratar. (p. 11-13)

Original

The first source of worry is individualism. Of course, individualism also names what many people consider the finest achievement of modern civilization. We live in a world where people have a right to choose for themselves their own pattern of life, to decide in conscience what convictions to espouse, to determine the shape of their lives in a whole host of ways that their ancestors couldn’t control. And these rights are generally defended by our legal systems. In principle, people are no longer sacrificed to the demands of supposedly sacred orders that transcend them.

Very few people want to go back on this achievement. Indeed, many think that it is still incomplete, that economic arrangements or patterns of family life, or traditional notions of hierarchy still restrict too much our freedom to be ourselves. But many of us are also ambivalent. Modern freedom was won by our breaking loose from older moral horizons. People used to see themselves as part of a larger order. In some cases, this was a cosmic order, a "great chain of Being," in which humans figured in their proper place along with angels, heavenly bodies, and our fellow earthly creatures. This hierarchi cal order in the universe was reflected in the hierarchies of human society. People were often locked into a given place, a role and station that was properly theirs and from which it was almost unthinkable to deviate. Modern freedom came about through the discrediting of such orders.

But at the same time as they restricted us, these orders gave meaning to the world and to the activities of social life. The things that surround us were not just potential raw materials or instruments for our projects, but they had the significance given them by their place in the chain of being. The eagle was not just another bird, but the king of a whole domain of animal life. By the same token, the rituals and norms of society had more than merely instrumental significance. The discrediting of these orders has been called the "disenchantment" of the world. With it, things lost some of their magic.

A vigorous debate has been going on for a couple of centuries as to whether this was an unambiguously good thing. But this is not what I want to focus on here. I want to look rather at what some have seen to be the consequences for human life and meaning.

The worry has been repeatedly expressed that the individual lost something important along with the larger social and cosmic horizons of action. Some have written of this as the loss of a heroic dimension to life. People no longer have a sense of a higher purpose, of something worth dying for. Alexis de Tocqueville sometimes talked like this in the last century, referring to the "petits et vulgaires plaisirs" that people tend to seek in the democratic age. [4] In another articulation, we suffer from a lack of passion. Kierkegaard saw "the present age" in these terms. And Nietzsche  ’s "last men" are at the final nadir of this decline; they have no aspiration left in life but to a "pitiable comfort." [5]

This loss of purpose was linked to a narrowing. People lost the broader vision because they focussed on their individual lives. Democratic equality, says Tocqueville, draws the individual towards himself, "et menace de Ie renfermer enfin tout entier dans la solitude de son propre coeur." [6] In other words, the dark side of individualism is a centring on the self, which both flattens and narrows our lives, makes them poorer in meaning, and less concerned with others or society.

This worry has recently surfaced again in concern at the fruits of a "permissive society," the doings of the “me generation," or the prevalence of "narcissism," to take just three of the best-known contemporary formulations. The sense that lives have been flattened and narrowed, and that this is connected to an abnormal and regrettable self-absorption, has returned in forms specific to contemporary culture. This defines the first theme I want to deal with. (p. 2-4)


Ver online : THE ETHICS OF AUTHENTICITY


[1Alexis de Tocqueville, De la Démocratie en Amérique, v. 2. Paris, Garnier-Flammarion, 1981, p. 385.

[2“Erbärmliches Behagen”. In: Also Sprach Zarathustra. Prefácio de Zaratustra, parte 3.

[3Tocqueville, De la Democratie, p. 127.

[4Alexis de Tocqueville, De la Democratie en Amerique vol. 2 (Paris: Garnier-Flamrnarion, 1981), p. 385.

[5"Erbärmliches Behagen"; Also Sprach Zarathustra, Zarathustra’s Preface, sect. 3.

[6Tocqueville, De la Democratie, p. 127.